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14 outubro 2011

Leon Cakoff: agente da cultura cinematográfica

Morreu Leon Cakoff, um agente cultural que possibilitou aos amantes do cinema um grande enriquecimento com a sua grande Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Tinha apenas 63 anos. E ontem também faleceu Alberto Salvá, autor de um dos mais belos filmes brasileiros de todos os tempos: Um homem sem importância, com Oduvaldo Vianna Filho e Glauce Rocha.

13 outubro 2011

Incontinência Urinária

O espaço de meu blog é democrático - disso faço questão. E a pluraridade, quero crer, é conditio sine qua non do debate democrático. O cinema baiano, no entanto, parece que se fecha em copas quando se trata de seus filmes. Já disse aqui que, na noite do lançamento de O homem que não dormia, não o pude ver com a atenção necessária e, por ironia (mas não é ironia), por causa das cervejas tomadas no café-teatro durante a tarde e o cansaço, tive, durante a projeção, uma incontinência urinária, que me fez afastar vários minutos da contemplação do último filme do caro Navarro. Voltando, adormeci. Não vi, portanto, O homem que não dormia. O título dado por Raul Moreira, porém, e devo deixar isso bem claro, não tem a ver com o que me aconteceu.  Polemista por natureza e vocacão, o jornalista e cineasta Raul Moreira me enviou o texto que vai abaixo com o título acima exposto. É de sua exclusiva lavra todas as palavras que estão abaixo. E, para que não percamos mais tempo, vamos a elas, abrindo as necessárias e imprescindíveis aspas:

"Caro Edgard Navarro,
Por respeitá-lo como realizador e também por reconhecer certa autenticidade em seu caráter irreverente, só eu sei o quanto foi difícil constatar que a sua derradeira peripécia cinematográfica, O Homem que não dormia, infelizmente não se constituiu à altura das expectativas, mostrando-se irregular em sua “espinha dorsal”.

Digo-lhe isso com absoluta convicção, pois, depois de assisti-lo pela primeira vez no Teatro Castro Alves, dentro do Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, pude revê-lo de recente, no Festival de Brasília, em concurso, como você bem sabe.

E, através destas linhas, finalmente faço público o meu parecer a respeito de O Homem que não dormia, avaliação que você me cobrou na Capital Federal de forma deselegante, demonstrando, como de costume, o seu desequilíbrio em lidar com as supostas adversidades, principalmente quando atingem às suas convicções.

Antecipo-lhe que não quero entrar no mérito de seus descompassos, pois aqui não é espaço terapêutico, mas, sim, um blog que se propõe a discutir e reverberar questões importantes da Sétima Arte. E, nada melhor, portanto, do que incorrer na leitura de um filme que tinha tudo para acontecer e que perdeu-se, quem sabe, na sua obsessão em curar-se através de sua própria obra.

Cá, antes de entrar na análise da coisa em si, vou situar rapidamente o leitor a respeito de quem é você, a partir de suas principais obras cinematográficas, os premiados SuperOutro (1989) e Eu Me lembro (2005), média-metragem e longa-metragem que respectivamente o elevaram à condição de cineasta de relevo.

Há quem diga que SuperOutro, o super-herói esquizoide interpretado de forma magistral por Bertrand Duarte, é um dos dez melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Exagero ou não, a verdade é que o média de pouco mais de 48 minutos tornou-se cult e, explicitamente, revelou a sua personalidade criativa e atormentada.

Por fim, 16 anos depois de o SuperOutro, finalmente você se deu ao seu primeiro longa, Eu me lembro, obra que talvez tenha sido supervalorizada pelos inúmeros prêmios conquistados no Festival de Brasília em 2005. De certa forma autobiográfico e de perceptível inspiração felliniana, tanto que o batizaram de “amacord edgardiniano”, trata-se de um filme arrumado e convencional na sua estrutura, levando-se em conta a referência que tínhamos do imbatível SuperOutro.

Agora, talvez completando um ciclo, que acabou formando uma trilogia toda ela autorreferente, você arriscou-se em O Homem que não dormia através de uma abordagem junguiana, de forma confessa. Em outras palavras: para soterrar os seus fantasmas e garantir-lhe uma almejada redenção, você nos brindou com um filme que beira o realismo fantástico, nos transportando ao seu universo complexo e repleto de sombras e perversões, dando-se ao direito, claro, de escapar pelos ares a gritar, novamente através de seu ator fetiche, Bertrand Duarte, como o fizera em SuperOutro, a sua frase mais famosa: “Abaixo a gravidade!”.

Pois bem, Edgard Navarro: espero que você tenha encontrado alívio para os seus tormentos, que tenha alcançado a sua redenção. E, se assim realmente se deu, nos resta, tão-somente, analisar a obra cinematográfica através da qual você libertou-se, nas suas belezas e misérias, pois, independentemente de suas convicções pessoais, quando ganhou as telas, O homem que não dormia passou a ser nosso, também.

Realizado a partir de um insight que bateu-lhe à porta há mais de 32 anos, quando fumava um baseado de boa erva, você construiu a trama de O Homem que não dormia centrado na maldição que acompanha um barão sanguinário e a qual se desdobra direta e indiretamente nas angústias de cinco personagens que encontram-se perdidos em suas existências e sonham os mesmos sonhos: Vado (Fábio Vidal), um epilético que apanha do pai; Madalena (Mariana Freire), mulher livre e mal falada; Brígida (Evelin Buccheger), mulher do coronel e grávida de seu amante; PráFrente Brasil (Ramon Vane), um sequelado da época da ditadura militar e, por fim, padre Lucas (Bertrand Duarte), atormentado pelos seus desejos carnais.

Para completar o desfilar de personagens centrais, Edgard Navarro vive o sanguinário Barão, proposto em flashbacks, enquanto Luiz Paulino dos Santos é uma espécie de ermitão que supostamente o reencarna no tempo presente, dentro de uma perspectiva kardecista, numa clara alusão ao mito das vidas passadas. E, de lambuja, uma série de personagens secundários tentam dar um sentido ao processo narrativo.

Assim, em um mundo perdido de uma Bahia profunda, Navarro constrói um mosaico no qual estão expostas questões ideológicas, de classe, de raça, de credo e, principalmente, nos transporta ao cerne de suas perversões e angústias. E o faz, diga-se de passagem, não apenas com imaginação e criatividade, mas, também, contagiado pelos seus autores e filmes prediletos, a exemplo de Artaud, Pasolini e até Buñuel, sem falar do próprio SuperOutro, influências que o mesmo reconheceu durante entrevista coletiva no Festival de Brasília.

O diabo é que em O Homem que não dormia você acabou por menosprezar a inteligência dos espectadores, pois, as cenas explicativas de seu filme, para não falar em didatismo, acabaram tirando a graça de uma trama que poderia vingar, muito bem. E, tal lacuna, reflete a falta de ajuste do roteiro, o que prejudicou a montagem e, por tabela, tornou a narrativa irregular. No final, o somar de derrapagens, como o diluir do filme em tantos personagens, o comprometeu sobremaneira, expondo outras fraturas, como a trilha sonora exagerada e estrondosa, sem falar do abuso que causou certas cenas que não tinham propósito algum, senão aquele de chocar, como o surto de “incontinência urinária” de seus desajustados. Como não poderia deixar de ser, tais escolhas acabaram por minar alguns acertos pontuais, como a direção de arte, a fotografia e o bom representar de parte do elenco.

Sim, O homem que não dormia é um filme que merece um estudo aprofundado por parte daqueles que se interessam pelos processos de construção e afirmação de uma obra cinematográfica. Isso porque, em um mesmo trabalho, encontram-se elementos que o fazem vigoroso e corajoso no seu sentido autoral e anárquico, mas, ao mesmo tempo, é repleto de discrepâncias, as quais são difíceis de relevar, principalmente quando se envolve interesses que não podem ser deixados de lado e dinheiro público.

ESTRUTURA - Se certamente vai encontrar dificuldades para encarar o dito público médio, o que significa que não vai fazer bilheteria, no seu primeiro teste de fogo O Homem que não dormia desandou. No Festival de Brasília, encerrado na semana passada, levou apenas um prêmio de consolação, no caso o merecido Candango de Melhor Ator coadjuvante para Ramon Vane. No restante, passou de mãos abanando, sendo derrotado por filmes de estrutura acadêmica, mas que foram capazes de comunicar, de construir um fio entre o desejo e a realização de seus autores.

No final, fica a sensação de que O homem que não dormia é um navio no qual o comandante Edgard Navarro conclamou a sua tripulação a partir em busca de uma viagem redentora, sem mostrar-lhe com exatidão a rota que pretendia seguir. Mesmo assim, sem pestanejar, seus marujos embarcaram de cabeça, achando que iriam alcançar juntamente com o velho lobo do mar um porto seguro. Por azar, uma tempestade avariou a nau no início do percurso. Hoje, ironia da sorte, a dita cuja encontra-se à deriva e fazendo água, deixando poucas opções ao comandante: ou se dá ao retirar incessante da água que a inunda, impossibilitada de reparo, numa espécie de mito de Sísifo, ou afunda nas profundezas com o seu mastodonte, de preferência sozinho, na mais honrosa das mortes.

Curioso, para não dizer sintomático, foi que após as duas primeiras exibições, em Salvador e em Brasília, você afirmou que fez um filme para si e, ainda que a sua obra afundasse diante dos olhos alheios, não estava nem aí, comportamento que mais parece uma estratégia de autodefesa. Em poucas palavras: você passou a ideia de que a materialização de O homem que não dormia era suficiente para aplacar a sua dor, para afastá-lo de seus tormentos, para fazê-lo alcançar a bendita redenção. Que não tenha uma recaída, ainda que para nós, espectadores vorazes dos seus filmes, bom seria vê-lo em ação novamente, arriscando-se em percorrer os caminhos do Inferno para alcançar o Paraíso."

Raul Moreira

Na imagem, Bertrand Durate e Luis Paulino dos Santos em um momento de O homem que não dormia. Clique nela.

09 outubro 2011

A vida íntima de Sherlock Holmes (The private life of Sherlock Holmes, 1970), do mestre Billy Wilder, originariamente filmado no formato cinemascope, vem sendo exibido pelo Telecine Cult em tela espichada, cheia (full screen), a resultar, com isso, a deformação da imagem, a desfiguração do enquadramento do filme. Pouco apreciado, porque, quando lançado em sua época, e retirado de cartaz, nunca mais exibido, A vida íntima de Sherlock Holmes é um Wilder em plena sensibilidade de seu humor e de seu cinema com um acento hitchcockiano que o faz ainda mais saboroso. Trata-se também do primeiro filme que Wilder (vienense radicado no cinema americano) realiza na Inglaterra (os interiores nos estúdios Pinewood) e Escócia (exteriores em Inverness). Produzido em 1970, com roteiro do inseparável I. A. L. Diamond, baseado nos personagens de Sir Conan Doyle, A vida íntima de Sherlock Holmes, sobre ser um espetáculo de grande finura, humor, e observação de comportamentos, é uma obra que se incorpora a uma filmografia quase única da história do cinema como mais uma variante de sua verve versátil e amplitude temática. A influência de Hitchcock se faz notável, mas influência benéfica, mais que soma do que diminui, como acentua Paulo Perdigão, o grande crítico, em comentário que posto abaixo.

Inativo, ocioso, Sherlock Holmes (interpretado por Robert Stephens) passa o tempo a tomar cocaína, apesar dos reclamos de seu biógrafo e amigo Dr. Watson (Colin Brakely). Aceitando o convite para assistir ao balé russo, Holmes é levado à presença da primeira-bailarina, Petrova (Tamara Toumanova), que, a desejar um filho genial, escolhe Holmes como o pai ideal. Polidamente, como é do seu feitio, o detetive recusa, a alegar ser um homossexual (é audacioso, para a época, a insinuação desta condição), declaração que deixa atônito o Dr. Watson totalmente desconfiado de sua misoginia. Dias depois, uma jovem, Gabrielle (a insinuante Geneviève Page), que tentara o suicídio no Tâmisa, é levada à residência de Holmes (rua Baker, 221-B). Ela viera da Bélgica para descobrir o paradeiro do marido, um engenheiro. O fleumático private eye segue uma pista, apesar das advertências em sentido contrário de seu irmão, Mycroff (interpretado pelo emblemático Christopher Lee).

Em Inverness, na Escócia, descobre Holmes a existência de um estranho submersível testado pelo governo, e que tem a forma do lendário monstro marinho Long Ness. Mycroff, que trabalha no projeto, revela a Holmes que Gabrielle é, na verdade, uma espiã alemã. Frustrado, o detetive volta à sua Londres enquanto Gabrielle é presa. Mais tarde, Holmes vem a saber, transtornado, que a moça fora executada. A solução, e solução wilderiana, diga-se de passagem, será voltar à cocaína.

The private life of Sherlock Holmes é o vigésimo - segundo filme da carreira do diretor e o nono em parceria com o roteirista Diamond (trabalham juntos desde Amor na tarde/Love in the afternoon, 1956). Produzido com sete milhões de dólares (uma mixaria em relação aos tempos faraônicos da Hollywood atual), é o centésimo vigésimo filme a apresentar a figura do detetive criado por Conan Doyle e aqui abordado livremente.

Como homenagem a este filme pouco apreciado de Billy Wilder e, também, como homenagem ao grande crítico que foi Paulo Perdigão, publico aqui uma crítica de sua lavra publicada no antigo Guia de Filmes do INC (Instituto Nacional de Cinema, que também publicava a revista Filme/Cultura. Nos bons tempos da crítica cinematográfica. Perdigão morreu em janeiro de 2007, o que se constituiu numa perda enorme para os escritos sobre a arte do filme. Tinha Perdigão como o seu melhor filme Os brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens. Chegou a ir, sob os auspícios da Filme/Cultura, entrevistar Stevens, que, a princípio arredio, com o desenrolar da conversa, assombrou-se com o conhecimento de Perdigão sobre Shane. No final da entrevista, disse que Perdigão conhecia mais o filme do que ele, seu diretor. Eis seu comentário:

"Elementar, meu caro Wilder. É o que o roteirista Diamond deve ter comentado com o diretor Billy Wilder quando ambos resolveram decifrar - sem consulta à fonte Conan Doyle - um mistério chamado A vida íntima de Sherlock Holmes. As pistas deixadas pelo fiel Dr. Watson dentro de uma caixa top secret eram dignas da imaginação, do faro e da irreverência do mais célebre detetive de todas as épocas; além da clássica indumentária sherlockiana (o boné de camurça, o cachimbo, a écharpe, a lente de aumento), já estavam os relatos que Watson não teve coragem de publicar em The Strand Magazine por serem indiscretos demais. Quatro episódios reveladores da personalidade de Sherlock e que, como diz Wilder com seu conhecido cinismo, "também refletem a imagem de certa Inglaterra".

Antes da atual aventura, Sherlock esteve 127 vezes na tela - numa delas (alemã de 1963) interpretado por Christopher Lee, que aqui faz o irmão de Holmes, Mycroft. Mas só agora, sob os traços do shakespeariano Robert Stephens, ele foi examinado por um cineasta à altura de sua sofisticação diabólica. Wilder identifica-se com Holmes e evidentemente o admira: "Ele é um dos maiores personagens da literatura, comparável a Hamlet e Cyrano de Bergerac". Por isso, as inconfidências sobre a intimidade do herói não atingem o plano da sátira devastadora; contém-se respeitosamente na fina ironia, numa reconstituição muito fleumática e astuciosa do mundo em que viveu Holmes, a velha Inglaterra vitoriana com seus personagens nobres, céticos e calculistas. Na carreira de Wilder, dominado por tantas provocações indômitas (A montanha dos sete abutres, Quanto mais quente melhor, Beija-me idiota), este filme ocupa posição mais discreta, porém, em quase tudo refletindo a sofisticação que o diretor guardou de suas antigas ligações com o mestre Lubitsch, como roteirista de A oitava esposa do Barba Azul e Ninotchka.

The private life of Sherlock Holmes é também como uma inesperada homenagem que o cinema presta a Hitchcock. O estilo e o tom da narrativa têm o mesmo sabor de velhos thrillers ingleses de Hitch e muitas imagens - a velha paralítica na loja deserta, os monges misteriosos do trem, os anões do cemitério - chegam a ser acintosamente hitchcockianas. Há, inclusive, na cena das ovelhas, uma citação de Os 39 degraus e, na seqüência do balé russo, a repetição de uma passagem idêntica de Cortina rasgada, com a mesma e sinistra Tâmara Toumanova. Até quando se diverte com a velha Inglaterra (a Rainha Vitória, de metro e meio de altura, protesta contra a falta de cortesia na guerra e manda destruir o submarino porque "não se pode atacar o inimigo sem aviso prévio"). Billy Wilder parece estar querendo fazer de A vida íntima de Sherlock Holmes o filme mais hitchcockiano que o Hitchcock da fase inglesa não dirigiu, conclui o grande Perdigão.