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01 maio 2014

Entrevista com o blogueiro no Dia do Trabalho

O gerente deste blog no dolce far niente

Entrevista realizada comigo pela crítica paulista Teeh Schwarz há alguns aos atrás. As cervejas foram pagas por ela.
1) Qual foi o motivo do interesse pelo cinema? Como se deu esse envolvimento?

André Setaro - Comecei a me envolver com o cinema desde que comecei a frequentá-lo lá pelos meados do século passado. A primeira vez que entrei numa sala de exibição tinha 6 anos de idade. Naquela época, década de 50, menino de calças curtas (era o tempo das calças curtas para garotos) via muito filmes americanos e chanchadas brasileiras, melodramas mexicanos, além, claro, de desenhos animados tipo Tom & Jerry. Minha formação cinematográfica inicial se dá, portanto, com o cinema de gênero made in Hollywood (os musicais inesquecíveis da Metro, os thrillers, os filmes de guerra, os épicos históricos, e, principalmente, o western, que, na definição do grande crítico francês André Bazin, é o cinema americano por excelência). O cinema brasileiro, com raras e honrosas exceções, produzia quase que somente chanchadas. Com o passar do tempo, comecei a frequentar o Clube de Cinema da Bahia, programado por um grande ensaísta da arte cinematográfica, Walter da Silveira. Foi ele quem, no seu clube, mostrou aos baianos os filmes do expressionismo alemão, do neorrealismo italiano, do realismo poético francês, da escola soviética (Eisenstein, Pudovkhin…), o cinema japonês etc. Tinha por volta de 15 anos quando percebi que o cinema, sobre ser um entretenimento, um espetáculo, era também uma expressão de arte. Fiquei impressionado com A aventura (1959), de Michelangelo Antonioni,La dolce vita, de Federico Fellini, Os 7 samurais, de Akira Kurosawa, O encouraçado Potemkin, de Eisenstein etc. Era já um adolescente cinéfilo antes de penetrar na juventude e, mais tarde, na chamada idade da razão. Há, segundo o filósofo Jean-Paul Sartre, a idade da ilusão e a idade da razão. O rito de passagem de uma a outra é problemática e varia de pessoa a pessoa. Vale ressaltar que me tornei um amante de cinema por meio autodidata. Via os filmes com interesse (os mais importantes mais de uma vez) e lia bibliografia especializada e críticas dos grandes suplementos, principalmente os do eixo Rio-São Paulo. Nasci no Rio, em 1950 (já estou me sentindo velho), mas, desde tenra idade, vim morar em Salvador, ainda que todo ano fosse passar, nas férias, um mês na Cidade Maravilhosa. Anotava, num caderno, todos os filmes que via, ficha técnica completa, cinema onde foi visto o filme, e fazia ligeiros comentários.
Meu envolvimento com o cinema se deu por uma afinidade eletiva, por uma relação de assombro e admiração ou, se se quiser, por um ato de amor à arte cinematográfica. Findo o hoje chamado segundo grau, fiz vestibular para a Faculdade de Direito, onde me formei em 1974, tornando-me um advogado sem futuro. Mas, na faculdade, fiquei responsável pela programação do seu cineclube e redigia comentários sobre os filmes exibidos que eram distribuídos na porta de entrada. Em 1974, comecei a publicar textos sobre cinema no jornal soteropolitano Tribuna da Bahia e, meses depois, fui convidado para escrever uma coluna diária que se alastrou por 20 anos até que, em 1994, passei a escrever a coluna apenas uma vez por semana. Meu envolvimento com o cinema se dá, assim, pela crítica. Mas, preguiçoso, achava que fazer um filme dava muito trabalho e, naquele tempo, não havia a facilidade do digital. Era tudo muito difícil. Mas, mesmo assim, para aprender alguma coisa, trabalhei como assistente de direção de alguns filmes baianos (Voo interrompido, 1968, de José Umberto, filme underground, do chamado Cinema Marginal), fui ator em O cisne também morre (1982), de Tuna Espinheira e realizei um Super 8 cujo título, esdrúxulo, é Pizzaria Eisenstein (1984).
Frustrado com a experiência como advogado, fui fazer Comunicação (Jornalismo) e, depois, Mestrado em Artes Visuais, cuja dissertação versou sobre cinema: Narrativa e fábula no discurso cinematográfico. Em 1979, entrei para ser professor da área de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, onde ensino até hoje disciplinas da área como Oficina em Comunicação Audiovisual, Linguagem Cinematográfica, etc. Publiquei Panorama do Cinema Baiano, em 1976, e Alexandre Robatto Filho, um pioneiro do cinema baiano, em 1992, ambos editados pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. Estou, no prelo, com três livros, que fazem parte de Escritos sobre cinema.
De nada adiantam cursos de cinema se a pessoa não se interessar. Os cursos ajudam e podem ser proveitosos desde que o indivíduo se interesse pela coisa. O que se aplica, aliás, às demais atividades. É importante que se conheça os chamados filmes essenciais, os filmes-faróis da história do cinema, os filmes divisores de água, que contribuíram para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, a exemplo de O encouraçado Potemkin(1925), de Eisenstein, Ladrões de bicicleta (1948), de Vittorio De Sica (para se ter uma idéia da importância do neorrealismo italiano), Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Hiroshima, mon amour (1959), de Alain Resnais, Morangos silvestres (1957), de Ingmar Bergman, Oito e meio (1963), de Federico Fellini, a trilogia de Michelangelo Antonioni (A aventura, A noite, O eclipse), Aurora (1927), de Murnau, La passion de Jeanne D’arc (1928), de Carl Theodor Dreyer, Acossado e O desprezo, ambos de Jean-Luc Godard, entre muitos outros. A citação se faz aqui apressada e de memória.

2) Desde o inicio já pretendia atuar profissionalmente na área? Afinal, muita gente acha isso pouco viável, excentricidade. Inclusive, ainda, atualmente.

André Setaro - Se atualmente o cinema é estudado nas universidades de todo o mundo, antes, porém, a coisa era diferente. O cinema era considerado apenas um entretenimento, um divertissement, um passatempo para os momentos de ócio. Com os estudos efetuados a partir da segunda metade do século passado, principalmente por sociólogos e comunicólogos, verificou-se que o cinema invadiu o imaginário coletivo das pessoas e, por isso, era preciso ser estudado. O cinema mudou hábitos, comportamentos, influenciou o way of life. Assim, quando comecei a escrever diariamente sobre a chamada sétima arte, a ganhar alguma coisa com isso, ainda nos anos 70, e principalmente numa velha província como Salvador, certo dia mostrei a uma tia carrancuda minha coluna impressa no jornal e ela me respondeu: “Você não tem nada para fazer, não?”. Sim, o cinema não era levado a sério profissionalmente, considerado uma utopia, uma excentricidade como você bem frisa na pergunta. Ainda hoje, o profissional da área é marginalizado, inclusive no Brasil.

3) Como cinéfilo, oque acha da qualidade do cinema nacional e sua ‘baixa valorização’ no próprio território?

André Setaro - O nó górdio do cinema brasileiro está no tripé produção-distribuição- exibição. O mercado exibidor brasileiro está completamente tomado pelas multinacionais (os complexos de cinemas Cinemark, Multiplex etc), e é muito difícil para um realizador iniciante encontrar guarida neste mercado. Se a produção de filmes nacionais passa dos 70 por ano, incentivada, principalmente pelas leis de incentivo, que gera a famigerada captação de recursos, a maioria deles, no entanto, não é exibida. O cineasta que consegue exibir seus filmes é aquele que faz parceria, na produção, com as multinacionais. O que adianta produzir um filme se ele não é exibido? A grande platéia do cinema brasileiro se encontra nos festivais que proliferam país afora. O cinema brasileiro está maduro do ponto de vista técnico, mas seus realizadores se subordinam muito ao mercado, porque precisam captar recursos e as empresas apenas se dispõem a doar recursos àqueles filmes que possuem viabilidade e exequibilidade comerciais.
Os filmes brasileiros que são exibidos em boas salas são aqueles cujos produtores entram em parceria com as multinacionais, a exemplo de Luis Carlos Barreto, Daniel Filho, Walter Salles, Cacá Diegues etc
Mas não se pode negar que tecnicamente, na última década, o filme brasileiro tem padrão internacional. Tecnicamente falando, devo ressaltar. Mas não possui a criatividade do passado, principalmente dos anos 60, quando explodiram o Cinema Novo e o Cinema Marginal (dois exemplos de obras-primas: Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, e O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla. Os cineastas não se aventuram na busca do novo por impedimento mercadológico. Na época do Cinema Novo, não havia captação, havia mais liberdade de criação.

4) Você diz que Walter da Silveira, de certa forma, foi quem apresentou os filmes internacionais que fogem ao esteriótipo de blockbusters aos soteropolitanos e, inclusive, à você. Mas e quanto as produções nacionais? Quais lhe atingiram?

André Setaro – Conheci o cinema brasileiro nos anos 50 e, nesta época, a maioria dos filmes nacionais era constituído de chanchadadas populares: comédias com Oscarito, Zé Trindade, Grande Otelo, Ankito, Mazzarropi, entre outros. Lembro-me das filas imensas que se formavam nas portas das salas exibidoras. As chanchadas se constituíram em grandes sucessos populares e, creio, foi a melhor época para o cinema brasileiro em termos de bilheteria. Mas os críticos, a maioria deles, as abominava. Foi preciso que o tempo passasse para que, décadas depois, elas viessem a ser revalorizadas, e atualmente, inclusive, são objeto até de dissertações e teses de mestrados e doutorados. Recordo-me de muitas delas: Marido de mulher boa, Mulheres à vista, O massagista de madame, O batedor de carteiras, Chico Fumaça. As melhores, contudo, eram as dirigidas por Carlos Manga, satíricas e paródicas, a exemplo de O homem do sputnick, com Oscarito, Nem Sansão nem Dalila, também com Oscarito (um gênio!) ao lado de Grande Otelo, e, também com estes, Matar ou correr (paródia do clássico western Matar ou morrer/High Noon, de Fred Zinnemann, com Gary Cooper). Gostei particularmente de De vento em pôpa, também de Manga. Se a chanchada predominava, havia também os filmes da Vera Cruz. O cangaceiro(1953), de Lima Barreto, constituiu-se num grande êxito, assim como Sinhá Moça, de Tom Payne, sobre as tentativas abolicionistas no século retrasado numa cidade de Minas Gerais. E Nelson Pereira dos Santos, a seguir o exemplo do neorrealismo italiano, plantava as sementes do Cinema Novo com seu pioneiro Rio quarenta graus (1955), seguido de Rio Zona Norte (1958). Com a decadência das chanchadas, surgiu o Cinema Novo, que acompanhei, praticamente, filme por filme, a destacar o impacto que me causou a primeira visão de Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, assim como Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos.

5) Você cita que as “chanchadas se constituíram em grandes sucessos populares” e que a maioria dos crítico as abominava. Porque você acha que algo que atinge o popular com tanto sucesso, acaba por causar essa repulsa nos que se propoem à falar sobre cinema? Afinal, isso tem certa continuidade quanto aos tempos atuais: as obras ‘meneghelianas’ e os contínuos ‘Didi e não sei lá quem mais’, atraem o grande público, mas quem realmente se considera um amante de cinema, as repudia. Sei que em volta disso está a qualidade tanto das produções, como o enredo em si, mas além disso, pode ser, de alguma forma, preconceito?

André Setaro - A crítica, principalmente na sua fase áurea, caracterizava-se pelo elitismo, a eleger os filmes que possuíam temas nobres como as expressões máximas da arte do filme ou, então, aqueles que influíam na renovação da linguagem cinematográfica (Eisenstein, Orson Welles, Godard etc) e os movimentos também de renovação (expressionismo alemão dos anos 10 e 20, a escola soviética da década de 20, a escola documentarista inglesa, o realismo poético francês, o neorrealismo italiano, a nouvelle vague francesa etc). Os filmes mais populares (à exceção de um Chaplin e poucos), ou popularescos, eram, de imediato, colocados de escanteio. Até mesmo uma boa parte do cinema made in Hollywood (e de alto nível, Billy Wilder, Vincente Minnelli, Nicholas Ray, Robert Aldrich, George Cukor…) não era considerada, excetuando-se um John Ford, um William Wyler, entre poucos. Foi preciso que o revisionismo crítico praticado pela revista francesa Cahiers du Cinema descobrisse o valor de certos cineastas americanos, dando-lhes o relevo e o status que mereciam (Howard Hawks, Alfred Hitchcock, Nicholas Ray…).
Mas se, naquela época, as chanchadas eram ridicularizadas, o passar do tempo se encarregou de pô-las em seu devido lugar. Sérgio Augusto, por exemplo, jornalista e notável crítico de cinema, publicou um livro, Este mundo é um pandeiro, no qual faz uma exegese da importância da chanchada para o cinema brasileiro. E há teses e dissertações de mestrados e doutorados que contemplam as chanchadas como seus objetos de investigação e de estudo.
Há, sim, ainda a responder o questionamento anterior, preconceito em relação ao cinema mais popular. Andrea Ormond, do site Estranho Encontro, procura, por exemplo, através de uma investigação crítica achar atributos em muitos dos filmes que foram rotulados pejorativamente de pornochanchadas. A crítica, e aqui faço uma mea culpa porque também a exerço há mais de trinta anos, é, na maioria dos casos, arrogante e dona da verdade. Tem complexo de superioridade e de autoridade. É necessário mais humildade e mais generosidade. Foi o que aprendi em seu exercício. Muitos filmes dos trapalhões são toscos e simplistas, porém há alguns mais elaborados, mas a crítica os joga na vala comum do esquecimento sem, ao menos, ter o cuidado de observar um por um. Se, por um lado, há este preconceito, como afirmei anteriormente, é o tempo o crítico supremo que irá julgar a permanência de determinadas obras cinematográficas.

6) Quanto à descoberta de o cinema como uma “expressão de arte”, e o encantamento por gênios como Kurosawa e Fellini, o que exatamente acredita que diferencia suas obras das dos demais profissionais? Pois uma vez ouvi dizer que Kurosawa “sente seus filmes enquanto outros os vêem”, e se me fosse permitido encaixar alguém mais em tal posição, incluiria Truffaut (excepcionalmente por Jules et Jim e Baisers volés).

André Setaro – Há, cara Teeh, assim é se me parece, como diria Luigi Pirandello, três espécies de cineastas: o autor, o estilista, e o artesão. O cineasta-autor possui um universo ficcional próprio e um estilo particular, pessoal, uma, por assim dizer, marca registrada. O veículo cinematográfico é um veículo para suas idéias e pensamentos, e, nos filmes de um cineasta-autor, há constantes temáticas e constantes estilísticas, isto é, um tema que perpassa todos os filmes e uma maneira muito própria de manipular a linguagem cinematográfica. Ingmar Bergman, por exemplo, cineasta-autor, utiliza-se do cinema como um conduto para o seu pensamento e a sua visão de mundo. São autores realizadores como Federico Fellini, François Truffaut, Charles Chaplin, Luchino Visconti, Pier Paolo Pasolini, Alain Resnais (para mim, o maior cineasta vivo), Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu, Howard Haws, Hitchcock, Jean Renoir, Jean-Luc Godard, Glauber Rocha, entre muitos e muitos outros. Já o cineasta-estilista não tem um universo ficcional próprio, mas possui um estilo particular de se expressar estilisticamente, a exemplo de Steven Spielberg (o que tem a ver Parque dos dinossauros com A lista de Schinder?), John Frankenheimer, James Cameron, Sidney Lumet etc. O cineasta-artesão não tem nem universo ficcional nem estilo, mas sabe contar uma história com fluência narrativa, embora não se possa, a investigar a filmografia de um cineasta-artesão, verificar, nela, constantes temáticas nem estilísticas, pois não as possui. Em relação à sua pergunta, gosto muito de François Truffaut, principalmenteJules et Jim, que considero o seu melhor filme. Em relação a Beijos roubados/Baisers volés, considero-o simplesmente poético e encantador. De Truffaut gosto praticamente de toda a sua obra (há filmes menores, evidentemente), principalmente os citados e As duas inglêsas e o amor/Les deux anglaises et le continent, Um só pecado/Le peau douce,Os incompreendidos/Les quatre cents coups, A noite americana/La nuit americaine, et caterva. Tenho particular admiração por Jean-Luc Godard (da primeira fase: seu Acossado/A bout de souffle, 1959, é uma obra-prima) e Jacques Demy (Les parapluies de Cherbourg, Peau d’âme, Les demoiselles de Rochefort…).

7) E as semelhanças encontradas no neorrealismo italiano e o Cinema Novo? E quanto ao Cinema Marginal?

André Setaro - O neorrealismo italiano se caracterizou pelo despojamento estilístico e pela preocupação em retratar o drama do homem comum e as contradições da sociedade em que vivia. O brado “descer às ruas” de Cesare Zavattini, um dos principais teóricos e roteiristas neorrealistas, significava que os realizadores deviam abandonar os estúdios fechados para que fossem filmar in loco, isto é, nas ruas, abandonando os artifícios dos estúdios e a apreender a realidade em sua essência vital. A problemática social é um dos pontos importantes e a maneira pela qual os realizadores a colocam cinematograficamente, inclusive com a utilização de atores não-profissionais. Ao contrário do herói tradicional do cinema americano, o homem apresentado nos filmes neorrealistas é um não-herói, a diferir, também, do anti-herói da nouvelle vague, cujo maior exemplo talvez esteja no personagem de Michel Poiccard interpretado por Jean-Paul Belmondo em Acossado (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard.
O Cinema Novo também tinha os mesmos pressupostos básicos do neorrealismo: abordagem do drama do homem brasileiro, as contradições de uma sociedade injusta e desigual, filmagens in loco etc. Como exemplo pode ser citado Rio 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos. Vários dos filmes do Cinema Novo são exemplos desses pressupostos: Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, Os fuzis (1963), de Ruy Guerra. Já o Cinema Marginal não tem tais pressupostos. É um cinema anárquico, quase autodestrutivo, que experimenta muito a linguagem cinematográfica, um cinema que proclama o caos e pergunta pela saída de uma situação aparentemente fechada. Veja O bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, O anjo nasceu (1970), de Júlio Bressane, Meteorango Kid, o herói integalático (1969), de André Luiz Oliveira etc.



30 abril 2014

Um curso de cinema com Walter da Silveira

Walter da Silveira e Nelson Pereira dos Santos
O tempo, que nunca suspende o seu voo, traz consigo surpresas e, por vezes, impressiona pelo seu ritmo veloz. Lembro-me de um curso de cinema que tomei, ainda jovem, em 1968, e ainda estudante secundarista, ministrado por Walter da Silveira e Guido Araújo, há 41 anos (já?) que teve duração de um ano e foi o único de tal nível nestas quatro décadas que já evaporaram na passagem do tempo. Mas vale recordar, pois faz parte da História do Cinema na Bahia. Vários de seus alunos se tornaram realizadores cinematográficos e críticos. Não fosse o curso talvez não tivessem se apaixonado pelo registro das imagens em movimento.
O sonho de Walter da Silveira era implantar, na Universidade Federal da Bahia, um curso de cinema. Quando do reinado de Edgard Santos, chegou, inclusive, a publicar na imprensa artigos sugerindo a sua criação. Não sei se um curso de graduaçã, mas, talvez, a inclusão de disciplinas na grade programativa de uma Escola de Belas Artes, por exemplo. Em fins de 1967, no reitorado de Roberto Santos, o ensaísta conversou nesse sentido com o diretor do Departamento Cultural da UFBA - assim se chamava nesta época, Professor Valentin Calderon de la Barca, que passou a mensagem ao reitor que, ao contrário de seu pai, o mitológico Edgard, achou a idéia viável e exequível. Resolveu instituir um curso de cinema livre, com a duração de um ano. Não se exigia diploma universitário, mas havia um teste e um módulo de não sei quantos alunos. Estudante do Colégio Estadual da Bahia, o saudoso Central, ainda por fazer 18 anos, consegui passar e o frequentei, oportunidade na qual travei conhecimento com Walter da Silveira durante o ano letivo - já o conhecia do Clube de Cinema da Bahia de vista e de chapéu.

Eis que chega, no cais soteropolitano, um navio que vinha da Tchecoslováquia, trazendo, nele, Guido Araújo e sua esposa tcheca, Ludmila. Guido tinha passado neste país mais de 10 anos e conheceu Ludmila porque ela, estudante de Letras, se especializara na língua portuguesa. O criador das jornadas baianas (que já se encontra na trigéssima-sexta edição e acontecendo nesta semana em Salvador) tinha ido à Tchecoslováquia como uma espécie de prêmio por seu trabalho como assistente de Nelson Pereira dos Santos em Rio 40 graus e Rio zona norte - na verdade, segundo os créditos dos filmes, fora continuísta. Nelson pediu a Guido que levasse Rio zona norte para um festival internacional. E Guido foi ficando até se estabelecer em Praga, onde trabalhou em programas de rádio, entre outros afazeres na área cultural. Vale ressaltar, que Barravento, de Glauber Rocha, que ganhou o principal prêmio do Festival de Karlovy Vary, foi Guido quem o inscreveu.

Na chegada de Guido, estavam no cais a esperá-lo, além de Walter da Silveira, com o qual tinha relações de amizade, Ney Negrão e sua esposa, na época, a advogada Ronilda Noblat, Walter Pinto Lima, entre outros. Quem sabe bem dessa história é Waltinho. Desempregado, Guido precisava arranjar um trabalho e Walter da Silveira o colocou no Departamento Cultural da UFBA. A partir da entrada de Guido neste setor da universidade é que tem início a estruturação do Curso Livre de Cinema, através da criação do Grupo Experimental de Cinema (GEC)

Com duração de um ano, o curso foi dado à noite, às 20 horas, sempre às terças e quintas, na Casa da França que, depois que saiu do guarda-chuva da UFBa, veio a morrer lentamente na Mouraria, e o espaço deu lugar a Biblioteca Central, que no reitorado de Luiz Fernando Macedo Costa, construído um prédio grande no campus de Ondina, para lá se transferiu. E a Faculdade de Comunicação (Facom) passou a ocupar o antigo prédio da Casa da França.

Walter da Silveira ensinava às terças, História e Estética do Cinema, e Guido Araújo, às quintas, Teoria e Prática. Fui colega de muitas pessoas que se tornaram, depois, cineastas, como André Luiz de Oliveira, que fez Meteorango Kid entre outros, José Umberto (O anjo negro), José Frazão (Akpalô, O último herói do gibi, O mistério do Colégio Brasil... - por falar nele, onde anda Frazão?), e pessoas que estudaram, depois, cinema, a exemplo de Geraldo Machado, Jairo Farias Goes, etc. Vou parar por aqui para não omitir nomes. E Ney Negrão, que também tomou o curso.

Uma noite inesquecível foi quando Walter da Silveira levou Glauber Rocha para fazer uma palestra. O cineasta estava filmando em Milagres O dragão da maldade contra o santo guerreiro, que ganharia, no ano seguinte, um prêmio importante em Cannes. Glauber fez uma radiografia brilhante da situação do cinema brasileiro, lamentou que o governo do Estado lhe negou até uma kombi, não recebendo da administração Luiz Viana Filho um centavo sequer, respondeu perguntas. Estávamos em maio e Glauber estava com um casaco preto de couro.

Em 1969, por motivos de saúde, Walter não pôde mais dar aulas. Um câncer lhe corroía o corpo efêmero. Morreu aos 55 anos em novembro de 1970. Mas o Curso Livre de Cinema continuou por muitos anos comandando, apenas, por Guido Araújo.


27 abril 2014

Psicologia da recepção

Com o advento das novas tecnologias, dos novos suportes, a recepção das imagens em movimento tomou novos contornos. Se, há poucas décadas, elas apenas podiam ser contempladas dentro das salas escuras dos cinemas, e mediante o pagamento de ingressos, atualmente as imagens em movimento fazem parte do cotidiano do homem, e não seria exagero afirmar que ele nasce a vê-las através da televisão sempre ligada no hospital onde é dado à luz.

As imagens, portanto, estão em todos os lugares - em casa, na televisão, nos shoppings, nos anúncios em movimento - e a sala exibidora, que era dona da exclusividade delas, é mais um local onde são apresentadas.

Para ficar apenas no cinema, este tinha, em anos passados, uma total exclusividade. E a recepção das imagens em movimento causava, naquele que as via pela primeira vez, certo assombro, certa estupefação. É célebre um texto do escritor russo Gorki quando relata a sua primeira impressão ao entrar para ver um filme. Por causa da planificação, dos cortes, e neófito neste tipo de recepção, conta que o que viu foram pessoas despedaçadas, cabeças, pernas estraçalhadas, enfim, uma sucessão de fragmentos das partes do corpo humano e das coisas. O que era apenas um filme romântico se tornou, para ele, uma manifestação de terror.

Nunca me esqueço da primeira vez que fui ao cinema. As imagens também se me afiguraram deformadas até que consegui focá-las adequadamente na sua dimensão espacial.

Iniciada a minha trajetória de cinéfilo nos anos 50, em Salvador, onde moro até hoje, naquela época não havia sequer televisão. Imagens em movimento somente podiam ser vistas dentro das salas exibidoras. Se a Tv no Brasil surgiu em 1950, graças aos esforços de Assis Chateaubriand, na Bahia ela foi somente instalada em novembro de 1960, uma década depois, portanto.

Poucas os soteropolitanos que compraram o caro aparelho, privilégio de uma classe média mais alta. Mas as imagens eram ruins e sempre havia defeitos, como o ajuste do horizontal e vertical, que era de difícil colocação. Não existia videotaipe e os programas, a exceção de desenhos animados e seriados, eram todos produzidos na região. O que de certa forma era importante para o incentivo dos profissionais da área, mas os baianos ficavam sem ver os grandes programas televisivos do eixo Rio-São Paulo, que fizeram história.

Aqueles que se formaram cinematograficamente antes do advento do VHS e do DVD, ao tomar conhecimento destes, o espanto se deu pela possibilidade de se ter em casa os seus filmes preferidos, mas o assombro já tinha se manifestado quando do conhecimento do espetáculo cinematográfico. Mas a nova geração que nasceu, com o VHS e o DVD, não foi assombrada, por assim dizer, pelas imagens em movimento. Não teve a oportunidade de sentir a magia do cinema nem se assombrar com este, nem se assombrar na sua primeira vez dentro da sala escura.

Se, naquela época, muitos se assombraram, os filmes também permaneciam nos cinéfilos por vários meses. Alguns deles chegaram a viver de determinados filmes, a exemplo do crítico carioca Paulo Perdigão, que, força de expressão, passou a vida a ver Os brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens, chegando, inclusive, a ir aos Estados Unidos para entrevistar o grande diretor e trazer, na bagagem, um punhado da terra onde se deram as locações da citada obra, um western realmente inesquecível.

Isto quer dizer que o impacto da obra cinematográfica era imenso. E o espetáculo cinematográfico tinha duas características essenciais: ser fugidio e não se poder, nele, intervir na sua temporalidade. Fugidio porque um filme era lançado e levava apenas uma semana em cartaz, excetuando-se os de sucesso que dobravam e num período de cinco anos (prazo de validade do certificado de censura) eram reprisados. A grande maioria dos filmes, no entanto, ficava uma semana e se, por acaso, o cinéfilo estivesse doente ou viajando podia perdê-lo para sempre. Há obras importantes que, estreadas em Salvador, por estar doente (gripe, sarampo, catapora, coqueluche as doenças clássicas da época), ou em viagem, perdi-as para sempre, reencontrando agora, algumas, em DVD.

Esta característica do filme ser fugidio é importante. Na maioria das vezes, os filmes lançados em cinema de primeira linha, saiam destes e circulavam pelos poeiras (salas de segunda categoria) e, depois, pelos cinemas de bairro para fazer carreira no interior até que as cópias se desgastassem nesse interregno de cinco anos. Aconteceu de ter perdido o relançamento de Rastros de ódio (The seachers), de John Ford, e vim a saber que estava em cartaz em Jequié. Tomei um ônibus em direção a esta cidade baiana e consegui vê-lo na última sessão. De volta à rodoviária, por causa de um atraso na projeção (geralmente os filmes partiam, as luzes se acendiam), perdi o ônibus e tive que dormir num banco da rodoviária. Mas estava feliz: tinha visto Rastros de ódio.

Impossível acontecer fato semelhante nos dias atuais. E a impossibilidade de se intervir no tempo é outra característica do cinema de antigamente. O espectador, sentado na poltrona, era um escravo do tempo cinematográfico. Intervir no tempo somente seria possível se ele fosse à cabine de projeção e ameaçasse, com uma arma, o operador para parar a exibição.

Atualmente as coisas mudaram. Grandes filmes da história do cinema podem ser adquiridos para se ter em casa. E há a possibilidade de baixar qualquer filme pela internet. Os preços dos DVDs são acessíveis a qualquer um, principalmente nos magazines espalhados pelos shoppings, onde se pode comprar discos a 9,90. Os cinéfilos têm seus filmes preferidos nas prateleiras de seus lares. O caráter fugidio desapareceu e a interferência no tempo é total. Se, antes, o espectador era um Escravo da projeção, hoje ele é Senhor do que está a ver.