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03 novembro 2011

A permanência de "Ladrões de bicicleta"

Muito mais do que uma data comemorativa, os 63 anos de "Ladrões de bicicleta" ("Ladri di biciclette", 1948), que se completam neste 2011, que já se encontra no ocaso, refletem a dimensão temporal de um marco do neo-realismo italiano que modificou profundamente a maneira de se fazer cinema.

Sobre ser um filme que ultrapassa o documento de uma época, para se revelar um monumento divisor-de-água do cinema moderno, pleno de um humanismo desaparecido da cinematografia contemporânea, esta obra de autoria de Vittorio De Sica (diretor) e Cesare Zavattini (roteirista) oferece à história do cinema não somente uma evolução como também, e principalmente, um modelo que iria influenciar sobremaneira toda a geração de realizadores posteriores.

Talvez o Cinema Novo não existisse sem o neo-realismo italiano, assim como o Free Cinema inglês e outras manifestações referentes a uma nova postura diante da realidade, uma inédita representação do real. O neo-realismo tem tanta força que influencia até os dias atuais o cinema no mundo (a maioria dos filmes que se faz no Irã que outra característica tem senão o forte acento neo-realista?).

Por outro lado, é verdade que o ponto de partida neo-realista (sem falar dos seus precursores) é "Roma, cidade aberta" ("Roma, città aperta"), de Roberto Rossellini, que data de 1945. Esta obra, de um mestre renovador (que instaurou, nos anos 50, ao lado de Michelangelo Antonioni, a desdramatização e a liberdade em relação ao "roteiro de ferro"), não possui, entretanto, com o passar dos anos, a mesma atualidade, a mesma envolvência, o mesmo espanto que ainda causa, nos dias de hoje, "Ladri di biciclette". "Roma, città aperta" é um grande filme, um momento de extrema urgência para o realismo cinematográfico, mas um filme circunscrito aos fatos da época ou, numa palavra, datado.

O neo-realismo (termo criado pelo esteta Umberto Barbaro) caracteriza um cinema que procura focalizar a realidade de um momento histórico, qual sejam as condições de vida na Itália logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Na década de 40, o cinema era Hollywood, o "star-system" (o sistema de astros e estrelas), o "system-studio" (o sistema de estúdios), com o predomínio do cinema de gênero e os filmes todos feitos nos interiores dos estúdios.

Nos postulados de Zavattini, havia a necessidade de os realizadores cinematográficos abordarem a realidade "in loco" sem enfeites, com as filmagens nas ruas, na cidade. Seu manifesto do "descer às ruas" é eloqüente nesse sentido, além de, também, procurar dar ênfase ao humanismo. A utilização de atores não-profissionais tinha a função de desglamurizar o espetáculo cinematográfico.

Do interior hollywoodiano, passava-se ao exterior das ruas de Roma, e, por extensão, das ruas de todas as cidades cujos cineastas apostaram na concepção neo-realista do cinema. A influência desta vai até ao cinema de Hitchcock (cineasta, por excelência, de estúdio), que, com "O homem errado" ("The wrong man"), filmado em Nova York, adere, ainda que por pouco tempo e por um único filme, à necessidade de representar o homem no seu "habitat" natural.

Claude Beylie, exegeta francês, disse que "Ladri di biciclette" é uma parábola sobre a solidariedade humana, chegando a compará-lo a uma obra-prima inconteste do cinema: "Em busca do ouro" ("The gold rush", 1925), de Charles Chaplin. E disse mais sobre este filme "sessentão": "Sob a máscara da constatação objetiva de um país arruinado pela guerra," Ladrões de bicicleta", como, mais tarde, "Milagre em Milão" (1951) e "Umberto D" (1952) - todos de DeSica, denuncia, na verdade, a impotência das instituições para resolverem dignamente os dramas do proletariado".

Ettore Scola, em 1974, com seu poético "Nós que nos amávamos tanto" ("C'eravamo tanto amanti!") faz alusão a este filme de Vittorio DeSica através de um crítico de cinema que o tem como um de seus filmes preferidos e chega, inclusive, a participar de um programa de televisão para responder sobre o método que o diretor empregou para fazer o filho do operário, Enzo Staiola, chorar. A sua resposta, porém, não o faz vencedor, mas anos mais tarde, vem assistir ao próprio DeSica (em sua última aparição nas telas) contar como fez para extrair a emoção de seu pequeno personagem.

Em Roma, um operário desempregado (Lamberto Maggiorani) consegue um emprego para o qual é preciso possuir uma bicicleta. Para consegui-la, sua mulher penhora seus bens domésticos, mas logo no primeiro dia do trabalho a bicicleta lhe é roubada. O filme é a história da busca do veículo até que, ao constatar que este é praticamente irrecuperável, o operário decide, por sua vez, roubar uma bicicleta em dia de muita agitação às portas de um estádio de futebol. Mas é surpreendido e recriminado por seu filho, com o qual, lado a lado, efetuou a procura de seu instrumento de trabalho.

Há, evidente, e ao contrário do esquema narrativo "in crescendo" hollywwodiano, uma certa desdramatização do tema, com os atores e cenários naturais, inseridos num contexto social determinado. A busca é um pretexto para a exposição das mazelas deixadas pela guerra recém-findada. O que faz de "Ladri di biciclette" uma obra tão expressiva e de impressionante atualidade é que os personagens são seres vivos (atualmente na maioria dos filmes oriundos da industrial cultural de Hollywood os personagens são títeres e meros condutores da ação). E a cenografia está eleita por um critério tal que transcende o mero naturalismo para se converter em verdadeiro elemento expressivo.

02 novembro 2011

Em homenagem ao grande Ildásio Tavares

Publico aqui uma coluna original de Ildásio Tavares, grande poeta, intelectual, e escritor baiano já falecido, que fala de Cascalho, de Tuna Espinheira. O recorte, de 2005, que saiu no jornal soteropolitano Tribuna da Bahia,  já está até amarelado. O móvel da publicação é uma homenagem a Ildásio, que conheci quando ainda pertencente ao reino dos vivos, mas, de quebra, também não deixa de ser uma homenagem a Tuna, ainda que bem vivo - e que continua avexado para concluir seu filme sobre Anísio Teixeira, que o Fundo de Cultura rejeitou.

01 novembro 2011

Ernesto Geisel e "Dona Flor"

1) Luiz Carlos Barreto, numa longa entrevista à TV Senado, conta a sua trajetória de homem de cinema e, lá pelas tantas, fala de Dona Flor e seus dois maridos, o maior sucesso de bilheteria de todos os tempos baseado em romance homônimo de Jorge Amado e dirigido por seu filho, Bruno Barreto. O ano, 1976, a ditadura militar exercia poderosa censura sobre todos os filmes. E implicou com Dona Flor. Queria proibi-lo. Barreto foi à Brasília tentar convencer os censores, mas tudo em vão.

2) De repente, ao sair de um ministério, encontra, por acaso, Amália Lucy, filha de Ernesto Geisel, o general de plantão, a quem se atribui o dito de Chico Buarque de Holanda ("você não gosta de mim, mas sua filha gosta¿). Barreto já conhecia Amália, e ela, surpresa, perguntou o que ele estava a fazer em Brasília. O produtor disse a ela que Dona Flor e seus dois maridos tinha sido proibido pela censura. Mas por quê? indagou a filha do general, que manifestou desejo de ver o filme.

3) Barreto marcou um encontro numa sala de exibição brasiliense e projetou "Dona Flor" para Amália Lucy. No final, ela revelou a ele ter gostado muito do filme e não via razão para ser proibido. E disse a Barreto: "Quem gostaria muito de ver seria meu pai, pois ele gosta dos romances de Jorge Amado" O célebre produtor, surpreso, ia dizer alguma coisa, quando ela o interrompeu: "Você não conhece meu pai. Vamos marcar uma sessão no Palácio do Planalto. Marcada a exibição, Barreto entrou meio constrangido para projetá-lo para Geisel e encontrou uma sala toda equipada para a sessão especial, com farta distribuição de 'scotch¿ e salgadinhos.

4) Barreto conta que Ernesto Geisel, durante o transcorrer da projeção, riu muito e, no final, congratulou-o por ter feito um filme ágil e engraçado. Disse que entraria imediatamente em contato com o Ministério da Justiça para a liberação de Dona Flor.

5) Dona Flor e seus dois maridos foi filmado em Salvador em 1975 e me lembro de ter acompanhado a filmagem de uma cena no Largo da Palma. Terceiro filme do jovem Bruno Barreto, que tinha em torno de 20 anos (o primeiro, Tati, a garota, baseado em Anibal Machado, o segundo, A estrela sobe, segundo Marques Rabelo), "Dona Flor" foi lançado no Brasil inteiro e na Bahia em mais de seis salas simultaneamente. Sucesso imenso, filas quilométricas. Mas aconteceu um fato peculiar.

6) Programado para ser exibido em seis salas, na segunda (dia em que os lançamentos entravam em cartaz), o distribuidor da Embrafilme somente tinha recebido em seu escritório apenas cinco cópias e não haveria tempo hábil para mandar buscar a que faltava. Mas, de repente, surgiu uma idéia. A cópia do cinema Bahia poderia ser exibida também no Tamoio, sala perto daquela. Para funcionar, no entanto, era preciso que os horários fossem diferentes. Naquela época, um filme de longa-metragem tinha, a depender de sua duração, cinco, seis latas, contendo, cada uma, um rolo ou carretel. Exibido o primeiro rolo no Bahia, um funcionário da Embrafilme corria para levá-lo ao Tamoio. E assim sucessivamente.

7) Apesar de Barreto ter contado que Geisel tinha ordenado a liberação do filme, o que, realmente, aconteceu, a minha memória me diz que houve o corte de uma cena, quando há um coito anal entre José Wilker e Sonia Braga. Mais de 20 anos depois, quando o filme foi relançado em cópias novas, a cena cortada foi reposta. Se, em 1976, Dona Flor e seus dois maridos foi um êxito sem precedentes, quando do seu relançamento, duas décadas passadas, revelou-se um fracasso retumbante no mercado exibidor.

8) Sonia Braga tinha feito uma Gabriela maravilhosa para uma novela da Globo e o seu aproveitamento como outra personagem amadiana, a Dona Flor, deu muito certo, a ponto do próprio escritor ficar encantado com ela. Poucos anos depois, 1982/83, Barreto a dirige numa produção internacional no papel de Gabriela, mas o filme não soube captar, com a desenvoltura necessária, a crônica de uma cidade de interior que é Gabriela, cravo e canela. No elenco, Marcello Mastroianni. Mas nem mesmo assim conseguiu as graças do público.

9) Em Dona Flor e seus dois maridos, além da de Wilker e Braga, destaca-se a primorosa interpretação de Mauro Mendonça, como o segundo marido de Flor. O primeiro, Vadinho/Wilker, farrista, boêmio, morre de repente num domingo de Carnaval, mas o seu espírito reaparece a tentar a bela Dona Flor. Um triângulo amoroso com acentos espíritas, um "ménage-a-trois" atípico, portanto.

10) A trilha musical é funcional e eficiente a cargo de Francis Hime. E há, ainda, a letra e música de Chico Buarque de Holanda na interpretação de Simone (O que será, o que será...). Murilo Salles, antes de se tornar realizador, é o diretor de fotografia e, no elenco, vários atores baianos como Nilda Spencer, Mário Gusmão, Dinorah Brillanti, Haydil Linhares, João Gama, Wilson Mello, entre outros. Nesta época, meados dos anos 70, a Bahia virou "décor" de alguns filmes, entre os quais Tenda dos milagres, de Nelson Pereira dos Santos, também baseado em romance homônimo de Jorge Amado. Nelson, porém, o grão-duque do cinema brasileiro, se tem resultados excelentes quando faz adaptação de Graciliano Ramos (Vidas secas, Memórias do cárcere) não consegue transferir os romances do escritor baiano para um resultado cinematográfico convincente (Tenda dos milagres é melhor, mas Jubiabá decepcionante, ainda que com a ajuda de capital internacional - ou talvez por isso).

31 outubro 2011

Rosa Espinheira abraça Zé do Caixão

A bela filha do avexado cineasta baiano Tuna Espinheira, Rosa, entrevistou José Mojica Marins, o famoso Zé do Caixão. Espinheira, autor de Cascalho, que passou no Canal Brasil, encontra-se coletando dados para um documentário precioso sobre Anísio Teixeira, que, segundo parece, não foi aprovado pelo chamado fundo de cultura do estado. Se é fundo de cultura, e também considerando a folha corrida do requerente, que há décadas faz filmes, o fundo, na verdade, não pode ser cultural, mas alguma outra coisa. De qualquer maneira, Espinheira, que nunca dorme de touca, vai em frente na esperança de ver, logo, concluído o seu importante registro documental. Torço por você, meu velho, e aqui, deste reduto, faço minha a sua indignação pela reprovação havida nesse fundo, que é, na verdade, um fundo destinado mais à ação dos amigos e outros que tais, assim é se me parece, como diria Pirandello.

O velho Tuna mandou uma mensagem para os seus amigos. Ei-la sem retoques nem maquiagem:
Gente,

Uma ajudada prometida pelo IRDEB dizia respeito ao lançamento, daí meu pedido ao Pola/Sofia. Meu compromisso com a obra de Herberto Sales e com o dinheiro público que bancou a produção, eram coisas sagradas pra mim. Jamais deixei o vagão correr solto, estive, estou e estarei, sempre pelejando para que, o filme CASCALHO, seja arrastado para o ossuário geral da utopias. Tive o projeto do DVD do filme, vetado pelo Fundo de Cultura, sem qualquer explicação. Batalhei e um ano e meio depois consegui pela Assembléia Legislativa. Talvez eu tenha o nome morfético nas engrenagens do famigerado FUNDO... agora excluíram meu projeto sobre Anísio Teixeira, eles, os mesmos que permanecem lá, sem largar o osso. Se, como diz a sabedoria popular: ninguém é profeta em sua terra, quanto mais na Bahia. Mas sou de Capricórnio e tenho o corpo fechado... Eles passarão... (M.Q.)
Abs
Tuna

30 outubro 2011

"Os homens que não amavam as mulheres": 'thriller' surpreendente

Thriller surpreendente, de impacto, Os homens que não amavam as mulheres (Män Som Hatar Kvinnor, 2009), de Niels Arden Oplev, com os não menos surpreendentes Michael Nyqvist e Naomi Rapace (que estão na foto). Produção sueca, o filme se baseia no best-seller Millenium e possui um ritmo desenvolto capaz de criar uma tensão inusitada, como um fio elétrico que estivesse instalado na sua estrutura narrativa. Um jornalista investigativo de uma revista famosa é condenado por denunciar um empresário corrupto baseando-se em provas falsas (na verdade plantadas para incriminá-lo). Antes de começar a cumprir a pena, no entanto, é convidado por um aristocrata milionário que o contrata para investigar o que aconteceu com uma sobrinha, que parece que foi assassinada há mais de quarenta anos. A família do aristocrata é dona de uma empresa e seus familiares vivem uma harmonia hipócrita por causa dos negócios. O velho tem vários irmãos e a sobrinha desaparecida (ou morta) era a sua preferida e provável herdeira de seus bens. O jornalista se transfere para a cidade fria onde ocorrera o suposto assassinato e, na sua busca, encontra uma punk, verdadeiro gênio da informática, uma hacker de primeira, que saiu de clínica psiquiátrica e se encontra sob custódia de um tutor. Ela é a talentosa Naomi Rapace e ele, o jornalista, o excelente Michael Nyqvist.

No que se propõe o diretor Oplev, o resultado obtido por Man Som Hatar Kvinnor é excelente, acima da média dos thrillers que são dados a ver no circuito comercial. Não vi o filme nos cinemas, mas o peguei, au hasard, numa locadora de DVD. Sem nenhuma informação prévia, fiquei admirado com a competência de Oplev. Tudo é ritmo, pulsação, suspense, interesse contínuo, e, ainda de sobra, um olhar nada romântico sobre a triste perversão humana.