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05 junho 2010

Resposta de Cláudio Marques a Raul Moreira

O texto do jornalista e cineasta Raul Moreira, publicado em A Tarde, e republicado aqui neste blog, polêmico por natureza, recebe a resposta de Cláudio Marques, principal organizador e idealizador do Panorama Internacional Coisa de Cinema, que se encerrou há poucos dias:
Cinema em Expansão
"Em texto publicado na última quinta em A Tarde, Raul Moreira constrói uma imagem negativa dos últimos acontecimentos cinematográficos na cidade a partir da reação adversa a um único filme, dentre mais de 60 exibidos.
Raul nos induz a pensar que os cineastas Edgard Navarro e Lázaro Farias teriam sido intolerantes a um novo cinema que desponta com muita potência.
A verdade é que na história do cinema brasileiro, poucas vezes experimentamos período tão duradouro de incentivo à produção como o que atravessamos hoje. Essa continuidade permite que a nossa cinematografia ganhe em força e maturidade.
Após acompanhar os curtas e longas no VI Panorama Internacional Coisa de Cinema, percebe-se que os cineastas brasileiros arriscam-se cada vez mais.
Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karin Aïnouz, por exemplo, é afetivo e conduz facilmente o espectador sem que o protagonista apareça em cena, fisicamente, em momento algum. Emocionado, Edgard Navarro revelou a Marcelo Gomes, presente à sessão, que se sentia contagiado por aquela maneira tão criativa de tratar o cinema.
Já Lázaro Farias não economizou elogios à sensibilidade de Maya Da-Rin no debate que se seguiu à projeção do longa Terras.
Os debates foram intensos nesses dias, dada a oportunidade de diálogo com cineastas e atores. A maioria deles, dotados de pensamentos articulados e esclarecedores, escapando assim da idéia do autor meramente intuitivo.
É importante ressaltar a notável safra do curta-metragem no Brasil. Os filmes exibidos nos desafiam a olhar para o cinema de uma forma nova. A maior parte destes curtas está conquistando os principais festivais de cinema do mundo todo.
Num cinema diverso como esse, as opiniões a cerca dos filmes apresentados são divergentes. Alguns espectadores gostam mais de uma obra, outros não se identificam com determinada proposta... E assim se faz o debate, o aprendizado!
Vale lembrar que o cinema ainda é uma arte jovem, está engatinhando, e deve ser tão livre quanto diferente.
Comparar a produção atual com a dos grandes mestres é um exercício infrutífero.
O que se pode afirmar com convicção é que o cinema é uma arte potente em plena expansão."
Cláudio Marques

60 anos do Clube de Cinema da Bahia

O Clube de Cinema da Bahia foi fundado meses antes de meu nascimento. É, portanto, de minha idade, e idade provecta: 60 anos. Não o frequentei durante os anos 50, porque ainda menino, mas tive a oportunidade de assistir a quase todas as suas sessões a partir de meados da década de 60, quando Walter da Silveira (aqui em cima, na imagem, à esquerda, de terno branco e óculos ao lado de Nelson Pereira dos Santos) programava os filmes no saudoso cinema Guarany. Na época, estudante do Central, filava as aulas para ver as obras-primas selecionadas pelo também saudoso ensaísta. Walter distribuia folhetos sobre o filme em exibição. A sala ficava lotada, com gente saindo pelo ladrão. Transcrevo abaixo um texto que me foi enviado de autoria de Nélia Belchote, a secretária vitalícia das jornadas baianas.
"Fundado em 30 de maio de 1950, o Clube de Cinema da Bahia teve a sua exibição inaugural e posse da primeira diretoria na noite do dia 26 de junho no auditório da Secretaria de Educação e Saúde, no Corredor da Vitória, hoje Museu de Arte da Bahia, contando na ocasião com a presença do Titular da pasta, o Secretário Anísio Teixeira.

O Clube de Cinema da Bahia deu início a sua atividade cinematográfica com o clássico do cinema francês “Os Visitantes da Noite”, de Marcel Carné.

Para comemorar o acontecimento histórico de 60 anos passados o Clube de Cinema da Bahia em colaboração com a DIMAS está trazendo de volta o filme “Os Visitantes da Noite”, para exibição às 19 horas no próximo dia 19 de junho na Sala Walter da Silveira.

No mesmo espaço Walter da Silveira, que personifica a própria história do Clube, haverá a partir de 25 de junho, durante 10 dias sempre às 19 horas, exibição de uma retrospectiva de clássicos que marcaram duas fases do Clube de Cinema da Bahia.
SESSENTA ANOS DO CLUBE DE CINEMA DA BAHIA

Fundado em 1950, por ocasião do primeiro grande surto do movimento cineclubista no Brasil, o Clube de Cinema da Bahia realizou a sua primeira exibição às 20h no dia 26 de junho no auditório da antiga Secretaria de Educação e Saúde (hoje Museu de Arte da Bahia), gestão de Anísio Teixeira, no Corredor da Vitória, com o filme “Os Visitantes da Noite”, de Marcel Carné, contando com a presença de profissionais liberais, estudantes e publico em geral. Na ocasião houve a posse da primeira diretoria do Clube.

O Clube de Cinema da Bahia, que teve como figuras maiores o brilhante advogado, crítico e ensaísta Walter da Silveira e o Juiz e músico Carlos Coqueijo, desde os seus primórdios desempenhou um importante papel na vida cultural da capital baiana. Centro aglutinador de todos os baianos amantes da sétima arte, o Clube de Cinema da Bahia foi, ao lado da Universidade Federal da Bahia, uma fonte inspiradora que moldou os talentos artisticos, dando à Bahia na segunda metade dos anos 50 uma inusitada fermentação cultural.

Quase todos os cineastas baianos da época fizeram a sua iniciação cinematográfica nas sessões do Clube de Cinema, que pela primeira vez revelava ao público local as obras primas dos grandes mestres da cinematografia mundial.

Também nos anos do chamado ciclo de cinema baiano, iniciado em 1959 com “Redenção”, de Roberto Pires (primeiro longa-metragem baiano), coube ao Clube de Cinema da Bahia uma destacada atuação, como centelha de estímulo e fórum de debates para os jovens cineastas da terra.

Após o golpe de 1964 o movimento cineclubista brasileiro começa a enfrentar uma série de dificuldades, o que leva o Clube de Cinema a processar algumas modificações na sua estrutura de programação, surgindo então as primeiras experiências de Cinema de Arte na Bahia.

O recrudescimento da ditadura militar, com a implantação do AI-5 em dezembro de 1968, provoca por muitos anos um verdadeiro esmagamento do movimento cineclubista brasileiro. A conjuntura desfavorável e a doença e falecimento de Walter da Silveira impõem ao Clube de Cinema da Bahia a paralisação temporária.

Estimulado por amigos e vários componentes da sua derradeira diretoria, o Clube renasce em 1971, já agora sob a liderança de Guido Araújo. Acompanhando as transformações urbanísticas da capital baiana, o Clube de Cinema da Bahia que sempre teve seus momentos de glória no centro da cidade, passa a ter um novo apogeu em pleno bairro do Rio Vermelho.

Em 1974, com a Jornada Nacional de Cineclube no Paraná, que praticamente ressuscita o movimento paralisado desde a Jornada de 1969 em Brasília são lançadas as bases de uma nova política cineclubista no Brasil com a historica Carta de Curitiba. A partir daí, começa também a se processar uma grande transformação estrutural no Clube de Cinema da Bahia.

Na realidade, já em 1972, com o surgimento da Jornada Baiana de Curta Metragem, passa a existir uma maior aproximação e prioridade do Clube de Cinema da Bahia pela produção cinematográfica brasileira. Sem deixar de valorizar as grandes obras da cinematografia mundial, o Clube, contando então com o apoio logístico do ICBA, resolve dar um maior destaque ao cinema brasileiro.

Nesta fase, que corresponde ainda ao período obscurantista do Governo Médici, o Clube de Cinema da Bahia aproveita-se de uma relativa imunidade diplomática de que gozava o Instituto Goethe, para trazer à luz algumas obras relevantes das cinematografias nacional e internacional, desconhecidas do público baiano, pelos rigores da censura ou autocensura. Também nessa fase processa-se uma grande modificação no público, que se torna predominantemente jovem e universitário.

As dificuldades impostas pelo regime para o funcionamento normal dos cineclubes, obrigam estes a se munirem de todos os requisitos legais da burocracia estatal, para garantia de sua existência. Deste modo, o Clube de Cinema da Bahia, que até então tinha apenas o seu registro civil, se vê envolvido numa verdadeira batalha burocrática para se munir de CGC, ISS, registro na censura federal, registro no INC, depois CONCINE, etc.

Com o processo de abertura iniciado na segunda metade dos anos 70, a atividade cineclubista pouco a pouco deixa de ser vista como uma prática subversiva, permitindo assim o surgimento de um novo surto no movimento cineclubista brasileiro. Também na Bahia se manifesta esta transformação, possibilitando uma maior democratização do cineclubismo.

Neste contexto, o Clube de Cinema da Bahia exerce um papel orientador e de núcleo de apoio para os cineclubes emergentes. Isto levou o Clube a uma nova mudança estrutural, ou seja, em vez de ter um público cativo num lugar fixo para as suas programações regulares, o Clube passa a dar prioridade ao trabalho comunitário e junto com outras entidades leva o cinema até o povo, numa tentativa de formar novas platéias, particularmente para o filme brasileiro.

Em 1980 aproveitando as comemorações dos 30 anos da existência da entidade, o Clube de Cinema da Bahia apresenta uma programação mais rica e diversificada e além de receber o público nas suas tradicionais sessões em 16mm e 35mm, consolida a prática de ir ao encontro do público através de programações especiais em sindicatos, sociedades de bairros, comunidades de base, grêmios, clubes carnavalescos, diretórios acadêmicos, penitenciárias, etc.

Também ao completar o seu trigésimo aniversário o Clube de Cinema da Bahia teve oficialmente reconhecido o seu relevante trabalho cultural em prol da comunidade baiana, através da Lei Municipal nº 3095 de 19 de junho de 1980 e da Lei Estadual n° 3,813 de 1 de julho de 1980, caracterizando-o como órgão de utilidade pública.

Desde então, o principal objetivo almejado pelo Clube de Cinema da Bahia era possuir a sua sede própria com uma pequena sala de projeção para melhor servir como centro de apoio para os vários cineclubes baianos. O sonho do espaço próprio quase se torna realidade quando a Embrafilme, nos anos 80, contemplou o Clube no projeto de desmembramento e restauração do Cine Glauber Rocha. Contudo, ao se retirar da área de exibição, entregando de volta o Cine Glauber Rocha(antigo Guarani) à Bahiatursa, que por sua vez o entregou de mão beijada para exploração a Art Filmes, o Clube de Cinema da Bahia viu morrer as suas esperanças de uma sede permanente.

Nos anos 90, na época do triste governo Collor, o Clube de Cinema da Bahia voltou a hibernar, só saindo da letargia, vez por outra, em virtude da Jornada Internacional de Cinema da Bahia.



Em 2008 a iniciativa do Conselho Nacional de Cineclubes de comemorar os 80 anos da presença do movimento cineclubista no Brasil e a concessão do prêmio Paulo Emílio Salles Gomes a Guido Araújo, como reconhecimento de uma vida dedicada à causa cineclubista, cinéfilos interessados no renascimento da entidade, onde pontificam novos e antigos participantes, foram fatores decisivos para que o Clube de Cinema da Bahia retomasse a sua plena atividade como elemento propulsor da cultura cinematográfica em território baiano. Foi realizada Assembléia para a reforma do antigo estatuto, adaptando-o ao código civil de 2002, adotou-se um novo perfil da entidade, transformando-a em associação e foi eleita a nova diretoria, sendo hoje o principal suporte legal para a realização da Jornada Internacional de Cinema da Bahia."

Nélia Belchote

03 junho 2010

O Panorama e a dessacralização da imagem

O texto não é de minha autoria, que fique bem entendido, mas do jornalista e cineasta Raul Moreira, que saiu, hoje, quinta, no jornal soteropolitano A Tarde. Se um evento causa polêmica, e isto quem está a dizer sou eu, o evento é bom, pois nada pior do que a apatia e a indiferença. A indiferença, aliás, disse Hamlet na famosa pela de Shakeaspere, "também é crime".
"A cena se fez emblemática. Já passava das 22h de domingo quando o cineasta e fotógrafo Lázaro Faria, autor, entre outros, de Cidade das Mulheres, sem falar que fez a câmera do media Superoutro, de Edgard Navarro, rasga a sua credencial na porta do Espaço Unibanco, ato acompanhado por muitos, inclusive pelo vira-lata Glauber Rocha, guardião das paragens e justamente apelidado com o nome do patriarca do Cinema Novo.
O gesto de desagravo se deu por irritação ao filme que tentara assistir, o longa digital A Fuga da Mulher Gorila, obra de Felipe Bragança e Marina Meliande, um dos sete escolhidos para disputar o prêmio nacional do Panorama Internacional Coisa de Cinema, evento que se encerra hoje. O mesmo o fez tantos outros, como o cineasta Edgard Navarro, que abandonou a sessão com um sorriso irônico no rosto, como que dizendo “se isso é o novo cinema brasileiro vou para casa dormir”.
Curioso, foi que A Fuga da Mulher Gorila ganhou o prêmio de Melhor Filme da Mostra de Tiradentes, em 2009, dado pelo júri oficial. Assim, os fatos apontam para dois caminhos: ou a velha-guarda é por demais intransigente e perdeu o olhar para avaliar o “novo cinema brasileiro” ou estamos diante de uma total revolução na abordagem dos cânones cinematográficos.
A resposta, talvez só possa a vir nos próximos anos, pois ainda é cedo para se afirmar categoricamente um juízo de valor, até porque antes de tudo é preciso que tal cinematografia confirme-se duradoura.
No entanto, é impossível não fazer uma constatação: por conta do advento do digital, com todas as suas facilidades, as quais permitem que muitos possam aventurar-se como cineastas, o cinema tornou-se um imenso laboratório no qual a ordem é fazer, independentemente das fragilidades narrativas e de linguagem.
Quando se passa o olho em muitos filmes do Panorama, percebe-se claramente que o “cinema de intenção” venceu, pois, importante é dar vazão a ideia, estruturá-la, transformá-la em roteiro, filmá-la e montá-la, para depois defendê-la de forma politicamente correta, algo, aliás, que está transformando as conversas com os diretores em algo monótono e pouco criativo para as plateias que a acompanham.
Como é impossível negar que as atividades artísticas refletem o seu tempo, não resta, até para escapar do caminho da intransigência, observar tal tendência e, quem sabe, vez por outra surpreender-se, até, com leituras pertinentes a respeito da ditadura das imagens. O pernambucano Marcelo Pedroso, por exemplo, com o seu longa digital Pacific, foi feliz ao abordar a relação da pequena burguesia brasileira com as suas filmadoras portáteis em um cruzeiro do Recife à Fernando de Noronha.
Ainda que seja difícil aturar os 71 minutos comprobatórios do que o consumismo é capaz de gerar, o documentário retrata de forma objetiva a relação dos grandes coletivos para com o fetiche das imagens em movimento e de como apropriaram-se de um “fazer cinematográfico”, queira ou não.
O diabo é que ao oferecer um leque de bons filmes contemporâneos e projetar algumas películas dos mestres Eric Rohmer e Akira Kurosawa, além de delícias como o documentário Godard, Truffaut e a Nouvele Vague, de Emmanuel Laurent, o Panorama expôs a fratura que separa o atual “cinema de intenção” daquele que realmente conseguiu catalizar o desejo de seus realizadores.
Em outras palavras: durante uma semana, os muitos títulos exibidos no Panorama foram importantes para se perceber o quanto o cinema é uma atividade volátil e, talvez por isso mesmo, não seja justo confrontá-lo nas suas diversas épocas. No entanto, quando assim se faz, vem o saudosismo e a vontade de gritar “eu quero o meu cinema de volta!”.

Assinado: Raul Moreira em A Tarde de 03.06.2010

02 junho 2010

Oscar Santana e o Cinema Baiano

No momento em que Redenção, de Roberto Pires, o primeiro longa realizado na Bahia, é exibido em noite festiva e com sua cópia restaurada, vale lembrar que um dos parceiros de Pires, que muito contribuiram para o êxito da empreitada, foi Oscar Santana, fundador da Sani Filmes com a qual produziu dezenas e dezenas de documentários e cine-jornais. Realizou também dois longas genuinamente baianos: O caipora (1963) e O pistoleiro (1975). Com o primeiro, veio a fazer parte do importante Ciclo Baiano de Cinema juntamente com A grande feira, Barravento, Tocaia no asfalto, Sol sobre a lama, entre outros. Oscar Santana, aqui, no texto que vai abaixo, conta a história de meio século de cinema na Bahia. O escrito é de sua autoria e devo abrir as necessárias aspas. Na imagem (clique nela para vê-la maior), da esquerda para a direita, Elson Rosário, Narceval Rubens, Pola Ribeiro e Oscar Santana (de camisa vermelha) durante uma visita que este último fez ao set de filmagens de O jardim das folhas sagradas, de Pola, o próximo filme baiano a vir à tona.
"BAHIA- 50 ANOS DE CINEMA

“Se queres ser universal... Canta a tua aldeia.”
Assim o grande escritor russo Leon Tolstoi projetou no tempo, o desejo permanente do ser humano, de se tornar reconhecido como um importante fragmento da humanidade.

Se você projeta a sua terra, o lugar onde vive e convive, se festeja com sabedoria e devoção seus hábitos e costumes, por certo, estará derramando mundo a fora, uma porção da verdade de sua gente e de si mesmo.
Muitas vezes me ponho a pensar na maxitude da sabedoria divina, em nos fazer finitos. Quanto tédio, quanto egoísmo, quanta involução, quanto sofrimento, devem ter sido evitados! Mesmo assim, apesar de toda pré-visão celestial, quanto aos rumos do comportamento humano, reflito ainda hoje:
De que vale o canto,
Se o grito angustiado,
Ainda explode,
Na garganta do mundo?

De que vale o espaço,
Se o tempo é dono de tudo?

De que vale a sombra,
Se a árvore não está de pé?

De que vale o verde,
Se “Verdi” se esconde monocórdio
No silêncio da manhã cinzenta,
Ou na solidão do quarto sem azul?

De que vale a fumaça
Se não é, ela,
Um filete esguio, já depurado,
De transparências mortas,
Expulsas pela chaminé?

De que vale a humanidade,
Sem o humanismo,
Nas suas formas mais sensatas, de ser praticado?

De que vale o gigante,
Se não houver pigmeus que lhe aparem a grama?

De que vale o homem,
Sem humano... ser?

A genialidade, essa capacidade do ser humano de falar para o futuro, não está no ato de criar, mas no ato de recriar com sabedoria e zelo o que seus olhos e ouvidos atentos, puderam perceber, nos arredores da vida.

Se formos para além do pragmatismo, poderíamos até, com a devida licença poética, afirmar: a criação não existe. Afirmar por exemplo, que depois de Deus, o supremo artífice de todas as coisas, e da vida, só nos restam, humildemente, atos permanentes de recriação.

Na Bahia dos anos 50 e 60, o exercício da recriação foi exercitado de uma forma semi-consciente, mas construtiva, principalmente pelos jovens artistas baianos: fosse nas artes plásticas, na literatura, na música, no teatro ou no cinema.
Neste universo conflituoso de esperanças vivas, quando pensamos fazer cinema, sem perceber, estávamos iniciando um ciclo: O Ciclo do Cinema Baiano.

Na Bahia daqueles tempos, antes de nós - Oscar Santana e Roberto Pires, que pensávamos alto, com a produção de um longa-metragem feita por baianos, outros cantadores de nossa aldeia, como Alexandre Robato, para exemplo, produziram em vôos mais curtos, documentários importantes como: “Puxada de Rede” e “Entre o Mar e o Tendal”.


Mas, a nossa inquietação, principalmente a minha e do Roberto, a nossa ansiedade em reinventar, conscientemente, coisas e processos já inventados, eram desculpas reais, para a nossa incapacidade material de comprar prontas, as nossas ferramentas de trabalho.

Foi desse jeito, teimoso, desacreditado de fazer o impossível, que produzimos o ingênuo “O Calcanhar de Aquiles”, com certeza, o primeiro trabalho ficcional do cinema baiano. Um policial silencioso, com algumas legendas postas sobre a imagem, diretamente na hora da filmagem. Neste filme, por absoluta falta de crença em nosso trabalho, de alguns improvisados atores, tive que interpretar um dos papéis do filme, sendo eu, também o câmera. Disparava a câmera KEYSTONE ainda de corda, e corria para frente dela, para interpretar o meu personagem, sob a direção ainda vacilante de Roberto Pires.

Depois desta experiência ficcional e sob mais uma forte influência tecnológica do cinema americano, produzimos o documentário, A Bahia - em Visão Natural, que era na verdade, o primeiro teste de mais uma recriação nossa, agora no campo da tecnologia, o embrionário Igluscope.

Fazer o nosso projeto ficcional Redenção em tela plana, quando os americanos já haviam produzido O Manto Sagrado, uma super-produção em Cinemascope, a última invenção do cinema mundial daquela época, seria começar com enorme retardo. E isto não seria um grande feito da nossa aldeia!

Alguns fotogramas, retirados clandestinamente pelo operador do antigo cinema Guarany, depois Glauber Rocha e hoje Espaço Unibanco, foi a única informação que obtivemos para perceber como fabricar, ainda que de forma artesanal, a nossa lente anamórfica, designação oficial para o recém criado processo de registro de imagens.
Diante dos cinco fotogramas que obtivemos da película O Manto Sagrado, notamos que as imagens eram comprimidas no sentido longitudinal, dentro do mesmo espaço do fotograma convencional de 35 milímetros, dos filmes de tela plana.

Depois de oito meses de trabalho, muitas experiências testadas sem resultado satisfatório, no auditório da Associação dos Empregados no Comércio da Bahia na Rua Chile, telas retangulares gigantes, feitas de madeira e pano branco, assustavam o velho Tourinho, administrador da Associação. Ele nos permitia tais experiências, mas ressaltava sempre, a sua preocupação com nossa geringonça, a tela gigante, que um dia poderia fazer ruir o teto do salão nobre do velho sobradão, onde fixávamos a tela. E mesmo sob a expectativa dessa possibilidade real, continuávamos testando ansiosamente o novo processo.

Certo dia, depois de testados 22 pares de lentes, nas oficinas da antiga ótima Mozart, do pai de Roberto, com o teto do salão nobre da Associação, ainda no lugar, obtivemos o resultado desejado.
Assim, foi recriado pelo cinema baiano, brasileiro, sul americano, o cinemascope tupiniquim, ou melhor, o Igluscope. Assim, nos igualamos orgulhosamente ao cinema tecnologicamente mais moderno do mundo de então.
Com as novas lentes rodamos Redenção, o primeiro filme baiano de longa-metragem, com a participação financeira de Elio Moreno Lima, filho de um cacauicultor. Muitos anos antes,, é claro, da contamiz é claro, da contaminação da lavoura, pela Vassoura de bruxa!
Com aquele filme decantamos a nossa aldeia, com nossa ousadia, nos pensamos universais.
Sempre que falamos sobre o cinema baiano, nos fazem a natural pergunta: por que a nossa primeira produtora chamava-se Iglu Filmes? A resposta é uma história curiosa, de ordem sentimental.

Quando ainda na fase embrionária de nossa pesquisa de imagem e som, porque também recriamos um sistema de som magnético próprio, o MAGNISOM, varávamos noites no prédio onde morava o Roberto, no bairro do Garcia, fazendo experiências. fazendo experiirro do Garcia. bruxa!
Quando, interrompíamos as nossas incursões cinematográficas, quase sempre às duas da madrugada, somente se encontrava aberta para um lanche, a Lanchonete Iglu, na Praça da Sé, onde nos reuníamos antes e depois das experiências.

Eu morava no bairro de Roma, na Cidade Baixa e estudava na Faculdade de Ciências Econômicas na Piedade. Roberto morava no bairro do Garcia. A Praça da Sé era um meio de caminho onde os papos continuavam, depois que eu saía da Faculdade e das experiências.

Como a produção de cinema na Bahia era uma grande novidade na época, essa novidade e a nossa obstinação, cativaram o dono da lanchonete e percebemos que, muitas vezes, ele mantinha a casa aberta até a nossa chegada, depois dos trabalhos noturnos de pesquisa. E ainda “dependurava” as nossas contas até termos condições de pagá-las no final de cada mês. Desse gesto de tolerância, boa vontade e incentivo, vindos de um simples comerciante da Praça da Sé dos anos 50, decidimos dar o nome da sua lanchonete, à jovem e pioneira empresa de cinema. Assim nasceu a Iglu Filmes.
O visionário exibidor Francisco Pithon, emprestando o cinema Guarany para exibirmos os nossos copiões, nos permitia avaliar o resultado de nossas experiências cinematográficas, principalmente as que se seguiram depois, já contando com os parceiros Rex Schindler e Braga Neto, como co-produtores.
Desde os tempos da minha dupla com Roberto, eram visíveis os diferentes conceitos que tínhamos, para uma mesma paixão, o Cinema. Roberto era um cineasta artesão, intuitivo, inventivo, muito preocupado com a forma, o jeito de filmar.

Eu me articulava dentro da mesma arte, com um sentimento mais voltado para o conteúdo, do que filmávamos. As discussões sobre forma e conteúdo eram constantes, e por isto mesmo, ferramentas importantes na composição dos trabalhos da Iglu Filmes.

Talvez por isto, a nossa parceria tenha se completado tão bem, principalmente no início de nossas carreiras.
Durante todo esse tempo, tivemos a contribuição de um personagem curioso e experiente de um Diretor de Produção que nos ajudava a todo instante, resolvendo questões aparentemente insolúveis de produção. Neste particular, Walter Webb era um mágico.

De lá para cá estas sementes deixaram frutos maturados, nos caminhos sinuosos que haveria de percorrer o cinema da Bahia.

Nós cineastas da época, no conjunto, conseguimos produzir durante o ciclo iniciado em 1959, um legado de 18 filmes de longa-metragem, como Redenção, Barravento, A Grande Feira, Tocaia no Asfalto, Sol sobre a lama, Bahia – Por exemplo, O Caipora, Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Grito da Terra, Akipalô, Meteorango Kid, Caveira my friend, Boi Aruá, O Anjo Negro, O Pistoleiro, Abrigo Nuclear, Yawar Mayu e o O Mágico e o Delegado, por mim produzido em 1984, quando se interrompeu por absoluta falta de recursos e não de talentos, o ciclo de produção cinematográfica na Bahia.
Foi com a nova empresa, a Sani Filmes, já em 1961, depois que deixei a Iglu Filmes, que pude exercitar com mais desenvoltura as minhas propostas de conteúdo social no cinema.

Quando fiz O Caipora, compus um roteiro que evidenciasse a importância de se libertar o homem brasileiro, principalmente o nordestino, das amarras conceituais do destino traçado. Aquela seqüência de atos e fatos que serão religiosamente cumpridos pelo ser humano, durante a sua vida, à luz de uma determinação divina, em conjunção com as forças da natureza.

Defendi no filme, a importância de se colocar o destino no seu devido lugar, ou seja, atrás de cada ato do ser humano. Na verdade, como uma resultante de suas ações circunstanciadas pela sua própria vontade e pelo ambiente social em que habita e não, como pura e simples determinação dos céus. Enfim, o destino é rastro ou caminho?
Em O Pistoleiro, outro roteiro que escrevi e dirigi, mais uma vez preocupado com as questões sociais do momento, procurei salientar que, a inteligência circunstanciada pela ignorância talvez seja a maior fonte de degradação do caráter humano.
Se as oportunidades culturais não chegam ao indivíduo, provavelmente a sua inteligência insatisfeita, será aproveitada pelos agentes da deformação de caráter e depois utilizada de forma desastrosa, para desalento do próprio cidadão e da sociedade em que vive. Em resumo: A bolsa educação não pode ser menor que a bolsa estômago, principalmente porque, a educação no Brasil, é um direito do cidadão, mas não tem sido um dever cumprido pelo Estado.
Ligando-se a temática de O Caipora à temática de O Pistoleiro, encontramos um ponto comum, onde o homem, na circunstância da maior ou menor sabedoria, escreve o seu próprio destino.

Vale salientar que a identificação cultural entre as diversas artes na Bahia dos anos 50 e 60, era tão intensa, que a maioria dos filmes daquela época, além de atores como Geraldo Del Rey, Helena Inês, Antonio Pitanga, Milton Gaúcho, Braga Neto, Fred Jr., Carlos Petrovich, Maria da Conceição, Maria Adélia, tinha a participação de artistas plásticos como Santi Scaldaferri e Calazans Neto; escritores como Jorge Amado e Luiz Henrique Dias Tavares e críticos de cinema como Walter da Silveira, que atuavam em nossos filmes, às vezes como personagens importantes, outras vezes como simples figurantes. Já no Rio, Roberto fez algum tempo depois: “O crime no Sacopã”, “Máscara da Traição” e “Em busca do Sussexo”.

Novamente na Bahia e comigo como parceiro, fez “Abrigo Nuclear”. Depois em Goiânia, fez “Césio 137”, que em minha opinião lhe custou a vida, pela via da contaminação.
Glauber Rocha, nosso embaixador maior, pode semear mundo a fora, a sua genialidade comprovada, em Barravento, Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Dragão da Maldade e Terra em Transe, entre outros filmes, no que observara e sentira, nos campos férteis plantados pelos chamados “meninos da Iglu”.
Somados, os filmes realizados na Bahia, durante este ciclo, representam um investimento privado, na sua maioria, dos próprios cineastas e produtores locais, da ordem de 54 milhões de reais, se considerarmos a média modesta, apenas atualizada, de três milhões de reais por filme.

Mais recentemente, foram realizados alguns filmes, já com a ajuda displicente do Estado, que disponibiliza anualmente, e já faz muito tempo isto, apenas, um milhão e duzentos mil reais, disputados a tapas e beijos, por todos os cineastas baianos entre si.

Enquanto isto, o Município de Paulínia no Estado de São Paulo, ao criar, mais que de repente, um núcleo de produção de filmes de longa-metragem, deixou de ser um símbolo de poluição para ser a Hollywood brasileira, sem qualquer tradição de cinema como a Salvador da Bahia tem. Disponibilizou só em 2008, vinte milhões de reais, dois e meio por cento do orçamento municipal para 20 filmes que lá foram rodados naquele ano. Em 2009 muitos dos sucessos do cinema nacional foram ali rodados. Em 2010 outros longas continuam a serem rodados lá.

Para os filmes que são rodados no município, o percentual de contribuição, depende apenas do percentual de cenas rodadas no local e vai até 100% do orçamento de cada filme.
Brasilianas que tem 100% de suas cenas a serem rodadas em Salvador, mais exatamente no Largo do Carmo, ainda não conta com um centavo sequer, nem do Estado nem do Município.
Mesmo assim, filmes de longa-metragem de boa qualidade, mas não competitivos, pela pobreza orçamentária, como: Três Histórias da Bahia, com produção de Moisés Augusto e direção de Edyala Yglesias, Sérgio Machado e José Araripe, foram produzidos.

Da nova safra temos os longas-metragens Eu me lembro de Edgard Navarro, Esses moços de José Araripe, Cascalho de Tuna Espinheira e o recente Pau Brasil de Fernando Belens. Outros estão sendo concluídos com a ajuda de recursos externos, como O Jardim das Folhas Sagradas, de Pola Ribeiro.
Dentre estes trabalhos salientamos também os pontuais médias-metragens O Superoutro de Edgard Navarro, A Lenda do Pai Inácio de Póla Ribeiro, Anil de Fernando Belens e mais recentemente, No Coração de Shirley, produzido e dirigido por Edyala Yglesias, todos produzidos com apoio da Sani Filmes.

Eu estou voltando ao longa-metragem depois de mais de 800 documentários realizados, com o filme Brasilianas, uma comédia de costumes ambientada nos dias atuais, mas com sentimentos de 50 anos atrás, onde no espaço mágico de 24 horas, pode-se notar o quanto perdemos de honestidade, sinceridade e solidariedade, ao longo desses anos.

Brasilianas, são fragmentos “divertidos” da vida brasileira. Transita pelas verdades do comportamento humano no Brasil e fora dele, sem distanciar-se da realidade nordestina, onde o Brasil tem cara de mais Brasil, mesmo sem o recurso do sotaque autenticador.

E nós cineastas baianos, que um dia ajudamos a reformular, usando recursos próprios, a cara e a coragem do cinema brasileiro, temos certeza de que dias melhores virão para o cinema daqui, para os nossos cineastas e para o próprio orgulho do povo da Bahia. Essa gente miscigenada, alegre e sábia, que por isto mesmo, tem idéias universais.

E é falando em idéias universais, que defendo para as circunstâncias atuais um cinema brasileiro, com mais otimismo temático nos nossos roteiros. Um cinema menos explorador das nossas mazelas sociais, como obrigação única, como se somente nós, brasileiros, a alimentássemos. Afinal o Brasil precisa sorrir ...o mundo precisa sorrir, para respirar melhor. Afinal, repito, não são os pessimistas que constroem um mundo melhor. Parece que, para o cineasta brasileiro, o otimismo temático é um pecado mortal.

O cinema nasceu entretenimento e precisa continuar sendo também entretenimento. O cinema brasileiro, precisa do cinema brasileiro, para sobreviver e o otimismo temático pode ser um eficiente caminho.

E, para não apenas chorar os insucessos de nosso cinema empobrecido pela indiferença oficial de muito anos,vale recordar, que na Rússia gelada de sempre, depois de lutar na Guerra da Criméia, Leon Tolstoi iniciou sua carreira literária inspirando-se nas experiências do que vira e sentira durante sua vida militar e nas andanças pela Europa do após guerra.

Em 1910, aos 82 anos, abandonou a sua casa no campo, em companhia de sua médica e de sua filha mais nova, em busca da paz, em um lugar onde pudesse sentir-se mais perto de Deus.
Em novembro do mesmo ano, morre de pneumonia na Estação Ferroviária de Astapovo, na Província de Riazam.
Enquanto isto, nos trópicos baianos do quase ontem, no continente sul-americano, Glauber Rocha, Roberto Pires, Agnaldo Siri Azevedo, Olney São Paulo, José Teles de Magalhães, Vitor Diniz, Fernando Coni Campos, laureados cineastas baianos, não tiveram a mesma sorte. Não chegaram como Tolstoi, aos 82 anos, morreram ainda jovens.
Todos, com o mesmo sonho cinematográfico, de cantarem ao máximo a sua aldeia.

E eu, Oscar Santana, um dos remanescentes desse punhado de jovens obstinados, crentes, de que sua terra é o melhor lugar do mundo para se conviver e recriar, em nome deles e no meu próprio, apelo em alta voz: Senhores Governantes, Senhores Legisladores, Senhores Empresários, baianos ou não, salvem o que resta da competência e do entusiasmo do velho e do novo cinema baiano, ao menos 50 anos depois, e nos permitam cantar mais alto a nossa aldeia, para torná-la cada vez mais universal."

Oscar Santana (Cineasta)
Rua Aracaju, 173 - Jd. Brasil
Tel.: (71) 3237-6147 //8806-4493
Salvador – Bahia – Brasil
oscarsantana@globo.com

01 junho 2010

Clint Eastwood 80


Clint Eastwood completou 80 anos, oito décadas de existência. Terá, este o nosso desejo, mais de 20 anos pela frente para ainda nos proporcionar belos e significativos filmes, a exemplo de seu colega português, Manoel de Oliveira, que já ultrapassou o centenário e continua a filmar. Clint, o dirty Harry vingativo dos anos 70, ou o pistoleiro sem lei e sem alma dos westerns de Sergio Leone, transformou-se através do tempo e se tornou um dos cineastas mais respeitados do cinema americano contemporâneo. Este blog presta, aqui, uma homenagem a este bravo.

"Redenção" restaurado é exibido hoje

Restaurado com recursos do Fundo de Cultura da SecultBA. Redenção, de Roberto Pires, será exibido hoje, 01/06, às 18h - na Sala 3 do Espaço Unibanco de Cinema Glauber Rocha. A Secretaria de Cultura também está investindo na restauração de O leão das sete cabeças, de Glauber Rocha, nos curtas de Alexandre Robatto. São mais de R$ 2 milhões de investimento na recuperação da memória do audiovisual baiano.

31 maio 2010

O fascínio da 'mise-en-scène' de Brian De Palma

1) De repente, em zapping, deparei-me, ontem, domingo, no Telecine Cult, com Vestida para matar, de Brian De Palma, e, mesmo na abominável tela cheia, destruindo o cinemascope original, fiquei preso ao filme, sem poder, literalmente, me levantar do sofá. E considere-se que não vejo filmes assassinados pelo canal Cult, quando destruídos os seus formatos originais. Trata-se de cinema puro, pura mise-en-scène, de um rigor extraordinário. A sequência do museu é antológica, além do carnal knowledge dentro do táxi, e, Angie Dickinson, depois da tarde brava com um desconhecido, relutante, que se veste para ser morta no elevador, ainda que a calcinha que deixara dentro do táxi, percorre um itinerário mortal. O momento do assassinato é Psicose, de Hitch, mas não se deve, como diz a sabedoria de Inácio Araújo, dizer que Palma copia o cinema do mestre, mas, e tão somente, aproveita certos lances temáticos e estilísticos para fazer, na verdade, uma reflexão sobre o processo de criação do cinema. Seu cinema é muito particular, muito interessante, há singularidade total. Vejam, por exemplo, como se desenvolve a mise-en-scène do elevador, com Angie Dickinson, banhada de sangue, e Nancy Allem apavorada, e, na hora, quem grita é a partiura de Pino Domaggio e, por extensão, uma arrumadeira que se encontra no corredor.

2) Se Nancy Allen é uma beleza, Angie Dickinson perdeu-a com o tempo implacável, ainda que conserve um corpo a desejar, ela que, no seu pretérito, tinha uma das pernas mais bonitas entre as estrelas do cinema. Conhece-se que uma pessoa tem certa idade, e que está ficando velha, pelos olhos. É impressionante como os olhos de Dickinson demonstram, estampada no rosto, o tempo trilhado. Dressed to kill é um filme apaixonante e um exemplo marcante do domínio que Brian De Palma tem de sua arte. De todos os seus filmes, o que mais gosto é Trágica obsessão (Obsession), uma obra-prima, delirante, fantástica, com Geneviève Bujold e Cliff Robertson, realizada em 1976.

3) Palma gosta de sustos no fecho de suas obras. Carrie, a estranha, Um tiro na noite, este Dressed to kill, entre outros, possuem finais impactantes. Interessante observar que a partitura de Pino Donaggio é dissonante, uma partitura, se assim se pode dizer, contemplativa, que procura uma ascese sem haver uma pontuação para reforçar o clima, como é hábito na maioria dos filmes. Domaggio tem influência do mestre Morricone.
4) Deixo, para terminar, Vestida para matar com as palavras de Inácio Araújo em comentário que fez ontem, domingo, na Folha de S. Paulo: "Uma das injustiças que se pode fazer a Brian de Palma é tomá-lo por um imitador de Hitchcock. Basta ver Vestida para Matar (TC Cult, 20h, 14 anos) que isso fica visível. Mas é preciso paciência. No início, temos Um Corpo que Cai. A identificação de uma mulher é seu fundamento. Depois, Psicose e a mudança de sexo.É isso a prova da imitação? Na verdade, não. De Palma reorganiza peças, mistura sonho, realidade e cinema. O sujeito de duas identidades (homem, mulher) terá de confrontar o fantasma que o fascina e aterroriza: o feminino em pessoa.
5) Impossível não sentir vontade de continuar a rever, pela semana, outros filmes de Brian De Palma, que lavam a alma de qualquer cinéfilo que se preze como tal.

30 maio 2010

Eterno Quincas

Há poucos dias, escrevi um artigo, acho que para a minha coluna da Tribuna da Bahia, sobre Quincas Berro D'Água, e comentei que quem deveria ter feito o papel título era Wilson Mello, ator baiano que o protagonizou em várias montagens teatrais. Sobre ser um ator antológico, uma das presenças marcantes do cinema brasileiro, Paulo José, como Quincas, perde feio para Mello, porque, na verdade, o elenco, como o filme, tinha que ser global e com nomes chamativos. Sabendo ontem da morte de Wilson Mello, talvez possa até ter sido chamado, mas já doente não pôde assumí-lo.
O desenho que ilustra o post deste domingo é da autoria de Caó Alves Filho, desenhista de humor e cineasta (Catálogo das meninas, por exemplo). Mas o desaparecimento de Wilson Mello, o Eterno Quincas, causou consternação nos meios intelectuais e artísticos de Salvador, pois já era uma de nossas instituições culturais. Ator histriônico, que provocava gargalhadas na platéia, mas também capaz de desempenhos notáveis em dramas passionais, Wilson Mello também tinha uma presença boêmia nas noites soteropolitanas da boa época. A ascendente decadência do centro histórico da cidade e a violência assustadora fizeram com que as noites baianas acabassem, reduzidas a barzinhos insossos da orla marítima.
Wilson Mello trabalhou em muitas peças, passando por vários autores, mas a imagem que dele fica é a do eterno Quincas Berro D'Água. Em cinema, sua participação sempre fizera enriquecedora os filmes nos quais trabalhou, a exemplo de Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto (filmado quase todo no bairro da Moraria em Salvador), no papel de Vivaldo; Diamante bruto (1977), que Orlando Senna filmou na sua Lençóis baseado no romance Bugrinha, de Afonso Peixoto; Antonio Conselheiro e a guerra dos Pelados (1977), de Guga de Oliveira, baseado em Os Sertões, de Euclides da Cunha; J. S. Brow, o último herói do gibi (1980), de José Frazão; Jubiabá, de Nelson Pereira dos Santos, baseado em homônimo de Jorge Amado, uma co-produção franco-brasileira filmada na cidade histórica de Cachoeira (Bahia); Cascalho (2004), de Tuna Espinheira; Cidade Baixa (2005), de Sérgio Machado, como Ferreirinha; Eu me lembro (2005), o premiado filme de Edgard Navarro.
TUNA ESPINHEIRA SE DESPEDE DO AMIGO
Wilson Mello, Ator e Personagem

A notícia do passamento de um ícone da dramaturgia baiana, Wilson Mello, com certeza, muito mais que entristecer os amigos e admiradores, que foram e são muitos, vai desfalcar a Bahia de um dos seus personagens mais significativos. Ele próprio. De tanto representar e dar vida a inumeráveis personagens da ficção teatral, em mais de uma centena de peças que encenou para o palco, na chamada vida real, na contramão do tempo e o vento, resistiu em manter um jeito de ser, comum em décadas atrás, entre boa parte dos viventes que se esmeravam em praticar a cordialidade na Terra Mãe de então.
Wilson, o personagem indômito, jamais se perguntou: “Mudou o Natal ou foi eu quem mudou”? As metamorfoses acometidas no lombo da Roma Negra, através de acontecimentos absurdos, tais como os incêndios perpetrados contra a Feira de Água de Meninos; no antigo Mercado Modelo; na livraria Civilização Brasileira e na Confeitaria Triunfo; para citar apenas estes três locais emblemáticos como pontos de encontro.
Outros acontecimentos da série, Triste Bahia, foram se sucedendo, e era uma vez... o gato comeu mágicas Festas de Largo; o Carnaval de Rua; e outras e outras manifestações populares que definiam a gostosura do viver e vadiar. Genuinamente baiano.
O nosso personagem, passageiro do tempo, foi testemunha de todas estas agônicas transformações. Eram fatos consumados, só restava mesmo por a bola pra frente.
Como um legítimo baiano de outras eras, mesmo sem usar ou ter usado o figurino do colarinho duro do venerável, Major Cosme de Farias, para ele não havia nenhuma diferença angustiante, uma vez que trazia as duas províncias, a velha e a nova, na algibeira.
Por estas e outras razões, sempre esteve de bem com sua terra, da qual, em tempo algum, cogitou em se apartar, assim como sempre driblou o canto das sereias, no chamamento hipnótico para luzes do Sul Maravilha.
Amigueiro, bom de papo, nunca fez diferenças etárias, novos e velhos, todos eram iguais na hora de conversar a sério ou jogar conversa fora. Sua credencial constante era o bom humor.
Ter sido amigo de Wilson Mello foi muito gratificante, uma amizade apadrinhada pelo cinema , No filme ele incorpora, com abençoado brilho, o personagem, Dr. Marcolino, que pisou o solo sagrado da ficção, no mesmo chão que conserva os rastros dos outros personagens do livro , Cascalho, de Herberto. Sales, um clássico da literatura brasileira.
Não se faz mais Wilson Mello como antigamente...
Saudades,
Tuna Espinheira