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08 janeiro 2014

Lembrando de François Truffaut

François Truffaut, o nobre cineasta francês, iria completar 82 anos no próximo dia 5 de fevereiro. Mas a Implacável levou-o em 1984, aos 54 anos. Uma homenagem, aqui, ao autor de Jules et Jim.
Ao contrário do cinema de seus companheiros da Nouvelle Vague – Godard, Rohmer, Chabrol, Rivette, Resnais…-, racionalista e cerebral, o de François Truffaut é feito com a emoção e o coração, com extrema sensibilidade e uma simpatia incomum pelos seus personagens, que são tratados com ternura, generosidade e afeto. O crítico ferrenho, radical, intransigente, das revistas Cahiers du Cinema e Arts et Spetacules, que ataca em seus escritos o cinema clássico francês e o realismo psicológico de acadêmicos como Claude Autant Lara, Julien Duvivier, entre outros, sofre uma espécie de metamorfose quando passa a realizar filmes, transformando-se num cineasta terno e amável.
Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, cuja tradução literal é Os Quatrocentos Golpes), além de inaugurar a Nouvelle Vague – juntamente com Acossado, de Godard, Hiroshima, de Resnais… -, dá início à carreira de Truffaut como realizador de longas. E, neste 2009, a distância deste filme é de exatos 50 anos. Aqui também começa o ciclo dedicado a Antoine Doinel (sempre interpretado por Jean Pierre Léaud), um personagem com evidentes elementos autobiográficos, através do qual aborda o rito de passagem da infância à idade adulta. É a nostalgia da adolescência que Truffaut reflete nos filmes do ciclo Doinel, a fugacidade do tempo e a ânsia de amar, a chegada à idade adulta, o casamento… (Antoine et Colette, 1982, episódio de O Amor aos Vinte Anos/L'Amour a vints ans; Beijos Proibidos/Baisers Volés, 1968, Domicílio Conjugal/Domicile Conjugal, 1970, e; Amor em Fuga/L'Amour en Fuite, 1978).
(Em Os Incompreendidos, Truffaut, avant la lettre, considerando a época, alude à Nouvelle Vague e a seu amigo e colega Jacques Rivette, quando os pais de Antoine – que, por sinal, nos outros filmes do ciclo estão sempre 'indo ao cinema' – decidem ir ver Paris Nous Appartient, de Rivette, filme emblemático, apesar de pouco conhecido do movimento francês, e, de volta, no automóvel, consideram-no 'muito bom' – melhor homenagem impossível).
Romântico, sem, contudo, abandonar a visão irônica e dolorosa das relações afetivas, Truffaut tem a sua obra-prima já na terceira incursão longametragista: Uma Mulher para Dois/ Jules et Jim (1961), crônica de uma relação triangular (Oskar Werner, Jeanne Moreau…) baseada no texto literário de Henri Pierre Roché, autor que lhe serviria de inspiração para realizar, dez anos depois, abordando a mesma temática da dificuldade de amar, As Duas Inglesas e o Continente/ Les Deux Anglaises et le Continent (1971). O problema da comunicação no amor, aliás, do amor impossível,en fuite, é uma constante na filmografia de Truffaut, como revelam A História de Adele H/ L'Histoire de Adele H (1976), com Isabelle Adjani, A Mulher do Lado/ La Femme de la Cote (1981), entre outros.
Se seus colegas da Nouvelle Vague procuram elaborar uma linguagem que desconstrói o discurso cinematográfico tradicional, revertendo os cânones da lei de progressão dramática griffithiana, François Truffaut não pretende nunca em seus filmes dissolver a estrutura lingüística, mas, ao contrário, busca desesperadamente a fluência narrativa, o toque mágico capaz de envolver o espectador a fazê-lo pensar que não está no mundo. É verdade que brinca com a metalinguagem, mas num sentido de reverência e ao cinema como em A Noite Americana/ La Nuit Americaine (1973), belíssima homenagem ao processo de criação cinematográfica onde Truffaut comparece como ele mesmo no papel de um diretor que faz um filme. O filme dentro do filme, portanto.
Outra vertente temática na obra truffautiana é a dominante policial, influência, na certa, de sua admiração por Alfred Hitchcock – seu livro de entrevista com este, Hitchcock/Truffaut, da Brasiliense (e, agora, em outra edição pela Companhia das Letras), é, simplesmente, uma aula magna de cinema. Há Hitchcock em Fareinheit 451 (1966), que faz na Inglaterra, com o mesmo Oskar Werner de Jules et Jim, baseado na ficção-científica de Ray Bradbury. Outra obra alusiva ao mestre é A Noiva Estava de Preto/ La Mariée Était em Noir (1967), com Jeanne Moreau ou, mesmo, Tirez sur le Pianiste, segundo filme (1960), e A Sereia do Mississipi/ La Sirene du Mississipi (1969), no qual declara, através das imagens em movimento, a sua paixão momentânea, Catherine Deneuve, que trabalha, aqui, ao lado de Jean Paul Belmondo. E no seu canto de cisne De Repente num Domingo/ Vivement Dimanche (1984), cujo 'claro/escuro', proposital, vem em auxílio de uma proposta estilística em função do film noir francês. Sem esquecer o elaborado, como mise-en-scène, Um só pecado (Le peau douce, 1963).
Autor, porque dono de um estilo próprio, marcante, ainda que com um universo temático diversificado, François Truffaut, na sua filmografia, envereda por assuntos diversos, a exemplo de O Garoto Selvagem/ L'Enfant Sauvage (1970), filme sobre a luta de um médico, no século XIX, para 'domar', um menino bárbaro criado sem contato com a civilização – influência possível para Werner Herzog em O Enigma de Kaspar HauserNa Idade da Inocência/ L'Argent de Poche (1976), experiência na qual, repetindo Jean Vigo (Zero de Conduite), o universo que retrata é constituído somente de crianças. Sem esquecer O Último Metrô/ Le Dernier Metro (1980), uma volta ao passado, Segunda Guerra Mundial na França ocupada, para valorizar, numa situação-limite, a importância dos pequenos gestos.
Em todos os filmes de François Truffaut, um denominador comum: a narrativa que sobrepuja a fábula, a doce fabulação que advém de um sentido preciso de mise-en-scène, o touch truffautiano, sempre terno, apaixonado, capaz de levar ao espectador o prazer do autor com o que está a filmar e o prazer, imenso, de se assistir ao que se está a ver.

07 janeiro 2014

"A doce flauta da liberdade": novo filme baiano

O ator baiano Gildásio Leite em A doce flauta da liberdade, de George Neri
Recebi de Gildásio Leite, veterano ator baiano de teatro e cinema, que já trabalhou inclusive em produções nacionais (Tenda dos milagres, Central do Brasil, entre outras), o material que vai abaixo transcrito sobre o mais recente filme baiano já em fase de finalização: A doce flauta da liberdade, de George Neri, filmado em Ituaçu (cidade localizada na região de Vitória da Conquista a 150 km de distância), Abro as devidas aspas e parabenizo a equipe pelo trabalho feito em tempo recorde.

 A doce flauta da liberdade é o mais novo filme genuinamente baiano
Em algum momento dos anos 70, numa pequena cidade do interior, os moradores têm como única alternativa de entretenimento o cinema local. Os filmes ali exibidos são previamente mutilados, por ordem de alguns cidadãos mais conservadores: eles pedem ao exibidor que recorte das películas as cenas consideradas mais “ousadas”. Nem todos, no entanto, estão sintonizados com esse conservadorismo e preferem a onda liberalizante típica daquele contexto histórico e social.
É a partir desses embates que se inicia uma trama com toques de surrealismo e, em alguns momentos, humor. Em linhas gerais, é esse o ponto de partida de A doce flauta de Liberdade, longa-metragem dirigido por George Neri. “É, sobretudo, um elogio ao cinema. O ponto central é o embate entre a censura e a liberdade”, sintetizou Alberto Marlon, um dos responsáveis pela adaptação do roteiro.
A produção do filme foi viabilizada por meio da seleção pelo edital nº 12/2012, da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb). As filmagens duraram cerca de um mês em Ituaçu, a 150 quilômetros de Vitória da Conquista. “A comunidade nos aceitou muito bem, e a cidade se encaixou como uma luva para o filme”, observou o produtor executivo Dió Araújo. Atualmente, a obra está em fase de edição e montagem, enquanto a equipe continua em busca de recursos para arcar com os custos adicionais.
O elenco é completamente formado por atores de Vitória da Conquista e região – à exceção do cantor e compositor pernambucano Otto, que fez uma participação especial. Há atores jovens e outros mais experientes, como é o caso de Gildásio e Sônia Leite. Assim que o filme estiver finalizado (a equipe espera tê-lo pronto ainda este ano), deverá ser exibido em mostras e festivais pelo país, além de canais públicos, como a TV Brasil.
Novo paradigma – As pretensões da equipe não param por aí. Para se ter uma ideia, está prevista a inclusão de legendas em inglês, francês e espanhol. “Não podemos deixar uma obra como essa na prateleira. Estamos fazendo esse filme para que ele tenha uma dimensão muito grande. Nossa intenção é ganhar o mundo através de um cinema mais artístico”, explicou Araújo.
Para Alberto Marlon, A doce flauta de Liberdade pode atuar como um incentivo para outras pessoas que também queiram dar vazão ao desejo de fazer cinema na região de Vitória da Conquista – que, por sinal, é a terra natal do cineasta Glauber Rocha. “Como a cidade é um celeiro de cultura e possui todas as vertentes de arte, essa iniciativa de produzir cinema é muito interessante, pois serve como um paradigma para novas produções”, afirmou.
Para mais informações sobre o filme, clique no link abaixo:

Gildásio Leite, o Calango da Véa Galdina
Filho de Janoca, neto de Tecla, filho de Zé Gonçalves, neto de Inocêncio, pai de Pauline, Paulo Tiago, Gabriele e João Gabriel, garoto precoce e dono de uma extraordinária inteligência, Gildásio Leite integra aquele grupo seleto e raro de intelectuais que conseguiram dar o salto nas gerações, que teve a habilidade para reinterpretar os movimentos sociais, políticos e culturais, incluir-se nesses movimentos pela porta da frente, e que, especialmente, não perdeu o brilho nem a mais sofisticada arma do ser humano contra as opressões cotidianas: a capacidade de sonhar.
Em uma deliciosíssima entrevista ao Blog do Fábio Sena – à qual deram auxílio luxuoso com suas inteligências os jornalistas Paulo Nunes e Luis Fernandes, Gildásio Leite dá uma aula de otimismo, de humanidade, de elegância com as palavras, mas principalmente, faz emergir conteúdos reveladores, conteúdos somente possíveis na cabeça de quem mergulhou fundo na história de sua época – e, no caso de Gildásio Leite, a época é esta contemporânea também –, da qual ele não se aparta. Dono de uma prodigiosa memória e singular inspiração para tratar dos temas mais delicados de forma sempre simpática, Gildásio Leite assegura, entre outras coisas, que seu legado para Vitória da Conquista foi a sua inteira devoção ao teatro como instrumento libertador.
Foi em clima descontraído e saboreando uma daquelas cervejas somente encontráveis no Bar de Paulinho que Gildásio Leite conversou conosco. Trata-se de parte de uma memória cuja leitura vai agradar a gregos e troianos.
Segue:
Gildásio e Zé Ninguém: os arquétipos da modernidade
- Gildásio Leite… cineasta, né?
- É…
- Cineasta!
- É… na verdade, eu sou ator e documentarista.
- Pronto: cineasta, ator e documentarista.
- Cineasta é um nome que… eu não assino. Embora tenha escrito vários roteiros de longa metragem, não realizei nenhum longa- metragem como diretor. Só tenho realizado curtas metragens, então eu não sou cineasta, eu sou ator teatral e cinematográfico. Eu não posso ser cineasta por eu ser ator de cinema.
- Ok. Você venceu. Quer começar falando pra gente sobre Zé Ninguém?
- O Zé Ninguém?
- Sim. De Reich.
- De Reich? Hummm… (faz cara de espantado…)
- Por quê? Você não acredita  mais em Zé Ninguém?
- Eu acredito. Inclusive eu adaptei até pro teatro o Zé Ninguém, pra ser encenado aqui em Conquista, e foi um projeto que não foi adiante porque eu tive dificuldade de elenco, de ator pra fazer o personagem, mas isso eu admiro, acho interessante. Tem um filme, um longa- metragem, que é “Quando Nada Acontece”, que é exatamente dentro do arquétipo do Zé Ninguém, um cara que luta a vida inteira para atingir o ápice, que a sociedade gosta de ver o eleito, vitorioso, e ele não consegue, ele não é nada. O filme chama “Quando Nada Acontece”. E por isso o pessoal da Salvador, onde eu tenho mais acesso, muito acesso, né, eu convivi muito tempo em Salvador fazendo teatro, fazendo cinema, eles acham que o filme é uma autobiografia minha, e não é (risos…), mas é interessante.
"A única dificuldade que eu tenho é de abordar uma linguística que a juventude articula hoje, através do facebook, da internet"
- Você ficou surpreso com essa de perguntar sobre o Zé Ninguém, não é?
- Fiquei, fiquei bastante surpreso.
- Me diz uma coisa: você consegue se adequar a essas novas gerações? Você consegue… digamos… você acha que ficou no tempo e no espaço ou que conseguiu se adaptar a essa realidade nova, à contemporaneidade?
- Olha, no momento, na atualidade, a única dificuldade que eu tenho é de abordar uma linguística que a juventude articula hoje, através do facebook, da internet, porque eu não tenho o hábito de manipular, e eu não manipulo essa linguagem, mas eu entendo/compreendo. Agora, linguisticamente, dentro do contexto atual, eu não me distancio da molecada, da juventude. Meus filhos são todos jovens, eles desenvolvem uma prática de percepção do contexto em que vivem, e eu compreendo com facilidade, e tenho feito muito teatro voltado para a juventude, não só nos anos sessenta como hoje, toda a minha prática de teatro tem sido voltada para a educação dos jovens, e não eu não tenho dificuldade de entendê-los e compreendê-los, até dentro das possibilidades… porque tem coisas que…
- Você consegue enxergar de qualquer forma uma diferença entre a sua juventude, entre o pensamento de sua juventude, entre a ação da juventude do seu tempo e a juventude de hoje? Que tipo de comparação você faria?
- Ah, sim, é muito difícil hoje compreender esse comportamento da juventude, porque nós vivemos no terceiro milênio, em que todas as conquistas desejadas nos anos sessenta, na minha adolescência, foram alcançadas. Mas é muito difícil hoje a juventude desenvolver um discurso dialético, analítico, dentro do contexto, porque eles não têm o referencial que nós tivemos. O nosso referencial nessa época era Sartre, Bertold (Brecht), o socialista, a gente… nós líamos, eu li Marx com 17 anos… e hoje o pessoal não tem… não sei se eles desenvolvem esse discurso nos cursos que fazem na universidade, no terceiro grau.
- Nessa época quem era marxista tinha lido Marx mesmo, né?
- Tinha lido Marx… é… Chegamos a Marx, Hegel, então a gente trabalhava com a filosofia, né… de alcance, perceptivo; analítico; crítico. E é o que domina até hoje. Quem escreve hoje, quem faz jornalismo hoje, se não tiver esse referencial ele não sabe o que tá dizendo. Não sabe o que diz.
 "Eu fui militante lá em Salvador e acompanhei os anos amargos da ditadura, as brigas da ditadura, 67, 68, 69"
- Bom, Gildásio, já que estamos falando de juventude, de mudança de tempo, de períodos históricos, você que viveu um período intenso da política partidária no Brasil, você acha que hoje é possível definir o que é esquerda e o que é direita?
- Rapaz… eu fui militante político na Bahia, fui aqui em Conquista como adolescente, quando se criou a UBES aqui eu era moleque, adolescente, era mais novo do que esse Oswaldo aí que foi o primeiro presidente – Oswaldinho Ribeiro, estava com ele agora. Eu era moleque, menino, mas já tínhamos a preocupação de sabermos o que que era o contexto político, social da época. Agora, em Salvador, quando eu fui pra Salvador pra fazer universidade, então eu fui militante lá em Salvador e acompanhei os anos amargos da ditadura, as brigas da ditadura, 67, 68, 69, não só na Bahia como no mundo, porque a gente se articulava com a problemática toda não só na América como na Europa, e no sul do país, Rio e São Paulo. Então toda, essa militância eu conheci, eu convivi com “eles”, e hoje eu me decepciono quando eu vejo o líder do PT no Congresso, que chama Carregosa, defender a base aliada do governo como ele defende, defender o (Carlos) Lupi!… Pô, não tem sentido; então não dá pra entender, pra eu compreender o que é isso.
- Você teve uma vida marcada pela arte, pela produção artística, pela produção cultural. Como você se situa nessa história cultural de Vitória da Conquista, qual é a contribuição que Gildásio Leite deu à Vitória da Conquista?
- Trabalhando com jovens, só. Os grandes espetáculos que eu idealizei, que eu quis fazer em Conquista não foi possível fazer porque não tem incentivo, não tem como realizar. Eu realizei alguns em Salvador, não todos, né, mas em Conquista eu realizei pouco. Mas trabalhei muito com jovem, com moleque, com adolescente e para o adolescente. Então, essa é a grande contribuição. Tem amigos meus aqui formados em Engenharia, em Medicina, em Direito que viram teatro na sua adolescência me assistindo, e eu representando. Então isso é uma coisa que me deixa muito envaidecido, porque eu não sabia que isso ia acontecer.
Luis Fernandes quer saber sobre cinema
- (Luis Fernandes) Gildásio Leite é mais teatro ou mais cinema?
- Hoje eu sou audioartevisual! Hoje eu sou visual, artevisual, eu congrego nas três linguagens, né, mas a minha prática é teatral. Eu comecei aqui fazendo teatro porque idealizava, sonhava em fazer cinema! Nós, moleques, aqui, adolescentes, a gente idealizava fazer cinema porque a gente assistia muito os filmes aqui no Cine Glória, no Cine Conquista, no Cine Poeira, e a gente saía da sala imitando os personagens, querendo ser Durango Kid, entende?, desenvolvendo o discurso do personagem. Eu nem sabia qual era o arquétipo de um personagem, mas a gente saia imitando os personagens dos bang-bang, dos filmes clássicos que a gente assistia. E a prática para se chegar a isso, pra se chegar ao cinema tinha que ser a representação, o teatro. Saber o que que é representar um personagem. Então eu fui procurar uma escola de teatro. Eu fiz teatro aqui, na adolescência, e depois eu fui me formar. Eu me formei, eu sou ator e sou diretor teatral graduado pela UFBA, certo. Não tenho orgulho disso, não, mas eu fiz isso (irônico…). Mas consegui entrar, fazer o cinema, que eu queria. Logo que chego em Salvador eu fiz meu primeiro filme. O primeiro filme que eu fiz foi um filme italiano, da Fama Filmes, sobre o cangaço, um filme com Thomás Milliam. Esse filme passou aqui em Conquista, eles anunciavam, que Raimundo exibia no Cine Glória “com artista conquistense” (rsrsrsrs). Era um Bang Bang Nordestry, com Tomas Milian, era a Rebelião dos Brutos*, não pôde ser registrado no Brasil como “O Cangaceiro” então ficou o título “Rebelião dos Brutos”. E é um filme extraordinário de interessante. E eu tenho a cópia em italiano, não tenho ela dublada – dublada não foi, foi telecinada com legenda. Eu não tenho essa cópia, tá no Museu de Imagens de São Paulo. Mas em italiano eu tenho a cópia, é interessante, é o primeiro filme que eu fiz. E fiz outros filmes na Bahia, filmes baianos e filmes do Rio e São Paulo. Então eu consegui realizar alguns filmes como ator, entendeu, na minha verve deve ter 15 ou 16… 16! 16 filmes longa metragem. E curta metragem eu fiz uma série, dirigi alguns e trabalhei com outros como participação de equipe, mais de trinta! É… ‘tá tudo arquivado e guardado esse material, entendeu?
- (Luis Fernandes) Você pretende, quem sabe… lançar um livro contando a história do teatro de Conquista, sua vida em teatro, sua vida em cinema, o cinema em Conquista?
"E a minha avó sempre me codenominava de 'Calango da Véa Galdina'"
- Eu comecei até a escrever como foi que surgiu o teatro na nossa geração, mas me perdi, era uma revista, Mas é interessante contar a arte em Conquista, não só dessa época, desse período da minha adolescência, que é 1960, como a de hoje. Hoje se desenvolve uma arte mais concreta, mais objetiva, mais racional. Nosso tempo também era uma arte muito subjetiva, mas a gente sabia o que queria, é uma arte mais limitada, mas hoje com o domínio dos “acessos” da comunicação, então… o teatro de Conquista não tá mal, agora falta incentivo pra que ele possa produzir um bom resultado.
- Gildásio, você consegue fazer uma análise também subjetiva do que foi que lhe conduziu à arte, ao teatro, ao cinema. Você tem alguma reminiscência de quando foi que você deu o estalo pra isso?
- Olha, eu sempre fui um menino precoce. Eu fui criado por meus avós. Quando nasci, a minha mãe não pôde me alimentar porque meu parto foi muito complicado, foi aqui na fazenda Volta Grande, do meu avô, a três km de Conquista. Aí, a minha tia me levou pra casa do meu avô, para poder me amparar. Então, daí eu não voltei mais pra casa de minha mãe, eu fiquei, fui criado por minha tia e meus tios e meus avós. Eu conheci meu avô, minha avó. Eu convivi com meu avô e minha avó e eu fui muito precoce, eu fui muito criado solto mas compreendendo as limitações que estabeleciam pra gente, meu avô, minha avó, meus tios. Mas era isto precoce, e aí eles me puseram o apelido de “Calango da Véa Galdina”, porque eu era um cara cômico, era, era um dos cômicos que facilitava a alegria na casa, nos eventos, acontecimentos, acharam eu parecido com um cara que era quase um palhaço e isso não me saiu da memória, né, e a minha avó sempre me codenominava de “Calango da Véa Galdina”, e logo depois eu conheci o circo, aqui em Conquista, o meu tio me levava pro circo e eu assistia todos os espetáculos do Circo Nerino e os dramas, eu moleque, 3 anos, 4 anos, eu descia com meus tios pra vir aqui fazer o cabelo na banca de Estelina, aqui no Beco da Tesoura, Valdemar
Este sujeito simpático é o Waldemar a quem Gildásio se refere
nesse tempo já era cabeleleiro. Veja só! Já tá de cabelo branco, bicho (riso), já deve ter uns oitenta (mais risos…); então eu assisti muito. Eu fiz muito espetáculo, eu vi muito espetáculo no Circo Nerino*, grandes dramas da representação, e o palhaço Picolino, então isso foi bacana pra minha compreensão, e logo depois eu entro para a Cruzada, no Salão Paroquial, que já vinha do teatro do salão paroquial, já existia o grupo de teatro salão paroquial; como eu era menino eu, na cruzada, dona Geraldina desenvolvia uma prática de encenação de peças teatrais. Então, eu comecei praticamente moleque no salão paroquial. Depois passamos a encenar pequenos textos e, logo então, passamos a encenar textos… Saímos do teatro catequético, o teatro do salão paroquial era muito catequético, mostrando as contradições dos efeitos da religião do pecado, do bem e do mal, então nós passamos a fazer um teatro para discutir o contexto social da realidade, e isso já no salão paroquial. Isso com muita influência do Padre Benedito.
- É muita precocidade mesmo.
- É. A gente já tinha essa preocupação social, não é, e ao mesmo tempo, na escola, a gente desenvolveu a militância política, o surgimento do PCzão aqui, do PC, das lideranças políticas, essa influência toda no início dos anos sessenta, no final dos anos cinquenta pra sessenta, então houve muito essa influência e a gente participava. Então, o que é que íamos: discutir a realidade brasileira. Então, passamos a ter essa preocupação de fazer um teatro voltado…
- Você já era ator?
- Sim, eu já era ator, já tava trabalhando, mas quando eu decidi mesmo ser ator, não fazer outra carreira acadêmica, então eu já tava querendo decidir pra que caminho eu deveria seguir. Eu já tava com 14 anos, eu já tinha ultrapassado a adolescência. Eu já tinha saído da idade do perigo, porque eu já era, né, 16 anos, com 17 anos eu já tava em Salvador, 18 anos eu já tava em Salvador, tentando vestibular, já tinha escolhido teatro.
- E o cinema? O Gildásio do cinema? Dos longas que você acabou citando aí, dos curtas, tem algum filme que você fez que o deixou bastante realizado?
- Tem… não… no começo, esses filmes foram interessantes pra mim… esses foram muito interessantes, esse primeiro que eu fiz com 22 anos de idade, você não me conhece no filme, você vê o filme e você não me conhece, mas ‘cê sabe que sou eu, né, esse filme eu tava com 22 anos de idade. Logo depois eu passei a…
- Você fez que papel nesse filme?
- Eu fiz um bandido que se torna cangaceiro; é interessante esse filme até, é interessante esse filme. E é a narrativa – inclusive, o roteiro é de Agnaldo Silva, ele praticamente começou a trabalhar com dramaturgia na Itália, ele começou lá. E eles vieram filmar aqui no Brasil um roteiro dele, que tem uma adaptação também dos italianos, do pessoal que fazia bang-bang italiano, da Fama Filmes. Então, logo em seguida eu fiz um filme com Nelson Pereira, que é da obra de Jorge Amado, Tenda dos Milagres, que é um filme interessante, e que…

05 janeiro 2014

Dona Lúcia Rocha: guerreira com voz de ave

Florisvaldo Mattos, jornalista, professor, poeta, amigo e companheiro de Glauber Rocha, pertencente à gloriosa Geração Mapa, que fez história na Bahia, sensibilizado com o desaparecimento de Dona Lúcia Rocha, escreveu um belo poema lavrado em forma de soneto inglês. Ia, neste domingo, escrever alguma coisa em sua memória para o blog, mas a grandeza do poema basta. As palavras abaixo são da lavra do poeta.

EM MEMÓRIA
Morreu Dona Lúcia Rocha, mãe do grande cineasta e lutador pela cultura Glauber Rocha, de que fui amigo, nos ardores da juventude e de ações em favor da arte. Devido a isso, fui por ela honrado (eu como outros) com atenções e afeto, quando ia  aos Barris, fosse a sua casa no nº 13, fosse à da pensão que mantinha no nº 14 (esta hoje um miserável escombro), ambas à Rua General Labatut, ela quase mãe para todos os amigos do filho (Calasans Neto, Fernando da Rocha Peres, Paulo Gil Soares, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto, Fred Souza Castro, Fernando Rocha, e mais). Foi uma autêntica personagem de tragédias, mas que a todas venceu, entre as quais as mortes impactantes dos três filhos, mas morreu sem vencer o último dos dédalos de pedra por onde marchou, o da burocracia oficial e da indiferença empresarial, que a impediu de ver completo e consolidado, no Rio, o Templo Glauber, erguido em memória ao glorioso trajeto cultural de seu filho. Distante, sem poder estar presente a seu velório e féretro, para prestar-lhe homenagem e apresentar minhas condolências a seus netos, faço o que a minha tosca capacidade permite, escrevo e dedico um poema à sua memória de mulher guerreira, que dispensa compungidos sentimentos. E lhe dei o título que me parece mais adequado. Vai abaixo, com meus respeitos.

FOI-SE UMA ANTIMEDEIA
            (À memória de Dona Lúcia Rocha, mãe de Glauber)

A matriarca dos Rocha, Dona Lúcia,
Na vida uma guerreira com voz de ave,
Ardor por juventudes e minúcia,
Com um filho de talento e rosto grave,
Que se foi como um sopro em plena glória,
Com o nome da mãe de luz vestido;
A quem ergueu um Templo de memória,
Obra de quem viveu por céus ungido,
Resolveu percorrer entre as estrelas
O rastro de quem foi um bem precioso,
Estática tão só de ouvir e vê-las
Saudar-lhe a forma do tecer bondoso:
            Só com cabeça e câmera na mão,
            Ela o filho do mundo fez irmão.


(SSA-BA, manhã de sábado, 04/01/2014)