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05 maio 2007

Ennio Morricone: gênio e basta!



Ouvir suas partituras é entrar no mais puro êxtase estético, é sair do rés-do-chão, elevar-se, afirmar-se, e suas músicas podem ser consideradas como afirmações da superioridade do homem, que sai de sua abjeta condição humana para alcançar um patamar superior. Não sei mais definir o que se pode sentir ouvindo as partituras de um gênio chamado Ennio Morricone, que ganhou, neste ano, um Oscar especial pela sua grande contribuição ao cinema. Tantos os filmes, tantas as maravilhas, que fica difícil a citação, deste ou daquele sem cair em omissão. E o pior é que o gênio, ano que vem, completa 80 anos.

03 maio 2007

Walter da Silveira redivivo



O crítico de O Estado de São Paulo, Luiz Carlos Merten, escreveu em seu blog (que recomendo: http://blog.estadao.com.br/blog/merten/) sobre a figura singular de Walter da Silveira cuja obra completa (quatro volumosos livros) foi publicada no apagar das luzes do governo passado. Não fui ao lançamento porque no cativeiro hospitalar a esperar a hora e a vez de me submeter, para continuar vivendo e assistindo a filmes, a uma cirurgia de revascularização do miocárdio, a popular 'ponte de safena'. Pedi a um amigo que pegasse os meus exemplares. Quando, já restabelecido, veio me trazê-los vi que estava a resfolegar, pois os quatro volumes não possuem a leveza das penas de galinhas. A foto que ilustra o post ( não achei no Google nem no Msn uma foto de Walter da Silveira) é a da Sala Walter da Silveira, cinema alternativo vinculado à Fundação Cultural do Estado da Bahia. Mas vamos logo abrindo as aspas para o texto de Merten:
"Tenho certeza de que já falei, aqui, da minha admiração por Walter da Silveira, crítico que descobri na biblioteca do Colégio Israelita-Brasileiro, em Porto Alegre, quando lá trabalhava, no começo dos anos 70. Um dia fui procurar o que havia sobre cinema nas estantes e encontrei aquele volume – As Fronteiras do Cinema –, com uma seleção de críticas de Walter na imprensa baiana. O que ele escrevia sobre Kurosawa, Resnais e Antonioni pode ter ficado datado, ao não acompanhar o desenvolvimento desses autores, mas os textos sobre Trono Manchado de Sangue, Hiroshima Meu Amor e a trilogia da solidão e da incomunicabilidade permanecem irretocáveis. O passeio que Walter da Silveira dá pela história do cinema é tão brilhante quanto sucinto e vai ser sempre referência para quem o ler e acreditar, como ele e sua geração – alguns de nós ainda acreditam nisso –, que o cinema é um instrumento do humanismo. Pois bem. Cheguei hoje na redação e encontrei na minha mesa um pacote bem pesado. Abri e encontrei os quatro volumes que o Funcultura e o Governo da Bahia estão editando em homenagem a Walter da Silveira, com organização e notas de José Umberto Dias. O título, Walter da Silveira – O eterno e o efêmero, sai do discurso dele de posse na Academia Baiana de Letras, em 1966. Como eopígrafe, há uma frase – Fiquem essas palavras para lembrança de meus pais na memória de meus filhos. Foi uma coisa que me tocou tanto que quase choro, ao transcrevê-la. Folheando ao acaso, encontrei na página 70 do terceiro volume o que talvez estivesse procurando, inconscientemente – Walter da Silveira entrevista Glauber Rocha. Os dois analisam Redenção, de Roberto Pires – e Glauber diz que o filme inventou a técnica e inventou a produção do cinema da Bahia; Roberto quase repetiu os Lumière na Bahia, ele acrescenta. Também discutem o barroquismo no autor de Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, que Glauber define como seu filme baiano rodado no Rio. Glauber não se considerava barroco porque, como dizia, não queria estar preso a nenhuma escola ou tendência. Mas ele achava importante o sentido do barroquismo e dizia que sua tradição, inerente à baianidade, podia ser transmitida até o cinema. Vou procurar mais textos do Walter da Silveira sobre Glauber e/ou o Cinema Novo. Ainda estou sob o impacto da revisão que Nelson Pereira dos Santos fez de sua obra no Recife, negando sua vinculação com o Cinema Novo. Sabe lá o que vou descobrir agora pelo olhar de uma testemunha crítica (e privilegiada) daquela época. Mesmo que não descubra nada nesse sentido, vai ser bom reencontrar o pensamento de um grande crítico. A dedicatória, assinada pela filha de Walter, fala na lembrança do ‘companheiro imortal’ que ele, com certeza, foi."

01 maio 2007

Revisão oportuna




Revi, após 32 anos, Um estranho no ninho (One Flew Over the Cuckoo's Nest, 1975), de Milos Forman, que vi pela primeira vez no seu lançamento, e, novamente, repetindo-me, o assombro pelo tempo que passa. Para mim, Um estranho no ninho parece foi visto ontem, e a constatação da passagem do tempo impressiona. É o filme que deu o Oscar a Jack Nicholson, que o recebeu tomando champagne no sapato alto de Louise Fletcher (a enfermeira, que também ganhou a estatueta como melhor atriz do ano). Nesta época, Nicholson participaria de Chinatown, grande trabalho de Polanski que deu início à revisão do film noir que tem, anos depois, seu ponto alto em Corpos ardentes, de Lawrence Kasdan (que, por sinal, desapareceu), com William Hurt e Kathleen Turner, um dos momentos fundamentais, assim acho, do cinema da década de 80 (assim por alto pensei em O touro indomável, de Martin Scorsese, e em Era uma vez na América, de Sergio Leone). O que achei interessante nessa revisão de One Flew Over the Cuckoo's Nest foi ver profissionais do cinema que se tornariam conhecidos, mas, naquele período, eram totalmente desconhecidos, como Danny DeVito, Scatman Crothers, Brad Dourif. Crothers já era na ocasião um veterano (engraxa os sapatos de Jerry Lewis em O otário/The patsy, 1964, a obra-prima do comediante). Tenho a impressão, revendo Um estranho no ninho, que Stanley Kubrick em O iluminado (The shining) se inspirou muito no filme de Forman, principalmente na formulação do cast (Jack Nicholson e Scatman Crothers).

Une femme est une femme



Segundo longa metragem de Jean-Luc Godard, que se sucede a Acossado (A bout de souffle, 1959), que detonou a Nouvelle Vague e traumatizou duramente o cinema francês contemporâneo, Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme, 1961), é um filme menos conhecido do realizador, mas uma de suas películas mais engraçadas, espirituosas, cuja feitura denota o frescor da época, de um existencialismo que se vivia nas ruas de Paris cheias de idealismo e romantismo. Não é um musical, como se anunciou, e como muita gente pensou: é, simplesmente, uma comédia romântica ao avesso, que subverte os clichês do gênero inteligentemente – não como agora em que a subversão do clichê já virou gasto lugar-comum. E tem Anna Karina, que, na época, companheira de Godard, revelava-se uma atriz encantadora.

Une femme est une femme foi exibido em cópia na bitola 16mm pela primeira vez em Salvador quando da mostra Godard, que ocorreu em julho de 2003 na Sala Walter da Silveira. Os filmes do cineasta foram aqui lançados na década de 60, a maioria no cine Capri – que se incendiou em 1980 e ficava no Largo 2 de Julho – e distribuídos pela Franco-Brasileira, mas, não se sabe a razão, Uma mulher é uma mulher permaneceu inédito. A Net/Sky, através do extinto canal Telecine Classic, o exibiu na sua boa época, ao lado de Pierrot, le fou (chamado, aqui, O demônio das onze horas), Alphaville e Acossado, que, assinala a sua estréia no longa, e continua sendo o seu melhor filme.

Há uma clara referência ao cinema clássico americano e, numa determinada cena, Anna Karina diz a Jean-Paul Belmondo que gostaria de estar num musical de Vincente Minnelli, ao lado de Gene Kelly e Bob Fosse. O personagem de Belmondo se chama Alfred Lubitsch – referência explícita ao mestre da comédia sofisticada Ernst Lubitsch. E num determinado momento, há uma citação de Tirez sur le pianiste, filme de François Truffaut, colega de Godard na Nouvelle Vague e na revista ‘Cahiers du cinema’. O personagem de Belmondo, principal intérprete de Acossado, de repente, diz que não tem tempo porque não pode perder Acossado, havendo, nisso, exacerbação do processo alusivo na metalinguagem, que, na época, era novidade e ato de desmistificação do espetáculo. E Jeanne Moreau, musa da Nouvelle Vague, faz uma pequena ponta em pé num bar onde Belmondo toma um ‘drink’.

A comédia romântica clássica é subvertida, porém em termos de poesia e metalinguagem. A montagem sincopada, de tomadas rápidas, é repetida aqui. Logo no início, quando Anna Karina se dirige ao cabaré onde é estrela de ‘strip-tease’, ela passeia pelas ruas de Paris e a partitura de Michel Legrand – de grande beleza – é retirada e depois recolocada. Godard, também em outros momentos, retira o áudio e faz com que os personagens se dirijam aos espectadores. Quando Belmondo vê-se rejeitado por Karina, ele fala ao público: “Ela não me quer!” Claro que o filme deve ser situado dentro de um contexto histórico-cinematográfico, quando a desmistificação do espetáculo era uma novidade. O cinema perdeu, definitivamente, um certo encanto, uma certa ingenuidade. Wim Wenders, num depoimento para Janela da alma, de João Jardim e Walter Carvalho, afirma que o cinema contemporâneo não oferece margem para a imaginação, porque tudo vem muito pronto, com tudo já dito.

Em cinemascope, colorido, a iluminação de Roul Coutard – diretor de fotografia preferencial de Godard – contribui para criar o clima, acentuando tonalidades, ressaltando matizes que se introduzem no tecido dramatúrgico. As seqüências seguem um ritmo sincopado, com repetições de gestos, de movimentos, que seriam uma das marcas registradas do autor. E o que se poderia chamar de história se dilui na mise-en-scène a demonstrar que um filme verdadeiro é a expressão de um estilo, estabelecendo-se pela maneira de o cineasta articular os elementos da linguagem cinematográfica.

Karina é uma ‘strip’ que mora com Jean-Claude Brialy enquanto Jean-Paul Belmondo lhe faz a corte diária. Ela tem uma idéia fixa: ter um filho, mas seu companheiro parece desinteressado em lhe oferecer o presente. Chateada, vai procurar Belmondo, e, no apartamento deste, dorme com ele. Mas volta à sua morada com Brialy e lhe conta o acontecido. Brialy, então, tem, com ela, uma relação carnal. E o filho de quem será? No final, ele lhe chama de infame, mas ela responde: “Je ne suis pas infame, je suis seulement une femme”. Simples e grandioso.

30 abril 2007

Sganzerla: papa da 'non chalance'




Achei outro texto meu sobre o autor de O bandido da luz vermelha também publicado, como o de debaixo, na época de seu falecimento. Sganzerla, além de ser um talento, era pessoa afável, ainda que temperamental. Sua afabilidade tinha limites.




Rogério Sganzerla foi, sem dúvida, um dos mais coerentes e íntegros realizadores do cinema brasileiro, além de possuir uma pulsão criadora rara que o faz integrar a seleta galeria dos cineastas mais criativos da cinematografia nacional. A sua obra de estréia, O Bandido da Luz Vermelha (1968), traumatizou duramente os realizadores e pode ser considerada um marco ou, até mesmo, um filme divisor de águas. Lançado pouco antes do Ato Institucional número 5 – que cerceou por muitos anos qualquer manifestação livre no Brasil, modelou um tempo e uma época. Se formalmente continha elementos explosivos e inovadores dentro do ponto de vista da linguagem – a narrativa como um programa de rádio dos mais bregas, os cortes brilhantes, a fragmentação com a adição de material de procedência diversa como recortes de jornais, histórias em quadrinhas, filmes, etc, também continha uma significação exemplar propícia para o momento histórico no qual viviam os brasileiros amordaçados pela ditadura implacável. O Bandido da Luz Vermelha se insurge contra os postulados cinemanovistas – que procuravam retratar a realidade brasileira em tom grave – e instaura a anarquia, a iconoclastia pela impotência de seus criadores no estabelecimento de um cinema representativo. Como diz seu personagem num determinado momento do filme: “A gente quando não pode fazer nada se avacalha e se esculhamba”. Melhor retrato do país impossível. Melhor explosão de criatividade, difícil. O Bandido da Luz Vermelha desencadeou uma onda de filmes que foram intitulados de ‘marginais’, ou, mesmo, ‘udigrudis’. O carro-chefe é este filme de Rogério Sganzerla, ainda que alguns críticos estudiosos desse momento prefiram considerar A margem (1967), de Oswaldo Candeias como o ponto de partida do ‘Cinema Marginal’

Se o ‘trauma’ foi imenso, Sganzerla ofereceu as coordenadas para a continuidade de um cinema autoral que estaria morto com o advento do Ato Institucional 5. Dificilmente existiria, por exemplo, na Bahia, Meteorango Kid, O Herói Intergalático (1970), de André Luiz Oliveira, ou Caveira My Friend (1969), de Álvaro Guimarães, ou, mesmo, o média Vôo Interrompido (1969), de José Umberto, sem a existência anterior de O Bandido da Luz Vermelha, obra insólita e brilhante, renovadora, que pode ser incluída entre os cinco maiores filmes brasileiros de todos os tempos. A fita de Sganzerla é um brado retumbante de artistas que, asfixiados, tentam, pela verve da criação, respirar o cinema em seus vinte e quatro quadros por segundo. Sganzerla morreu com o estigma do ‘primeiro filme’, pois passou a vida sendo cobrado por um outro ‘bandido’ que, na verdade, nunca mais apareceu, apesar de suas tentativas de renovação das estruturas lingüísticas em obras posteriores. Mas nada que se pudesse equiparar a esta obra de estréia de um cineasta que contava, apenas, 22 anos. E que, desde os 16 já assinava críticas cinematográficas no sisudo “O Estado de S.Paulo”.

Mas Sganzerla, se em O Bandido da Luz Vermelha, sua indiscutível obra-prima, estabelece um cinema de montagem, com tomadas rápidas, pulsação alucinante, já em A Mulher de Todos, filme seguinte, de 1969, aciona um freio no conceito de duração. A radicalidade chega em Sem Essa Aranha (1970), quando abandona o corte em movimento para dar lugar a um cinema muito mais de ’mise-en-présence’ do que de ’mise-en-scène’. Se “O bandido da luz vermelha” é o supra-sumo desta, os filmes radicais de Rogério Sganzerla dos anos 70 são arredios à fluência narrativa, propõem ao espectador ’estar em presença’ do que é registrado, enfim, são obras que se caracterizam pelo estabelecimento do plano-seqüência como moto da ’inação’. ’Inação’, porém, do que se poderia chamar do discurso fílmico porque, na essência, a ’ação’ está dentro da tomada. Em ’Sem essa aranha’, se não há falha de memória, apenas nove são os planos-seqüências. Em particular, a festa no quintal de uma casa com o próprio rei do baião, Luiz Gonzaga, a promover o agito enquanto a protagonista, Helena sempre Helena, perambula meio desesperada. Em outro momento, é Jorge Lordelo (Zé Bonitinho) quem compõe o plano-seqüência, que depois o repetiria, quase no mesmo ’tom’, em Abismu. Há, nos filmes de Sganzerla, uma tendência anarquizante muito acentuada, uma explosão de ’non chalance’ que difere da ’seriedade’ de seu colega e amigo Júlio Bressane, excetuando-se, deste, os primeiros filmes, com mais frescor, anarquia, ironia, como se pode verificar em ’Matou a família e foi ao cinema’ e ’Cara a cara’, até hoje, o melhor Bressane.

Sganzerla, após brilhar no cinema de ’mise-en-scène’, com sua magistral obra de estréia, parte célere para um processo de radicalização tal que se poderia ver, nisto, uma tentativa homicida de matar a ’mise-en-scène’, arrebentando as estruturas de sua linguagem para fazer emergir, quase como uma totalidade, o sentido da ’mise-en-présence’. O cinema é, para Sganzerla, uma narrativa dentro do plano, mas não como faz Michelangelo Antonioni com sua ’desdramatização’ em obras-primas como “A aventura”, “A noite”, ou “O eclipse”, entre outras, pois aqui há um fio condutor. Sganzerla parte este fio condutor e deixa os planos-seqüências quase como se fossem filmes autônomos.

O cinema de montagem viria a partir dos filmes dedicados a Orson Welles, como Nem Tudo é Verdade e Tudo é Verdade, puras ’montagens’, um afresco do imaginário brasileiro seja a nível iconográfico ou ao nível da musicalidade.

Saudades de Sganzerla


Tenho a honra de dizer que fui amigo de Rogério Sganzerla, realizador do notável O bandido da luz vermelha, que considero (e é considerado pela maioria da fortuna crítica) um dos cinco maiores filmes brasileiros de todos os tempos. O que posto abaixo é um texto escrito quando de sua morte, que ocorreu em fins de 2003, se não me engana a memória. Sganzerla morou em Salvador por muitos anos. Era casado com uma baiana, Helena Ignêz. Morou algum tempo em Arembepe, Itapoã, e, já mais para o fim de sua temporada baiana, comprou um apartamento na Avenida Paralela. O gesto fazia parecer que o realizador iria ficar para sempre entre nós. Mas não sei o motivo, deixou a Bahia e viveu a última década de sua curta vida no Rio de Janeiro.


Rogério Sganzerla nunca aderiu ao comercialismo. Neste ponto, foi inflexível até o fim. Uma vez, num festival, acho que em Brasília, contrariado com Neville D’Almeida, que, por oportunismo, tinha aderido ao pensamento sganzerliano sobre cinema, mas, depois, aderiu ao puro mercado, foi ao quarto do hotel onde este estava hospedado e desferiu-lhe soco violento. Razão alegada: o ex-amigo Neville traiu seus princípios. Em 1978, quando existia, aqui, o escritório da Embrafilme, que programava o Glauber Rocha, dando preferência aos filmes de Barretão, num escárnio sem precedentes, chegando a deixar Menino do Rio mais de dez semanas em cartaz, quando nas últimas a sala estava às moscas, a colocação de O Abismo - ou como se quer agora Abismu - apenas no Rio Vermelho acendeu a fúria sganzerliana. Dirigiu-se ao escritório da Embra e com o pé - estava lá, vi com estes olhos que a Terra há de comer - espatifou o telex da empresa.

Tinha seus princípios, suas concepções sobre cinema, e lutava por eles até o fim. Sua estadia na Bahia foi significativa. Virou hippie, ficava deitado na rede em Itapoã nos anos 70 e, depois, resolveu comprar um apartamento na Avenida Paralela. Curtia muito o sol de Itapoã. Mas, já na Paralela, com a sua sempre querida Helena Ignêz e os filhos, comprou um Chevette enferrujado para se deslocar. Uma vez, tomando carona, ao fechar a porta, esta caiu no chão.

Certa ocasião, encontrei com ele na porta da Tribuna da Bahia aonde ia regularmente entregar minhas colunas. Era de tarde, mais ou menos 2 horas. Fomos beber cerveja no bar de um ‘Espanha’ em frente. Mais de dez garrafas das grandes. Sganzerla, com notas de 500 - naquela época a maior, saindo pelo bolso da camisa, pagou tudo, apesar de minha insistência em dividir. Fomos a um escritório à rua Ruy Barbosa onde ele me emprestou A Marca Da Maldade, de Orson Welles, em cópia 16mm contida em duas latas. Eu tinha, nesta época, um projetor IEC desta bitola e vi o filme várias vezes até que, anos depois, Sganzerla irrompeu em meu apartamento para buscar a cópia, que pensava ter ele esquecido para sempre. Bem, nesta rua Ruy Barbosa tinha um bar e continuamos a beber. Corria célere o ano de 1979. Noite adentro, com as portas do bar - um fétido bar, diga-se de passagem somente accessível aos temperamentos etílicos - já arriadas, Sganzerla subiu na mesa e fez um discurso atacando o Cinema Novo. Ninguém, no recinto, entendeu porra nenhuma. Mas embriagados de toda espécie gostam mesmo de entrar, após umas e outras, em qualquer portinha onde venda cerveja - ou, se for o caso, trago forte. Sganzerla, diga-se de passagem, bebia apenas ocasionalmente.

Encontrei-o várias vezes no jardim dos Barris, onde eu ficava esperando a sessão começar na Sala Walter da Silveira com uma namorada. Ele ia muito neste jardim, que ficava atrás da casa dos pais de Helena Ignez, que se localizava na mesma rua da pensão de D. Lúcia Rocha, onde Glauber passou a adolescência e veio a conhecer a linda vizinha com quem se casou na Igreja das Mercês em 1959.

Com o passar do tempo foi deixando o hipismo e já nos anos 80 tinha mudado completamente a sua indumentária. Saiu de Salvador, foi morar na Urca no Rio de Janeiro. Ia sempre, porém, a São Paulo. Foi na Bahia que começou a pesquisar sobre Orson Welles. Podia ser encontrado toda tarde no Instituto Geográfico e Histórico, ali perto da Piedade. Contou-me que, um dia, em Itapoã, conversando com um pescador velho, perguntou a ele se conhecera Orson Welles e, para sua estupefação, o pescador o tinha conhecido, sim, descrevendo-o nos mínimos detalhes. É que Welles teve uma temporada baiana e filmou aqui alguma coisa para “It’s all true”. Ficou encantado com a praia de Itapoã, fez conferência no Instituto Histórico e se hospedou no Palace Hotel na rua Chile na época em que existia jogo de roleta. Tomou um porre homérico, mas não jogou os móveis do quarto pela janela como fizera no Copacabana Palace depois que soube, pelo telefone, que a RKO tinha desistido de “It’s all true”,cortando-lhe os recursos.

Levei-o uma vez à Facom, ainda no prédio de Biblioteconomia. Exibi em 16mm O bandido da luz vermelhae, depois, Sganzerla falou muito para uma platéia apática, que, em 1982, o desconhecia. Saímos com as latas pesadas do filme e nos dirigimos ao Avalanche no Canela onde ficamos a tomar umas e outras. Para minha vergonha, alguns alunos se retiraram no meio da palestra do grande cineasta.

A última vez que o vi foi em 2001 quando fiz parte da comissão julgadora dos roteiros do Prêmio Carlos Vasconcelos Domingues. Ele também fazia parte.

Biblioteca básica do cinema brasileiro


Na visita que faço sempre ao Reduto do Comodoro (http://redutodocomodoro.zip.), blog cult de Carlos Reichenbach, encontrei uma bibliografia essencial sobre o cinema brasileiro que copiei para colá-la aqui. Se é roubo, peço perdão, mas creio que a divulgação da citada bibliografia é importante para todos aqueles que desejam conhecer melhor a nossa cinematografia. Segundo está no reduto, quem lha mandou foi Gustavo Ferreira. A foto ilustrativa do post é de Limite, de Mário Peixoto. Eis a relação dos livros:


INTRODUÇÃO AO CINEMA BRASILEIRO - de Alex Viany - Editora Instituto Nacional do Livro, 1959.

HUMBERTO MAURO, CATAGUASES, CINEARTE - de Paulo Emílio Salles Gomes - Editora Perspectiva / Ed. Universidade de São Paulo, 1974.

CRÔNICA DO CINEMA PAULISTANO - Maria Rita Galvão - Editora Ática, 1975.

BURGUESIA E CINEMA: O CASO VERA CRUZ - Maria Rita Galvão - Editora Civilização Brasileira, 1981.

ESSE MUNDO É UM PANDEIRO - de Sérgio Augusto - Editora Companhia das Letras / Cinemateca Brasileira, 1989.
TRISTEZAS NÃO PAGAM DÍVIDAS - CINEMA E POLÍTICA NOS ANOS DA ATLÂNTIDA - de Mônica Rugai Bastos - Editora Olho d'Água, 2001.

A CHANCHADA NO CINEMA BRASILEIRO - de Afrânio Mendes Catani e José Inácio de Melo Souza - Editora Brasiliense, 1983.

BRASIL EM TEMPO DE CINEMA - de Jean-Claude Bernardet - Editora Paz e Terra, 1978.

70 ANOS DE CINEMA BRASILEIRO - Adhemar Gonzaga e Paulo Emílio Salles Gomes - Editora Expressão e Cultura, 1966.

CINEMA DE INVENÇÃO - de Jairo Ferreira - Primeira edição: Editora Max Limonad, 1986. - Segunda Edição: Editora Lomiar, 2000.

CINEMA MARGINAL (1968/1973) - A representação em seu limite - de Fernão Ramos - Editora Brasiliense, 1987.

CINEMA MARGINAL E SUAS FRONTEIRAS - Organizadores Eugênio Puppo e Vera Haddad - Editado pelo Centro Cultural Banco do Brasil, 2001.

CINEMA, ESTADO E LUTAS CULTURAIS - ANOS 50 / 60 / 70 - de José Mário Ortiz Ramos - Editora Paz e Terra, 1983.

DICIONÁRIO DE CINEASTAS BRASILEIROS - de Luiz Felipe de Miranda - Art Editora / Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

ENCICLOPÉDIA DO CINEMA BRASILEIRO - Organizadores: Fernão Ramos e Luiz Felipe de Miranda - Editora Senac, 2000

HISTÓRIA ILUSTRADA DOS FILMES BRASILEIROS - 1929 - 1988 - de Salvyano Cavalcanti de Paiva - Editora Francisco Alves, 1989.

HISTÓRIA VISUAL DO CINEMA BRASILEIRO - de José Carlos Monteiro - Atração Funarte, 1996.

O NEGRO BRASILEIRO E O CINEMA - de João Carlos Rodrigues - Editora Pallas, 2001.

DICIONÁRIO DE FILMES BRASILEIROS - de Antônio Leão da Silva Neto - Editado pelo autor, 2002.

CINEMA BRASILEIRO 1995 - 2005 ENSAIOS SOBRE UMA DÉCADA - Organizador Daniel Caetano - Editora Azougue, 2005.

HUMBERTO MAURO E AS IMAGENS DO BRASIL - de Sheila Schvarzman - Editora da Unesp, 2003.

O CINEMA DA RETOMADA - Organizada por Lucia Nagib - Editora 34, 2002.

CINEMA DE NOVO - UM BALANÇO CRÍTICO DA RETOMADA - de Luiz Zanin Oricchio - Editora Estação Loberdade, 2003.UTOPIA NO CINEMA BRASILEIRO: MATRIZES, NOSTALGIA, DISTOPIAS - de Lúcia Nagib - Editora COSAC NAIFY, 2006.

CINEMA DA BOCA - DICIONÁRIO DE DIRETORES - de Alfredo Sterheim - Editora Imprensa Oficial de São Paulo, 2005.

AS GRANDES PERSONAGENS DA HISTÓRIA DO CINEMA BRASILEIRO - 1970 - 1979 - de Eduardo Giffoni Flórido e Flávio Leandro de Souza - Editora do Sesc Rio de Janeiro, 2007.

Coisas de discos e fitas



Quando surgiu, o DVD recebeu muitos panegíricos, que ressaltavam sua durabilidade, sua excelência em relação a fita magnética, a definição da imagem, etc. É verdade que esta última característica é inegável. Quem já se acostumou com o DVD dificilmente aceita as imagens vaporosas do vídeo. Além do mais, hoje, o cartucho deste parece algo dinossáurico, pré-histórico enquanto que o disco é pequeno, leve, bom de levar. Mas há algum tempo que observo que sempre tenho problemas com os DVDs alugados em locadoras. Quando são novos, tudo bem, excetuando-se acidentes de percurso. Mas em relação a DVDs mais antigos, a coisa está feia. A conclusão que cheguei é a de que a fita magnética tinha durabilidade maior nas locadoras - nas locadoras, bem entendido. Inclusive porque fica fechada, dentro do cartucho à primeira vista inviolável. O disco não, está à disposição das ranhuras e gralhas, da mão gordurosa que o pega, dos riscos quando, por acaso, cai ao chão. Resultado: muitos DVDs que alugo não os consigo ver do meio para o fim, porque ficam pulados, quando não há paralização completa, espécie de congelamento, da imagem. Já o DVD que você compra para seu deleite a coisa é outra. Com cuidado, o disco, realmente, pode durar para sempre. Mas a coisa ainda está para estourar. Confidenciou-me um proprietário de locadora que está tendo grandes prejuízos com os DVDs estragados, que ele, consciente, tira das prateleiras. A locadora na qual alugo, perto de meu prédio, deixa nas prateleiras muitos DVDs riscados e possui, para refutar qualquer reclamação, um aparelho de DVD que lê até osso de defunto. Aconteceu comigo: fui reclamar de um DVD que não consegui ver do meio para o fim e a atendente da locadora, ouvida a minha queixa, colocou o disquinho no tal aparelho, que leu tudo do meio para o fim. E saí, ainda por cima, com fama de mentiroso. Na verdade, ela, que, no fundo, sabe que estou dizendo a verdade, com a maior desfaçatez, apoiada no DVD que lê osso de defundo, disse-me: "O problema está no aparelho do senhor!"
A imagem que se vê, inclusa neste post, é a de um cartaz japonês de Repulsa ao sexo (Repulsion, 1965), de Roman Polansky, com Catherine Deneuve, um de seus grandes momentos, produção inglesa, de um realizador que mal tinha saído de sua Varsóvia, para enfrentar a Europa e o mundo, e dá um pontapé certeiro ao alvo com Repulsion. A criação da atmosfera, a partitura pontuando as aflições da personagem, um universo opressivo e esplêndido como cinema.