Seguidores

30 dezembro 2010

Meus filmes favoritos em 2010


Vincere de Marco Bellocchio. Clique para ampliar.

Publicado originariamente na revista eletrônica Terra Magazine em 28 de dezembro de 2010.
Com quase 40 anos como colunista cinematográfico, lembro-me como era difícil, chegada a hora de fazer a lista dos indefectíveis 10 melhores filmes do ano, como era árdua realizar a triagem. Havia, para se ter uma idéia, mais de 30 filmes que mereciam entrar na relação, mas, a lista, não se sabe por que, sempre restrita a uma dezena, dava dor de cabeça ao colunista. A situação, nos dias que correm, é totalmente diferente. Há de se suar para se achar 10 filmes convincentes e capazes de figurar numa lista dos melhores filmes do ano. Neste ano, por exemplo, encontrei somente 8 filmes que merecem, realmente, entrar numa relação desse tipo, e mesmo assim...
O que conduz a este resultado paradoxal: os dez melhores filmes de 2010 são oito. Há outros filmes que gostei, mas que não merecem a lista ou a lista não os merece, a exemplo de Um homem sério, dos Irmãos Coen, O segredo de seus olhos, de Juan José Campanella, A ilha do medo, de Martin Scorcese, O homem que engarrafava nuvens, de Lírio Ferreira. Um filme que, tenho quase certeza, estaria no topo seria, se o tivesse visto, Tetro, de Francis Ford Coppola. Também Film socialismo, de Jean-Luc Godard, somente o vi depois de ter já elaborado a lista. 
1.) VINCERE (Vincere, 2009), de Marco Bellocchio, com Vittoria Mezzogiorno, Filippo Timi, Fausto Russo Alezi, Michela Cescon. Filme operístico, realizado por um dos mais talentosos cineastas italianos da atualidade (De punhos cerrados, O diabo no corpo, Bom dia, noite), Vincere acondiciona as três constantes temáticas do autor: o sexo, a loucura e a história italiana, na história da primeira mulher, Ida Dalser, do ditador Benito Mussolini que, ao alcançar o poder, rejeita-a e, para fugir à sua perseguição, interna-a num sanatório. Obra de pathos, ópera e cinema delirante.
2.) O ESCRITOR FANTASMA (The ghost write, 2009), de Roman Polanski, com Ewan McGregor, Pierce Brosnan, Kim Cattrall. Ainda que sem a genialidade, a surpresa, a inovação, o frescor, do pretérito, Polanski é um realizador de extraordinário domínio formal de seu veículo comunicante. Sua habilidade está aqui presente nesta obra derradeira que mereceu, no Festival de Berlim, o troféu de melhor diretor. Um homem (Ewan McGregor) é contratado para reescrever e terminar um livro de memórias de um ex-primeiro-ministro britânico (interpretado pelo ex-007 Pierce Brosnan), porque o ghost writer anterior cometera suicídio. A tarefa, porém, se mostrará cheia de acidentes e reviravoltas. Cinema e ao mesmo tempo prazer do cinema.
3.) A FITA BRANCA (Das weisse band, 2009), de Michael Haneke, com Sussane Lothar, Gabriela Maria, Ulrich Tukur, Joseph Bierbchler. Palma de Ouro no Festival de Cannes, filme estranho e insólito (que dá a impressão de uma obra de Dreyer pela plástica das imagens e pela criação do clima, mas sem a espiritualidade deste, muito pelo contrário), Das weisse band reflete sobre as origens do mal numa sociedade rígida, preconceituosa e extremamente rigorosa nos seus mandamentos educacionais. A ação se passa em 1913, numa vila protestante na Alemanha. Crianças e adolescentes de um coral, educadas com rigor, são vítimas de estranhos acidentes que tomam a forma de um ritual punitivo.
4.) BAARIA (Baaria, 2009), de Giuseppe Tornatore, com Francesco Scianna, Margareth Madè, Ângela Molina. Tornatore, diretor de Nuevo Cinema ParadisoO homem das estrelas, entre outros, é um dos poucos cineastas italianos contemporâneos que fazem jus à tradição do belo cinema de seu país. Baaria é um painel admirável sobre quatro décadas da história italiana, através do acompanhamento de seu personagem desde os anos 30, quando criança problemática, passando pela Segunda Guerra Mundial, até o seu romance proibido e seu ingresso no Partido Comunista Italiano. Saga épica, a vida e a morte, o amor e o ódio. Extraordinária! Partitura do maestro Ennio Morricone.
5.) O BRILHO DE UMA PAIXÃO (Bright star, 2009), de Jane Campion, com Abbie Cornish, Thomas Sangster, Paul Schneider. Neozelandesa que se notabilizou porO piano, ainda que não muito considerada pela crítica arrogante em seus filmes posteriores, mostra, aqui, em O brilho de uma paixão, uma extrema sensibilidade e capacidade narrativa poética para contar o relacionamento do poeta inglês John Keats, um amor poético etéreo e platônico, com a jovem Fanny. O que encanta no filme é o equilíbrio narrativo, e, nos filmes de Campion a arte é mais do que uma forma de expressão, é a forma como personagens transpõem barreiras físicas ou emocionais.
6.) GUERRA AO TERROR (The hurt locker, 2009), de Kathryn Bigelow. Neste filme inesperado, que venceu o Oscar, realizado por uma mulher que foi casada com James Cameron (Avatar), a paisagem da guerra é uma paisagem insípida, desoladora, ainda que com os riscos iminentes, e que faz lembrar algumas obras do grande Samuel Fuller para quem o único heroísmo que existe num conflito bélico é a sobrevivência. Soldados que integram o batalhão anti-bombas no Iraque comem o pão que o diabo amassou. Cada dia concluído de trabalho é um dia a mais na vida deles. Bigelow expõe o vazio existencial da guerra e mostra o aspecto viciante ao qual estão expostos os soldados de um ponto de vista até, poder-se-ia dizer, psicanalítico.
7.) SEMPRE BELA (Belle toujours, 2006), de Manoel de Oliveira, com Michel Piccoli, Bulle Ogier, Lawrence Foster. Como se poderia fazer uma homenagem ou uma revisão de um clássico como A bela da tarde (Belle de jour), de Luis Buñuel? O resultado seria previsível: uma catástrofe. Mas o centenário diretor português Manoel de Oliveira assim não considerou e fez um filme de certa forma surpreendente. Quase quarenta anos depois, as duas personagens de Belle de jour voltam a se encontrar (Piccoli conserva o seu papel original). Mas ela tenta por todos os meios evitá-lo. Oliveira é um cineasta que não pode ser comparado com seus pares, mas separado.
8.) TROPA DE ELITE 2, de José Padilha, com Wagner Moura, André Ramiro, Maria Ribeiro. Nascimento (Wagner Moura), agora coronel, foi afastado do BOPE por conta de uma mal sucedida operação. Desta forma, ele vai parar na inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Contudo, ele descobre que o sistema que tanto combate é mais podre do que imagina. A corrupção da polícia é mostrada como uma ferramenta de um jogo de poder muito mais complexo. Padilha mostra que tem poder como metteur-en-scène, e, abstraindo-se juízos de valor ideológicos, o filme é eletrizante. Já superou, na bilheteria, Dona Flor e seus dois maridos, como o filme brasileiro mais visto em todos os tempos.

28 dezembro 2010

"A cidade dos desiludidos", de Vincente Minnelli

Em Uma viagem pessoal pelo cinema americano, de Martin Scorsese (com excelente tradução de José Geraldo Couto), o realizador de Taxi driver traça um panorama da evolução da cinematografia estadunidense através de seu gosto pessoal. O livro, editado pela Cosanaify, é uma aula de cinema e pode ser adquirido nas melhores livrarias do Brasil. Nesta obra, e esta a razão de tê-lo citado, Scorsese destaca A cidade dos desiludidos (Two weeks in another town, 1963), de Vincente Minnelli, com Kirk Douglas, Cyd Charisse, Edward G. Robinson, Claire Trevor, George Hamilton, Rossana Schiaffino etc. Minnelli, assim como fizera dez anos antes no extraordinário Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953), com o mesmo Kirk Douglas, realiza uma visão ácida e crítica da indústria de cinema em Hollywood. E em Two weeks in another town sua crítica vai mais além, porque mostra uma Hollywood já em franca decadência. Tout est dans la mise-en-scène. O vídeo que mostro abaixo, do You Tube, foi tirado de uma versão do trailer em VHS.



26 dezembro 2010

Olhando para o bico de meu sapato

Quadro de Edward Hooper
Com a decadência dos suplementos culturais no jornalismo brasileiro, a crítica de arte sofreu severo revés, e, aí, incluindo as artes plásticas, cinema, teatro, literatura, e et caterva. Já se foi o tempo no qual os jornais dedicavam cadernos imensos, verdadeiros calhamaços, mas calhamaços agradáveis, dentro dos quais se encontravam, em letras miúdas, ensaios e artigos brilhantes que o leitor, feita a leitura, e sem o contemporâneo afogadilho da pressa, ficava com pena de dar ao lixo as gazetas do dia anterior. A imperiosa necessidade, porém, de não se puder acumular tudo, era resolvida com a tesoura, que recortava as matérias mais interessantes, que, arquivadas em pastas, de vez em quando se davam às consultas.

O jornalismo cultural foi definhando com o passar do tempo, mas, ainda nos anos 80, sem o vigor das outras décadas, ainda se podia ver, aqui e ali, reflexões críticas. Com o avanço tecnológico e a instauração do império do audiovisual, e para ficar, apenas, nos limites daquilo que um dia se chamou de crítica cinematográfica, esta se metamorfoseou em resenhas e comentários, deixando de se constituir em ensaios ou, mesmo, críticas na expressão do vocábulo. Há muito tempo, hoje, para se ver imagens – mas ver sem contemplar, e, pouco, muito pouco, para ler. As humanidades estão mortas, escreveu há alguns anos, na Folha, Nelson Ascher. Tudo, nesta contemporaneidade tão deplorável, está dirigido para o pragmatismo, para o imediato, para o consumismo desenfreado e doentio.

A crítica de cinema praticamente desapareceu da imprensa escrita, e, em seu lugar, estão as resenhas, que orientam em função do consumo e sempre acopladas ao mercado, à programação do circuito comercial. Os estudos mais sérios sobre o cinema se encontram nas universidades, mas perderam, com o jargão acadêmico, o prazer da leitura que, antes, proporcionavam críticos como Walter da Silveira, Paulo Emílio Salles Gomes, Francisco Luiz de Almeida Salles, José Lino Grunewald, Antonio Moniz Vianna, entre muitos outros. O cinéfilo fica então na condição de um sem-crítica, pois, geralmente, não tem acesso às elucubrações teóricas fabricadas nos desvãos da academia e, abandonado pela crítica, amarga as resenhas insossas. Há o espaço virtual, onde já se pode contar com boas críticas, mas me reservo, aqui, aos jornais e revistas.

Acontece que os críticos de cinema mais antigos eram homens cultos, preparados, que sabiam escrever. Novamente se volta à questão de que as humanidades estão mortas, pois nas escolas os professores generalistas, de ampla cultura, causers, deram lugar aos pragmáticos e aos especialistas. Uma aula de Direito, há algumas décadas atrás, era uma aula de filosofia, de história, acionada por um mestre que dominava a oratória. Nos dias atuais, que viceja no pântano contemporâneo, existem os ‘técnicos’ em Direito, especialistas, preocupados com este tão pestilento e ameaçador ‘mercado’, que virou o Deus da pós-modernidade inculta.

A sociedade de consumo determina a degenerescência do saber, promovendo a apatia genuflexória, o entusiasmo fogo-de-palha, os arruídos do vácuo. A ver tudo isso, a melhor opção talvez seja, como a de um personagem de Luis Buñuel, passar a maior parte do tempo a olhar o bico de seu sapato. Vai-se a um cinema como se vai a um fast food, e a sala exibidora, voltando, mais uma vez, ao assunto, virou mesmo um fast food. E as livrarias, ‘butiques’ mal assanhadas e mal ajambradas, de livros capengas que mistificam o saber na tentativa de uma frustrada e enganosa auto-ajuda. O politicamente correto ceifa o humor e restringe a liberdade de expressão, condicionando os seres a uma postura ‘certinha’ e desinteressante. E aqueles que pensam estar à vanguarda não passam de modernosos e vanguardeiros de ocasião, desconhecendo que a grande revolução estética nas artes se deu na década de 20 com uma reciclagem na de 60. A partir dos anos 80, com a ascensão dos ‘yuppies’, a vinda catastrófica do neoliberalismo, e a instalação de um ‘cientificismo’ desvirtuador, o homem ficou à míngua, ao léu e, mesmo, poder-se-ia dizer, ao deus-dará.