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30 julho 2011

O negativo da memória

O jornalista Cláudio Leal publicou, ano passado, um texto sobre este bloguista na ocasião do lançamento de meu box de livros Escritos sobre cinema: Trilogia de um tempo crítico. Não fiquei surpreendido com o texto porque já conheço o estilo de Leal, mas, de qualquer forma, as suas palavras ajudaram para a elevação de minha autoestima, que anda baixa a beirar o fundo do poço. Sobre ser um escrito sobre a minha pessoa, o texto demonstra o talento de Leal, seu fino humor, um estilo envolvente. Acho que já o republiquei aqui mesmo no blog, mas vai assim mesmo outra vez.

"Eisenstein me perdoe". André Setaro dedilha um cigarro do bolso da camisa. "Não aguento mais rever o Encouraçado Potemkin. Quando aparece aquele marinheiro gritando com a mão na boca, eu já fico a favor dos oficiais". Risos enevoados no parapeito da Faculdade de Comunicação (Ufba), em Salvador. "Apresento aos alunos: é uma obra-prima. E venho fumar aqui fora". Barba de trotskista exilado, expressão rubra, a ironia apontada para dentro, Setaro profana o clássico soviético como quem esconde a devoção de quatro décadas a uma cachoeira de imagens.

Os recortes de velhos artigos, empilhados em seu apartamento durante os anos de batucadas diárias na máquina Olivetti, se condensam nos três volumes de "Escritos sobre cinema - trilogia de um tempo crítico" (Azougue/Edufba). Esse patrimônio de coragem intelectual e de erudição ainda se sustenta numa dignidade rara nos ofidiários do jornalismo. Contra as vilezas provincianas, Setaro formou quatro gerações de leitores em sua coluna na Tribuna da Bahia, onde analisou os clássicos, as obras-primas nascentes, as pencas de lançamentos de Hollywood e, porque não é pecado, o corpo de Brigitte Bardot.

Fundador do Clube de Cinema, em 1950, o advogado e ensaísta Walter da Silveira iniciou a formação de uma cultura cinematográfica na Bahia, irradiada pelas sessões do Cine Guarany, às quais fazia romaria o jovem Glauber Rocha. A partir da década de 1970, Setaro passou a cumprir essa missão, desta vez como solitário herdeiro da "responsabilidade humana e social" da crítica, defendida por Walter da Silveira. Ele superou o mestre no conhecimento da linguagem cinematográfica, da estética, da montagem, do "específico filmíco": a sintaxe que move o cinema e o autonomiza diante de outras artes, a manipulação humana capaz de tornar Lillian Gish (a atriz dos filmes de D.W. Griffith) em algo mais que o regador dos irmãos Lumière.
De André Bazin, o extraordinário crítico do Écran Français e dos Cahiers du Cinéma, Setaro extraiu o rigor da análise e a certeza de que "todos os filmes nascem livres e iguais". Bazin é um herói para os que amam o cinema, não somente por ter desbravado uma linguagem à procura de reconhecimento, mas também por salvar François Truffaut do desamparo de um reformatório. Num paralelo menos dramático, André Setaro salvou a nós outros, desgarrados do centro do Brasil, de uma ignorância monumental da história do cinema, nos tempos pré-download. 

Dizia Truffaut, em 1955, que nenhum "enfant de France" sonharia em ser crítico de cinema quando crescesse (ele trataria de assassinar a própria frase). Em sentido contrário, os textos e a personalidade de Setaro estimulavam os alunos a ambicionar a ginástica da crítica. O resultado tanto podia ser um amontoado de pedantismos quanto o início de um interesse sincero pelo estudo do cinema. Setaro sabe identificar os dois tipos de alunos. Não concebe um espectador sem escolhas afetivas, impulsos, paixões. E assim exerce o jornalismo: devoto do papel, da tinta pregada nos dedos. Há quatro anos, infartado, ele convocou uma ambulância. A pontada mais violenta nasceria nos minutos seguintes, ao lembrar-se que seu artigo sairia publicado, naquele sábado, no caderno cultural de "A Tarde". Sob o risco de morte fulminante, desceu à banca de revista, pagou o jornal e subiu a ladeira para esperar o médico.
O relicário de paixões se enrosca no passado. Morte de Marlon Brando, em 2004. Passo uma semana à espera de sua coluna, e apenas silêncio. Telefonema: "Setaro, quando sai o necrológio?". Brota uma voz macia: "Não consegui. Vou lhe dizer a verdade: ainda não me recuperei". No hospital, outra vez infartado, ele aguarda uma cirurgia. Por desgraça astrológica, Antonioni e Bergman morrem no mesmo dia: 30 de julho de 2007. Peço aos amigos para preservarem-no da tragédia. Entro no quarto, Setaro levanta a mão direita, inconsolável: "Bergman e Antonioni morreram!". Um espírito de porco lhe dera a notícia por telefone.
"Godardiano" educado pelas leituras "antigodardianas" do crítico do Correio da Manhã, Antonio Moniz Vianna, Setaro sustenta o anúncio da morte do cinema. Melhor dizer: um certo tipo de cinema. Nenhuma de suas teses provoca mais irritação do que esta de enterrar o cinematógrafo. Se provocado, ele desdobra com a morte do humanismo, como fez numa conversa:

- O cinema que morreu, na verdade, é o dos grandes inventores de fórmulas. Cristalizada a linguagem cinematográfica em meados dos anos 60, a sintaxe se tornou estilo de cada realizador, sem contar, evidentemente, os artesãos que apenas ilustram um roteiro. A formação pelo cinema, a educação sentimental pelo cinema e a educação pelo cinema acabaram. Neste sentido, o de formador de público, o cinema está morto e enterrado.

Sem distanciar-se da imprensa, André Setaro carregou o cinema aos bares de Salvador, no aprendizado de Jeniffer Jones e cerveja, de Luis Buñuel e cigarro, os "recuerdos" precedidos de uma sentença: "Concordo com Buñuel: o homem é a sua memória". Nas mesas, a arte estava inseparável dos fracassos da vida que poderia ter sido, e foi. Homem de obsessões machadianas, Setaro é essencialmente memorialístico. A crítica não ocorre em sua vida como um acidente, mas uma reflexão do seu desprezo ao tempo. Na forma silenciosa com que observa as pessoas, o desejo de retê-las para sempre. 

A imposição da lembrança como prazer e dor, que o aproxima da obra de Alain Resnais, empurrou-o uma tarde à sua Marienbad, a casa da infância no bairro de Nazaré: reviveu o corredor imenso, as correntes e o cheiro do ar condicionado do Cine Guarany, o jambo da antiga Faculdade de Filosofia, a banca de Seu Paranhos, as árvores, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, a figura do Padre Lemos. A casa resistia, apesar das esquadrias de alumínio. Inspirado pelo escritor Pedro Nava, descreveu uma outra vez cada detalhe do antigo Cinema Pax, na Baixa dos Sapateiros. "Escritos sobre cinema" recompõe André Setaro no exercício da crítica e da memória. O que prevalece é a trajetória de um olhar, o mesmo que insiste em retornar aos corredores da infância, ainda inviolado pelo primeiro filme de Catherine Deneuve.

29 julho 2011

"O homem que não dormia", de Edgard Navarro

Hoje, às 20 horas e 30 minutos, avant-première de O homem que não dormia, segundo longa do baiano Edgard Navarro, lançamento mundial no Teatro Castro Alves (Salvador). Na foto, Fernando Neves como o implacável Coronel Abílio, o dono do lugar.


Egresso do boom superoitista, que se deu em meados do decurso da década de 70, quando das jornadas icbanas, Navarro somente após 30 anos de labuta na praxis cinematográfica, fazendo curtas (Alice no país das mil novilhas, O rei do cagaço, Exposed, Porta de fogo...), é que teve a oportunidade de incursionar no longametragismo em Eu me lembro (2004), recursos vindos de um edital governamental (Prêmio Carlos Vasconcelos Domingues). Atenuadas as suas idiossincrasias e a sua iconoclastia, Eu me lembro, o seu amarcord, é, também, o retrato de toda uma geração. O cinema de Navarro, sobre ser um cinema de transgressão, tem humor e graça. O homem que não dormia, portanto, é uma obra determinante na compreensão do universo fílmico navarriano.



O filme foi  realizado em Igatu,  na Chapada Diamantina, e tem no elenco Bertrand Duarte, Evelin Buchegger, Fabio Vidal, Mariana Freire,  Ramon Vanne e Fernando Neves, entre outros atores baianos. O drama tem início quando, numa noite, cinco pessoas de uma cidadezinha do interior são acometidas por um mesmo pesadelo envolvendo um homem sinistro e um tesouro enterrado. Com a chegada de um misterioso peregrino, o vilarejo é arrebatado da rotina medíocre e os personagens são lançados em uma série de acontecimentos insólitos. O Homem que Não Dormia fala do jugo perverso das hipocrisias, medos e doenças, que impedem as pessoas de assumirem as rédeas de seus destinos, reescrevendo suas vidas à luz da verdade. O Homem que Não Dormia marca o reencontro do ator Bertrand  Duarte com  o diretor Edgard  Navarro, também como  protagonista, depois da bem  sucedida experiência no  filme Superoutro (melhor Ator,  melhor filme e melhor diretor no  Festival de Gramado 1989).

28 julho 2011

O apagão cultural da Bahia ( Antonio Risério)

 
Transcrevo aqui um artigo bem pensado sobre a miséria cultural baiana escrito por Antonio Risério.

Batido por Pernambuco em todas as frentes, o Estado precisa reinventar-se como espaço de vanguarda que foi com Vieira, Glauber, Gregório de Mattos, Caetano.
Senão quem perde é o Brasil

Pernambuco? Fogo alto. A Bahia? Banho-Maria. Aquele foguinho brando, feito para cozidos, não para espetos. A verdade é que a Bahia está ficando para trás: em termos políticos, econômicos e estéticos. O cinema pernambucano, hoje, é superior ao que se faz na Bahia.

Na Bahia, pouco se vai além de delírios subjetivistas e fantasias narcísicas. E alguém vai comparar a “axé music”, uma desleitura “techno”, algo equivocada e meramente carnavalizante do passado do samba de roda, com o “mangue beat”, com sua carga de crítica social e dedo em riste para o presente? E isso para não falar do carnaval, que Pernambuco soube preservar o mel do melhor do seu, enquanto a Bahia se avacalhou. Na verdade, Pernambuco está batendo a Bahia em todas, da  produção econômica à criação cultural.

Esta é a comparação que posso fazer. Até poucos anos atrás, Pernambuco – ainda que com quadros políticos superiores aos da Bahia, da direita à esquerda, com Arraes e Marco Maciel – não passava de um engenho. A Bahia, diversamente, se industrializava. Tinha centro industrial e montava um polo petroquímico.

Hoje, o quadro está se invertendo, com Pernambuco saindo na frente, para se converter,em breve, na vanguarda econômica, social e cultural do Nordeste. Enquanto a Bahia ficou tempos esperando pelas bênçãos da Toyota, Pernambuco implantou o Estaleiro Atlântico Sul. Passou  a tocar adiante o Complexo Industrial Portuário de Suape – em Ipojuca, destino de um futuro ramal da Transnordestina
.
Suape é o signo maior da atual arrancada de Pernambuco. A mudança que isso está produzindo em Pernambuco é enorme. No plano social, tornaram-se trabalhadores industriais, de repente, pessoas que viviam da pesca ou trabalhavam no campo, com cortadores de cana-de-açúcar. 

É impressionante ver como existe hoje, em Pernambuco, imensa defasagem entre demanda e oferta de mão de obra. Suape exibe a carência pernambucana em termos de profissionais qualificados. Faltam engenheiros, topógrafos, carpinteiros, etc. Porque Pernambuco está dando passos adiante.

E vejam que, no momento, a maior obra de Suape ainda se acha em construção. É a Refinaria Abreu e Lima. Ela será uma das cinco novas refinarias que a Petrobrás projetou, visando a elevar a produção brasileira de petróleo. Mas não é só em Suape que coisas estão acontecendo. Veja-se Salgueiro, onde estão se encontrando duas grandes obras brasileiras: de infraestrutura logística – a Transnordestina – e de infraestrutura hidráulica, a transposição do São Francisco. E, no próprio Recife, vamos encontrar Porto Digital, um agrupamento de empresas de alta tecnologia, ocupando espaços em uma dúzia de prédios históricos, situados na área do antigo porto da capital pernambucana.

É claro que há coisas lamentáveis em curso. Na própria região de Suape, que não foi preparada para crescer na extensão e no ritmo que está crescendo. Há problemas de expansão desordenada.
De carência de infraestrutura urbana. De segurança pública. Junto com o crescimento econômico, crescem o consumo do crack (da pracinha de Ipojuca à praia azul de Porto de Galinhas) e os números da prostituição infanto-juvenil. Suape precisa de políticas públicas para enfrentar esses problemas. Mas não há dúvida de que é melhor fazer isso num lugar onde há trabalho para todos do que em espaços de pobreza e desemprego.
E Pernambuco conta hoje com um governo que tem competência técnica e descortino social para encarar o assunto.

Quanto à Bahia, o que penso é o seguinte. O governador Jaques Wagner ultrapassou Antônio Carlos Magalhães no campo político: vivemos, hoje, de forma muito mais cordial e civilizada do que tempos atrás. Conseguimos encontrar espaços de convívio e de conversas. Jaques Wagner deu, realmente, um outro estilo à política baiana. Mas falta ele superar Antônio Carlos no campo administrativo. Não acho que isso seja assim tão difícil. O que Antônio Carlos fez, na Bahia, foi uma espécie de modernização defasada, em termos urbanísticos e culturais.

O atual governador, se quiser, pode ir além disso. Pode ser de uma contemporaneidade absoluta. Para começar, demitindo seus secretários mais rotineiros e rastaqueras.

Mas o problema de Wagner não é meramente de segurança pública. É de reinventar a Bahia como espaço de vanguarda. Este foi um papel que a Bahia sempre desempenhou no Brasil, intervindo vigorosa e criativamente na agenda dos grandes debates nacionais, de Antônio Vieira a Glauber Rocha, de Gregório de Mattos a Caetano Veloso. É aqui que a Bahia se encontra anêmica, diminuída, sofrendo de algum tipo de anemia neuronal. É um lugar que precisa se energizar e se vitalizar.
Andar de braços dados com Pernambuco. Porque,  qualquer sorte, o Nordeste tem de ser visto como uma questão nacional. O desenvolvimento brasileiro depende do desenvolvimento da região. Do semi-árido, em especial. A pobreza cultural da Bahia, hoje, é real. Mas ela significa uma pobreza de todos nós. Não faz bem ao Brasil. A nenhum brasileiro.
*ANTONIO RISÉRIO
É POETA E ANTROPÓLOGO BAIANO. AUTOR DE AVANT-GARDE NA BAHIA (INSTITUTO LINA BO E P. M. BARDI)

27 julho 2011

"Na Cena" promove o humor no Cine Futuro

Uma iniciativa do apocalíptico Raul Moreira, Cassio Sader, Mary Gatis e Camila Valença, Na Cena, um programa livre, não tem papas na língua. São flashs, por assim dizer, do que acontece no Cine Futuro, sempre com muito humor e uma anarquia necessária, bem-vinda. Na Cena é exibido na sessão mais nobre do seminário, antes da apresentação dos curtas e do filme internacional da noite. O programa viaja através dos eventos cinematográficos mais importantes e não se limita, apenas, ao Cine Futuro. Ao ser surpreendido por Raul Moreira, com a sua indefectível câmara portável, lembrei-me de Ionesco e disse: O futuro está nos ovos. Se valeu, valeu, se não, avisem aos meus inimigos.

26 julho 2011

Cabeçadas esdrúxulas

Dissipadas as divergências do pretérito, e encarando o futuro com amizade e confiança, André Setaro dá uma cabeçada amiga em Edgard Navarro, para cumprimentá-lo devidamente pela conclusão de seu segundo longa, O homem que não dormia. Ontem, no foyer do Teatro Castro Alves, durante o Cine Futuro (como agora se chama o Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual). O homem que não dormia, segundo opus navarriano no longametragismo (o primeiro o premiado Eu me lembro) tem sua avant-première sexta próxima, às 20 horas, na sala nobre do majestoso TCA, onde se concentram as principais atividades do seminário. O cineasta de O Superoutro está com fé e esperança neste filme, projeto antigo e que somente agora conseguiu colocá-lo nas imagens em movimento. Não se pode disso discordar: Edgard Navarro é o cineasta cult do cinema baiano contemporâneo.

Cine Futuro agita Salvador

Desde 2005, José Walter Pinto Lima ou, simplesmente, Waltinho, é o responsável pela organização do Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, que já se encontra em sua sétima edição, e está acontecendo até o dia 30 em Salvador com mostras de filmes, mesas redondas, palestras de especialistas renomados, lançamento de livros, e, na sexta, a avant-première de O homem que não dormia, último longa (o segundo depois de Eu me lembro) de Edgard Navarro. Waltinho (chamemo-lo assim) pensou um evento no qual pudessem ser discutidas idéias sobre o cinema contemporâneo, seus impasses, sua estética, sua lingaugem, distanciando-se do feijão-com-arroz tão habitual em seminários do tipo que se perdem na discussão sobre o mercado cinematográfico brasileiro ou questões bizantinas que se prolongam por décadas e décadas. Impressionate como Waltinho tem tantos contatos internacionais e é amigo de tantos realizadores e críticos importantes do além-mar. O seminário, que neste ano em curso, tomou o nome de Cine Futuro, além das mostras de filmes longos e curtos, tem uma especial sobre Bernardo Bertolucci (o ano passado o eleito foi Pasolini e, no retrasado, Godard, todo ele em película, em celulóide, e orientado por um especialista cujo nome me esqueço agora). Há a presença de Antoine de Baecque, entre outros, que está numa mesa redonda e vai lançar, durante o Cine Futuro, o seu mais novo livro. Trata-se de um intelectual de alto coturno, bastando, para isso, citar a sua extraordinária biografia sobre François Truffaut, uma visão não apenas do homem como também do seu processo de criação.
O Cine Futuro em sua sede no majestoso Teatro Castro Alves de Salvador.
Maiores informações sobre o evento no seu site, que tem tudo e até, ao vivo, a transmissão das atividades do dia:
http://www.cinefuturo.com.br

24 julho 2011

O prazer da estesia

A aventura (L'avventura, 1959), de Michelangelo Antonioni, visto no alvorecer dos conturbados anos 60, constituiu-se num choque estético de alta tensão. Além do mais porque seguido de dois anteriores: Hiroshima, mon amour, 1959, de Alain Resnais e, também realizado no mesmo ano, Acossado (A bout de souffle), de Jean-Luc Godard. E A doce vida (La dolce vita, 1960) também não traumatizou nesta mesma época?

A aventura é o exemplo mais perfeito da desdramatização praticada por Antonioni (e também por Roberto Rossellini: Romance na Itália/Viaggio in Italia, 1953), que detona, com o domínio completo da anti-narrativa, uma nova perspectiva para o cinema neste drama extraordinário sobre a incomunicabilidade humana. Godard, em O desprezo (Le mépris, 1963) foi muito influenciado por Viaggio.

Mas, pensando bem, há quanto tempo não tomo um choque estético no cinema? Há algumas décadas, suponho. Daí a se dizer que o cinema se esgotou em invenções, havendo mesmo a necessidade de se concordar com Orson Welles, quando ele afirma que a arte cinematográfica tem seu apogeu entre 1912 e 1962, 50 anos, e, a partir daí, entra no seu perigeu. Evidentemente que, depois desta data, excelentes filmes são feitos. O funeral da chamada sétima arte, ainda segundo o cineasta de Cidadão Kane, (outro choque em 1941), está bem refletida em O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valance, 1962), de John Ford, com John Wayne e meu amigo James Stewart.

Se o cinema nasce oficialmente com a projeção feita pelos Irmãos Lumière no Boulevard des Capucine, Paris, em 28 de dezembro de 1895, a sua linguagem, no entanto, somente se estabiliza vinte anos depois com David Wark Griffith em O nascimento de uma nação (The birth of a nation) no qual o célebre realizador americano sistematiza as invenções anteriores dos elementos da linguagem fílmica com rara e surpreendente eficiência dramática.

A linguagem, porém, estabelecida em The birth of a nation (nasce uma narrativa convincente) ainda precisa esperar muitos anos para ser enriquecida e aperfeiçoada, estilizada em outras formas de expressão. O ocaso da década de 50 e o advento da de 60 é uma época de grande riqueza que se poderia chamar mesmo de revolucionária, ainda que suas sementes tivessem sido lançadas nos anos 50 (e a contribuição de certos diretores americanos não pode nem deve ser desprezada, a exemplo de Robert Wise em Quero viver/I want to live, Robert Aldrich em A morte num beijo/Kiss me deadly, 1955 e A grande chantagem/ The big knife, 55, entre outros).

Com a predominância do cinema-montanha-russa, e a incorporação da estética do videoclip ao espetáculo cinematográfico oriundo da indústria cultural, a produção média está um verdadeiro lixo e há uma crescente infantilização temática. O cinema que se vê hoje não é o mesmo que se via num passado nem tão remoto assim. 

Outro dia, numa das salas desses complexos espalhados pelos shoppings centers, antes do filme que fui ver, contei sete trailers e todos com a estética da tesourinha, monstros, explosões, fugas alucinadas, exterminadores do futuro, etc, a demonstrar que existe, no cinema contemporâneo, uma falta absoluta de humanismo nos filmes. Os personagens não são gente de carne e osso, mas títeres, marionetes, condutores, apenas, da ação acelerada e ininterrupta.

Alguns realizadores procuram cabelo em ovo, como é o caso de Lars Von Trier, que, em sua busca pela renovação da linguagem cinematográfica, tenta de tudo. Abole o cenário realista em Dogville, alia o musical a uma história violenta em Dançando no escuro, tenta o digital, a câmera na mão a tremer o tempo todo em função da idéia fixa de inovar de qualquer maneira. Como é possuidor de talento, se não houve uma renovação na estética, pelo menos conseguiu fazer bons filmes embora os anteriores ao apetite renovatório sejam as suas melhores obras como Ondas do destino (de uma sensibilidade à flor da pele) e Os idiotas.

O fato inconteste é que a era dos grandes inventores de fórmulas do cinema acabou e está bem enterrada. Mas é preciso que a nova geração, cujo conhecimento cinematográfico, se muito, se concentra mais nos anos 90 e, pouco, nos 80, precisa, urgentemente, se quiser compreender o cinema contemporâneo, voltar-se para o passado para entender as contribuições daqueles filmes essenciais, aquelas obras que provocaram choques estéticos quando foram apresentadas.

É preciso que se veja, mas ver e rever com um olhar investigatório e, mesmo, se for o caso, arqueológico: O encouraçado Potemkin e Outubro, de Sergei Eisenstein, Aurora (Sunrise), de Friedrich W. Murnau, A paixão de Joana D'Arc, de Carl Theodor Dreyer, Luzes da cidade, de Charles Chaplin, Cidadão Kane, de Orson Welles, Roma, cidade aberta, de Roberto Rossellini, Ladrões de bicicleta, de Vittorio De Sica, Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti, Rastros de ódio, de John Ford, Morangos silvestres, de Ingmar Bergman, a trilogia A aventura/A noite/O eclipse, de Michelangelo Antonioni, Histórias de Tóquio, de Yasujiro Ozu, Os melhores anos de nossas vidas, de William Wyler, Hiroshima, mon amour e O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais, Acossado, de Jean-Luc Godard, Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, Assim estava escrito, de Vincente Minnelli, Cantando na chuva, de Stanley Donen/Gene Kelly, Crepúsculo dos deuses, de Billy Wilder, Os brutos também amam (Shane), de George Stevens, Crônica de um verão, de Jean Rouch e Edgar Morin, Retrato de mulher, de Frtiz Lang, A regra do jogo, de Jean Renoir, Um punhado de bravos, de Raoul Walsh, Pickpocket, de Robert Bresson, Um corpo que cai, de Alfred Hitchcock, Matar ou morrer, de Fred Zinnemann, Contos da lua vaga, de Kenji Mizoguchi, A roda da fortuna, de Vincente Minnelli, Meu tio, de Jacques Tati, A condessa descalça, de Joseph L. Mankiewicz, Johnny Guitar, de Nicholas Ray, Sedução de carne, de Luchino Visconti, Oito e meio, de Federico Fellini, Lola Montès, de Max Ophuls, O mensageiro do diabo, de Charles Laughton, Palavras ao vento, de Douglas Sirk, O sétimo selo, de Ingmar Bergman, Cinzas e diamantes, de Andrdzej Wajda, Onde começa o inferno (Rio Bravo), de Howard Hawks, entre muitos e muitos outros.

Para o prazer de ter, em alta tensão, alguma estesia.