Seguidores

24 maio 2012

Cinderelo sem sapato

Mesmo quando Jerry Lewis já tinha começado a dirigir seus próprios filmes, demonstrando ser um autor completo e um dos mais desestabilizadores cineastas do cinema americano, ainda, por questão contratual, trabalhou, durante a primeira metade dos anos 60 com seu mestre Frank Tashlin (Cinderelo sem sapatos, Detetive mixuruca, Errado p'ra cachorro, O bagunceiro arrumadinho). O mensageiro trapalhão (The bell boy, 1959), primeira obra autoral, dá início aos filmes nos quais Lewis é o regente total: O terror das mulheres (The ladie's man, 1961), Mocinho encrenqueiro (The errand boy, 1961), O professor aloprado (The nutty professor, 1963 - para muitos sua obra-prima), O otário (The patsy, 1964 - para mim a sua obra-prima), O fofoqueiro (The big mouth, 1967), entre outros até que pára na década de 70 por problemas de saúde, vindo a    fazer apenas dois ou três filmes nos anos 80.

Cinderelo sem sapato (Cinderfellla, 1960), cuja sequência de dança, magistral, está aqui no vídeo, é uma comédia bem tashliana. No elenco, Judith Anderson, como a madrasta malvada, Henry Silva, Ed Wynn, Robert Hutton, Anna Maria Alberghetti, como a princesa. E figurinos de Edith Head.

23 maio 2012

"O bandido da luz vermelha", de Rogério Sganzerla




Rogério Sganzerla foi, sem dúvida, um dos mais coerentes e íntegros realizadores do cinema brasileiro, além de possuir uma pulsão criadora rara que o integra na seleta galeria dos cineastas mais criativos da cinematografia nacional. A sua obra de estréia, O Bandido da Luz Vermelha (1968), traumatizou duramente os realizadores e pode ser considerada um marco ou, até mesmo, um filme divisor de águas. Lançado pouco antes do Ato Institucional número 5 – que cerceou por muitos anos qualquer manifestação livre no Brasil, modelou um tempo e uma época. Se formalmente continha elementos explosivos e inovadores dentro do ponto de vista da linguagem – a narrativa como um programa de rádio dos mais bregas, os cortes brilhantes, a fragmentação com a adição de material de procedência diversa como recortes de jornais, histórias em quadrinhas, filmes, etc, também continha uma significação exemplar propícia para o momento histórico no qual viviam os brasileiros amordaçados pela ditadura implacável. O Bandido da Luz Vermelha se insurge contra os postulados cinemanovistas – que procuravam retratar a realidade brasileira em tom grave – e instaura a anarquia, a iconoclastia pela impotência de seus criadores no estabelecimento de um cinema representativo. Como diz seu personagem num determinado momento do filme: “A gente quando não pode fazer nada se avacalha e se esculhamba”. Melhor retrato do país impossível. Melhor explosão de criatividade, difícil. O Bandido da Luz Vermelha desencadeou uma onda de filmes que foram intitulados de ‘marginais’, ou, mesmo, ‘udigrudis’. O carro-chefe é este filme de Rogério Sganzerla, ainda que alguns críticos estudiosos desse momento prefiram considerar A margem (1967), de Oswaldo Candeias como o ponto de partida do ‘Cinema Marginal’


Se o trauma foi imenso, Sganzerla ofereceu as coordenadas para a continuidade de um cinema autoral que estaria morto com o advento do Ato Institucional 5. Dificilmente existiria, por exemplo, na Bahia, Meteorango Kid, O Herói Intergalático (1970), de André Luiz Oliveira, ou Caveira My Friend (1969), de Álvaro Guimarães, ou, mesmo, o média Vôo Interrompido (1969), de José Umberto, sem a existência anterior de O Bandido da Luz Vermelha, obra insólita e brilhante, renovadora, que pode ser incluída entre os cinco maiores filmes brasileiros de todos os tempos. A fita de Sganzerla é um brado retumbante de artistas que, asfixiados, tentam, pela verve da criação, respirar o cinema em seus vinte e quatro quadros por segundo. Sganzerla morreu com o estigma do ‘primeiro filme’, pois passou a vida a ser cobrado por um outro ‘bandido’ que, na verdade, nunca mais apareceu, apesar de suas tentativas de renovação das estruturas lingüísticas em obras posteriores. Mas nada que se pudesse equiparar a esta obra de estréia de um cineasta que contava, apenas, 22 anos. E que, desde os 16 já assinava críticas cinematográficas no sisudo O Estado de S.Paulo.

Mas Sganzerla, se em O Bandido da Luz Vermelha, sua indiscutível obra-prima, estabelece um cinema de montagem, com tomadas rápidas, pulsação alucinante, já em A Mulher de Todos, filme seguinte, de 1969, aciona um freio no conceito de duração. A radicalidade chega em Sem Essa Aranha (1970), quando abandona o corte em movimento para dar lugar a um cinema muito mais de mise-en-présencedo que de mise-en-scène. Se O bandido da luz vermelha é o supra-sumo desta, os filmes radicais de Rogério Sganzerla dos anos 70 são arredios à fluência narrativa, propõem ao espectador estar em presença do que é registrado, enfim, são obras que se caracterizam pelo estabelecimento do plano-seqüência como moto dainaçãoInação, porém, do que se poderia chamar do discurso fílmico porque, na essência, a ação está dentro da tomada. Em Sem essa aranha, se não há falha de memória, apenas nove são os planos-sequências. Em particular, a festa no quintal de uma casa com o próprio rei do baião, Luiz Gonzaga, a promover o agito enquanto a protagonista, Helena sempre Helena, perambula meio desesperada. Em outro momento, é Jorge Lordelo (Zé Bonitinho) quem compõe o plano-sequência, que depois o repetiria, quase no mesmo tom, em Abismu.

Sganzerla, após brilhar no cinema de mise-en-scène, com sua magistral obra de estréia, parte célere para um processo de radicalização tal que se poderia ver, nisto, uma tentativa homicida de matar a mise-en-scène, arrebentando as estruturas de sua linguagem para fazer emergir, quase como uma totalidade, o sentido da mise-en-présence. O cinema é, para Sganzerla, uma narrativa dentro do plano, mas não como faz Michelangelo Antonioni com sua desdramatização em obras-primas como A aventuraA noite, ou O eclipse, entre outras, pois aqui há um fio condutor. Sganzerla parte este fio condutor e deixa os planos-seqüências quase como se fossem filmes autônomos.

22 maio 2012

Dor e beleza em Carl Theodor Dreyer

A palavra (Ordet, 1954), de Carl Theodor Dreyer: um monumento da arte do filme. Cliquem na imagem para vê-la na sua beleza e dimensão exata.

Antes do DVD, ver um filme do dinamarquês Carl Theodor Dreyer, principalmente para o soteropolitano, implicava numa viagem a São Paulo ou, caso quisesse conhecer a obra completa, uma ida à Cinematheque Française, em Paris, ou ao Museu de Arte Moderna de Nova York (Moma). A distribuidora Magnus Opus (http://www.magnusopusdvd.com.br) já disponibilizou seis filmes deste monstro sagrado do cinema, mas, infelizmente, difícil encontrá-los nas locadoras. O lançamento do pacote Dreyer é um acontecimento excepcional, pois oferece àquele amante da arte do filme a oportunidade de conhecer um dos mais expressivos autores de toda a história da chamada sétima arte. Creio mesmo que o acontecimento mais importante do ano em termos de arte, expressão, beleza e cinema. Os filmes do pacote, que podem ser adquiridos separadamente, são os seguintes: A quarta aliança da Senhora Margarida(Praesteenken, 1920), Mikael (Michael, 1924), O martírio de Joana D’Arc (La passion de Jeanne D’Arc, 1928), Dias de ira (Vredens dag/Dies irae, 1943), Apalavra (Ordet, 1955), e Gertrud (idem, 1964). Há, ainda, um documentário precioso sobre Carl Theodor Dreyer, Radiografia da alma (My métier, 1995), de Torben Skjodt Jensen, que focaliza o processo de criação do autor. Falta uma obra imprescindível,Vampyr (1932), o primeiro filme sonoro de Dreyer (mas que pode já estar sendo lançado), obra-prima para muitos, uma admirável recriação visual da atmosfera entre opressiva e lírica que circunda uma história de amor inteiramente presidida pela idéia da morte.

O ensaísta baiano Walter da Silveira, quando enviou para a antiga revista Filme/Cultura, em 1968, a relação de seus dez maiores filmes, colocou La passion de Jeanne D’Arc em primeiro lugar. O crítico tinha verdadeira adoração pelo cineasta dinamarquês. Dreyer morreu, no entanto, sem alcançar o seu tão sonhado projeto, o de filmar a vida de Jesus Cristo. Sobre Gertrud, o último filme, escreveu Jean-Luc Godard no Cahier du Cinema: “Gertrud iguala em loucura e beleza as últimas obras de Beethoven”. É preciso dizer, portanto, que o DVD está a funcionar como um resgate do grande cinema. Mas vamos ver aqui alguma coisa sobre A palavra (Ordet).

 Seguindo o estilo de Dies Irae – planos-seqüências e recitações, lentos movimentos de câmera e intercalação de breves close upsA palavra (Ordet) representa a plenitude de Carl Theodor Dreyer no tocante à harmonia da complexidade, a ascese de sua dinâmica espiritual e artística e à sabedoria da realização. Como em La passion de Jeanne D’Arc(1928) e Dies Irae, encontramos temas iniciais que se colocam em prosseguimento, como, por exemplo, emOrdet, uma acusação da intolerância e o orgulho dosexclusivistas da verdade. A morte constitui o vértice dramático, mas, também, aqui, Dreyer adota uma clara postura na ordem do sobrenatural. Com uma sinceridade conseqüente, Dreyer conduz o filme até o milagre, o qual só é possível, em seu caso, como conseqüência de um ato de fé total, puro, sensível e compartilhado. Desta forma, o realizador dinamarquês se situa acima de seu tempo e do lugar: a morte precede naturalmente o milagre, e este determina a reconciliação consciente e coletiva. Ordet se desenrola como uma sinfonia de sensibilidade e de austeridade, em que o orgulho sectário de Morten e Peter se harmoniza com a despreocupação religiosa de Mikkel, o despertar amoroso de Anders, o sossegado intimismo de Ingers e a loucura de Johannes, cujas récitas proféticas salmodiam o filme, levando-o com grande fluidez até a cena final, a do milagre. Neste momento, Johannes recupera toda a sua lucidez, a plena razão, e, a falar com a menina, sua sobrinha, com o apoio desta, tem força suficiente para conseguir a ressurreição desejada.

Em uma obra de tanta seriedade temática e categoria estética, a indiferença só pode representar sintoma de incultura (como alguns, que se dizem entendidos de cinema, e que assistiram ao DVD de Ordet, e viram nela uma obra acadêmica e ultrapassada, pessoas, aliás, que costumam freqüentar com a assiduidade das bestas as salas do circuito Bahiano) e, desde logo, de ausência total de sensibilidade artística. Ordet, monumento agora disponível em disco, se baseia na obra homônima de Kaj Munk, pastor protestante assassinado pelas tropas de Hitler que ocuparam seu país, e que, desafiando-as, ao proclamar certas verdades do púlpito de sua igreja, foi logo morto.

A ação de Ordet se localiza num povoado dinamarquês. O velho Morten Borgen (Henrik Malberg) e seus filhos Mikkel (Emil Haas Christensens) e Andrés (Cay Kristiansen) buscam o terceiro filho de Borgen, Johannes (Preben Rye), que em sua loucura afirma ser Jesus Cristo. Inger (Birgitte Federspiel), esposa de Mikkel e que está grávida, tenta consolá-los. Enquanto Borgen discute com seu vizinho Peter (Ejner Federspiel), pertencente a uma seita religiosa distinta, Inger sofre uma urgente intervenção médica. O caçula dos Borgen quer se casar com a filha de Peter, mas este reage e não aceita, obrigando o velho a ir discutir com ele. Enquanto ele conversa com o outro, o recém-nascido de Inger morre e esta não tarda em seguir-lhe, morte, aliás, que havia sido profetizada por Johannes. Durante os preparativos do funeral, Mikker não pode conter a sua dor, quando aparece Johannes, lúcido, a lhe reprovar sua falta de fé. E, através de sua intervenção, Inger volta à vida.

A temática de Dreyer se centra no ser humano como sujeito de valores absolutos. O homem é observado psicologicamente e a sua dignidade defendida frente a toda intolerância, coação física ou moral. Através da tolerância, da bondade e do sofrimento, chega à idéia abstrata do amor e da pureza espiritual, assim como, no âmbito religioso, à fé, e no metafísico, às relações do homem com Deus. Sua técnica narrativa, influenciada em suas origens pela escola cinematográfica alemã, expressionista, e pelos principais criadores do cinema soviético, adquire caracteres próprios e inconfundíveis a partir de La passion de Jeanne D’Arc. Mediante o uso de diversos elementos, em especial os movimentos lentos de câmera, serenidade expositiva, grande direção dos atores, iluminação difusa umas vezes e contrastada em outras, utilização do silêncio como valor dramático, e progressiva dramatização da ação interna, passa, imperceptivelmente, do físico ao moral, do cotidiano ao existencial ou metafísico. Para Dreyer, o estilo é a incorporação da alma do artista à obra do criador, isto é, sua personalidade. Segundo o criador de Ordet, sem estilo não há obra de arte.

P.S:
(1) Percebe-se, na visão dos filmes de Carl Dreyer, que Ingmar Bergman, nórdico como ele, foi fortemente influenciado por suas obras. Ao contrário do dinamarquês, homem religioso e imbuí do de profunda fé, o sueco, apesar de filho de pastor protestante e educado severamente nos temas religiosos, era um ateu e, também, um descrente da vida e do homem. Para o autor de Morangos silvestres, estamos condenados a viver num inferno, e o inferno, como na visão sartriana, são os outros. Se há uma disparidade entre os realizadores quanto a fé, há, por outro lado, uma similaridade entre alguns dos filmes de Bergman da fase madura e as obras dreyerianas.

(2) Carl Theodor Dreyer nasceu em Copenhague (Dinamarca) em 1889 e  veio a falecer nesta mesma cidade em 1968, quando já tinha captado todos os recursos para o sonho de sua vida: filmar a trajetória de Cristo na Terra. Morreu com 79 anos. Gertrud, seu canto de cisne, rodado em 1964, comparado por Godard às últimas obras de Beethoven, despreza qualquer influência do cinema que lhe era contemporâneo: antisnob, lento, seco, direto, tendo a palavra como veio condutor.

20 maio 2012

Gregory Peck: legenda do cinema


Os chamados ídolos da tela, título de um álbum de figurinhas que apareceu nos anos 50, gerando coqueluche, praticamente já desapareceram. Elizabeth Taylor, considerada a última grande estrela do cinema, já se foi há um ano. Ela, Marlon Brando, Gregory Peck, entre outros de sua geração, que desapareceram na década passada - não esquecer que a segunda década do século XXI começa em 2011 - pertencem a outra cultura onde ainda se pode verificar a presença de princípios éticos norteadores de comportamentos, quando o cinema ainda possui uma qualidade que se encontra completamente diluída, hoje, nos arruídos da mediocridade dos blockbusters, na metástase absoluta da tendência "videoclipadora".
É a personalidade de Gregory Peck que o faz singular, atraente, tornando-o uma figura emblemática do cinema americano. Até Rita Lee, numa música, não resiste a seus encantos. Mas a questão primordial é a que interroga se Peck teria a mesma aceitação no caldo cultural em frangalhos da contemporaneidade - o uso deste termo é a contragosto e com acentos pejorativos. Não, Gregory Peck - assim como Cary Grant, Clark Gable, Robert Mitchum, John Wayne, entre outros - não teria vez na algazarra debilóide de um cinema dos tempos que correm.
Padrão de refinamento, de um tempo no qual existe uma finesse nas relações humanas, quando o processo degenerativo da cultura ocidental ainda não se tem pontificado como norma de consumo e de conduta, quando o cinema é visto com poesia e encantamento, quando o cinéfilo ainda não é o consumidor indiferente e bagunceiro dos dias atuais, Peck representa o homem ético, a elegância, o charme, o aplomb, o cavalheirismo, a solidariedade e a generosidade do ser.
No Festival de Cannes de 2000, Gregory Peck tem a sua derradeira grande aparição pública, quando é homenageado pela direção do evento, após a exibição do documentário Conversation with Gregory Peck. Subindo ao palco, Gilles Jacob, o sisudo crítico e diretor do festival, apresentou-o como Monsieur Cinema, e o ator é aplaudido de pé por mais de 15 minutos numa demonstração inequívoca da admiração geral. Em seguida, a entrevista coletiva mostra um Peck bem-humorado e bem disposto e jornalistas que de provocativos com os outros passam à reverência diante do monstro sagrado. "Ele é o próprio cinema", escreve um deles para o Le Figaro.
Nasce este inexcedível Gregory Peck em La Jolia, Califórnia, em 1916, batizado com o nome de Gregory Eldred. Terminada a adolescência, estuda na Universidade da Califórnia, mas, formado, decide se aventurar pelos cursos de arte dramática com o objetivo de ser um ator. No proscênio, atua em várias peças e, numa delas, é descoberto por um "olheiro" da Fox, que o convida a trabalhar no cinema, em 1944. As chaves do reino (The keys of kingdom), seu segundo filme, dirigido por John M. Stahl, lhe dá, de saída, consagração popular.
Trabalha com Alfred Hitchcock em Quando fala o coração (Spellbound, 1945) - em 47, o mestre o chama para fazer Agonia de amor (The Paradine case), e alcança prestígio inigualável como o irmão rebelde de Duelo ao sol (Duel in the sun, 1947), de King Vidor, mas, na verdade, filme de David Selznick, o poderoso produtor de ...E o vento levou. Incompreendido na época, pelo excesso de sensualidade e violência (Jennifer Jones explode como fêmea fatal caçada como uma fera), Duel in the sun é um western atípico que se configura como uma superprodução, quando o gênero americano por excelência tem sempre assegurados mirrados recursos para a sua produção. Não se pode esquecer, também, do belíssimo Virtude selvagem (The yearling, 1946), de Clarence Brown.
Em 1947, Gregory Peck é incluído no grupo dos dez astros e estrelas mais queridos do cinema americano e, com Elia Kazan, trabalha em A luz é para todos (Gentleman's agreement), filme corajoso para a época onde o ator faz um jornalista que se faz passar por judeu para investigar o anti-semitismo no seio da sociedade americana. Ganha os Oscar de filme, direção e atriz coadjuvante (Celeste Holm). No ano seguinte, encontra seu amigo William Wellman, que o convida para participar de um western: Céu amarelo (Yellow sky), com Richard Widmark, Anne Baxter, obra na qual alguns críticos enxergam ser uma adaptação disfarçada de A Tempestade, de Shakespeare: seis homens em um deserto e uma mulher procuram desesperadamente por ouro roubado.
Em 1949, o ator decide estabilizar a carreira ao encarnar quase sempre tipos de heróis melancólicos e reflexivos, com seu olhar triste e desencantado, como o oficial de Almas em chamas, de Henry King, realizador com o qual tem profícua colaboração: O matador (The gunfighter, 1950), filme sobre um pistoleiro (Peck) que decide abandonar o ofício, mas, por circunstâncias alheias à sua vontade, vê-se obrigado a mostrar, mais uma vez, que é o gatilho mais rápido do oeste;David e Betsabá (David and Bethsheba, 1951), um épico à la DeMille, mas modelado com gosto e requinte por King e que tem, como a heroína, a bela e talentosa Susan Hayward.
As outras parcerias com King incluem As neves do Kilimanjaro (The snows of Kilimanjaro, 1952), com Tyrone Power, Susan Hayward, Ava Gardner, grande sucesso de bilheteria baseado em livro de Hemingway; e um western de primeira,Estigma da crueldade (The bravados, 1958), no qual há um itinerário a percorrer, uma viagem imperiosa para liquidar aos quatro malfeitores que matam a sangue frio a esposa de Peck. A vingança é feita um por um e o final é surpreendente como surpreendente é este western desprezado pela crítica na ocasião de seu lançamento, mas que, revisto, revela todo o potencial de King como articulador demise-en-scèneThe bravados, de certa forma, por causa de sua violência inusitada, prenuncia Sam Peckinpah e Meu ódio será a tua herança (The wild bunch, 1968), com dez anos de antecedência.
Com o grande Raoul Walsh trabalha em O falcão dos mares e O mundo em seus braços, mas é em 1953 que faz uma das melhores comédias românticas do cinema americano: A princesa e o plebeu (Roman Holiday), estréia de Audrey Hepburn no cinema, como a princesa que decide sair escondida do palácio, para fazer um tour anônimo pela Roma dos anos 50, quando encontra, por acaso, um jornalista americano (Peck, evidentemente). O encontro dos dois acende a chama da paixão, mas ela tem que voltar, ficando, apenas, o recuerdo. William Wyler, realizador notável, tem a necessária dose de equilíbrio para fazer de Roman Holiday um conto de fadas moderno. Obra de puro encantamento e impossível de ser feita atualmente, pois referência de um tempo, de uma época, de um estado de espírito que o vento impiedoso da contemporaneidade fajuta há muito levou.
Peck é o Capitão Ahab em Moby Dick (1956), de John Huston, baseado no antológico monumento literário de Herman Melville. Se para Huston viver é lutar, a transposição das páginas do livro é, também, um risco e uma luta. Consegue, porém, convencer - embora não se possa comparar a obra literária com a cinematográfica.
E, após enfrentar os mares bravios de Moby Dick, Peck transfere-se ao refinamento nova-iorquino com o esteta Vincente Minnelli em Teu nome é mulher (Designing woman, 1957) ao lado de Lauren Bacall. Minnelli é o máximo em sofisticação e suas comédias são pérolas de bom gosto. Aqui, Peck é um jornalista esportivo casado com uma desenhista de moda e os conflitos que advêm daí dão o timing da comédia - este colunista, abrindo um parêntesis, coloca, entre os dez melhores filmes que já viu, um Minnelli: Deus sabe quanto amei (Some came running, 1958), com Frank Sinatra, Dean Martin, Shirley MacLaine. Uma obra-prima!
Outro grande western estrelado por Gregory Peck é Da terra nascem os homens (The big country, 1958), fotografado em Cinemascope Deluxe, dirigido, novamente, por William Wyler. Exemplo de um cinema de gênero de um cineasta perfeccionista que não desvia a estrutura narrativa de sua fluência magnética, vê-se, aqui, Peck como um homem urbano que tem que enfrentar, em uma fazenda rural, rústicos criadores de gado. No elenco, Charlton Heston, Burl Ives - que ganhou o Oscar por este desempenho -, Jean Simmons, Carroll Baker. Segue, na trajetória do grande ator, A hora final (On the beach, 1959), de Stanley Kramer, e, Os canhões de Navarone (The guns of Navarone, 1961), de J. Lee Thompson, filme de guerra com elenco estelar.
O melhor filme de Gregory Peck, no entanto, e pelo qual ganha o Oscar de melhor ator, é O sol é para todos (To kill a mockingbird, 1962), de Robert Mulligan, cineasta sensível e delicado, dotado de uma mise-en-scène evocativa e poética - Peck viria a trabalhar novamente com ele no insólito A noite da emboscada (The stalking moon, 1969).
Em To kill a mockingbird, que, traduzido, significa Para matar um rouxinol, a história é contada sob o ponto de vista de uma criança que evoca sua infância numa cidadezinha preconceituosa do Alabama na década de 20, quando seu pai, um advogado, defende um negro injustamente acusado de violentar uma branca.