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04 dezembro 2008

O desespero de Veronika Voss



O Desespero de Veronika Voss (Die sehnsucht der Veronika Voss, Alemanha, 1981), de Rainer Werner Fassbinder, com Rosel Zech, Armin Mueller-Stahl, Annemarie Düringer.
Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim, obra crepuscular de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), O desespero de Veronika Voss é o seu penúltimo filme (o derradeiro: Querelle, baseado em texto de Jean Genet) antes de morrer aos 36 anos vitimado por uma overdose de álcool e cocaína. O DVD, distribuído pela Versátil, conserva o formato original da tela de cinema (1.66:1) e apresenta uma cópia luminosa, perfeita, capaz de dar ao filme toda a sua expressividade, principalmente porque a sua plástica da imagem é fundamental, pois se insere no próprio tecido dramático.
O que assombra em O desespero de Veronika Voss é a iluminação expressionista de Xaver Schwarzenberger, que trabalha o preto e branco com extrema funcionalidade, a permitir que a produção de sentidos do filme se faça muito pela sua plástica ao invés de se restringir (como a maioria das obras cinematográficas) ao conteúdo da fábula. Neste particular, a luz (muitas vezes estourada) é o elemento que sufoca o espectador, inserindo-o num mundo desordenado e caótico. O branco assume uma dimensão asfixiante, como nas seqüências no interior da clínica. Não se pode ter uma compreensão de O desespero de Veronika Voss sem a percepção da expressão fotográfica. Estilizadíssimo, com uma evocativa reconstituição da década de 50 na Alemanha, o filme, como em quase todos os de Fassbinder, é influenciado pelo melodrama de Douglas Sirk.
Com o cineasta de Veronika Voss, o gênero assume uma potencialização e, pelo excesso de sua construção tonal, beira ao paradoxo. Esta obra-prima faz parte dos filmes que o autor rodou sobre o seu país do pós-guerra. Narra o drama existencial de uma atriz decadente (vivida por Rosel Zech, que tem, aqui, um desempenho antológico, e, no DVD, quase uma hora de extra com seu depoimento tomado exclusivamente para o lançamento neste formato), que, antiga estrela da UFA (Universum Films AG) durante o nazismo, vicia-se em morfina. Vem a conhecer um jornalista esportivo que, fascinado por ela, tenta ajudá-la. A visão de Fassbbinder do mundo e das pessoas é cruel: não existe lugar para o afeto, pois todos querem exercer o domínio pelo outro, e as instituições da sociedade são podres e contaminadas por natureza. O filme parece ser a premonição do desespero do realizador, que viria a morrer também de angústia existencial pela tragicidade da vida.
O desespero de Veronika Voss também poderia ter um sub-título: O Desespero de Rainer Werner Fassinder. Há uma seqüência que define bem a estética fassbinderiana: aquela num bar quando Veronika convida Robert para um encontro e, na mesa, plenamente iluminada como numa luz pentecostal, ela fala do cinema diante dele. O cinema é luz, e Fassbinder, neste filme, esculpe as cenas com a luz. Há, em O Desespero de Veronika Voss, a influência não somente de Sirk (Palavras ao Vento; Tudo que o Céu Permite; Imitação da vida) como a de Max Ophuls e, principalmente, a de Josef Von Stenberg, para quem o cinema era essencialmente composição plástica. Realizador consagrado (O Anjo Azul, O Expresso de Shangai), Sternberg foi o responsável pelo lançamento de Marlene Dietrich, que, dele, disse um dia: “Sternberg fazia brotar a beleza de um jogo de luzes e sombras”.
Filme sobre uma atriz em decadência, mas, também, sobre a Alemanha dos anos 50, e, principalmente, uma obra que reflete a luz criadora que potencializa a estesia da arte do filme, O desespero de Veronika Voss faz lembrar, também, Crepúsculo dos Deuses (o célebre Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder, com William Holden e uma interpretação inexcedível de Gloria Swanson. Rosel Zech, a Veronika de Fassbinder, não lhe fica atrás.

Na foto, Fassbinder abraça Rosel Zech.

Cinéfilo pós-moderno é mal educado e débil mental

É o que diz o resultado da enquete na qual votaram 52 leitores deste blog. 15 (28%) optaram pela "falta de educação" do cinéfilo atual que conversa em celular durante a projeção, além de risadinhas fora de hora, do uso monstruoso do Iphone em plena exibição de um filme, do mastigar incessante da pipoca (e o barulho do amassar do saquinho?), das conversinhas ao pé do ouvido, et caterva. Em segundo lugar, com 14 votos (26%), os votantes consideram que tal comportamento é "coisa mesmo de débeis mentais". O fato é que, como já cansei de escrever neste blog e alhures, ir ao cinema hoje se constitui num inferno, pois o comportamento da platéia é selvagem. O público dos complexos de salas se comporta como se fossem vândalos. Não há mais paz e sossego para que o amante do bom cinema possa ver um filme em silêncio. Tudo é apatia diante do espetáculo cinematográfico. Na verdade, e também a repetir o que venho dizendo, o ir ao cinema atualmente é, apenas, uma das fases do processo de shoppear. Vai-se não ao cinema, mas ao shopping e, nele, depois de consumir e passear, como complemento vem a sala exibidora e o filme é escolhido ao acaso - pelo cartaz bonito, pela promessa de efeitos especiais, etc.

03 dezembro 2008

Da cor no cinema

Este post já foi publicado, mas o republico. Que mal há nisso?
Qual a função da cor nos filmes? Atualmente, quando todos os filmes lançados no circuito são coloridos, o preto e branco virou uma exceção utilizada apenas por questões estilísticas. E a maioria das pessoas, desconhecendo as possibilidades do claro/escuro, não mais aceita o filme sem cor. Se o filme é em branco e preto geralmente é recusado pelos exibidores, havendo, somente, casos raros de aceitação, como o referente a A lista de Schindler, porque distribuído por major poderosa.
Assim, se é verdade aquilo que afirmou Roland Barthes, que colorir o mundo significa em última análise negá-lo, como deve comportar-se a cor se não quiser esmagar a realidade, mas, pelo contrário, interpretá-la poeticamente? E, sobretudo, que atitude deve assumir relativamente às imagens e aos sons? A resposta é fácil de prever: a cor no filme deve cumprir uma missão essencialmente psicológica. Deve ser, não bela, mas significativa. Somente deste modo tem a sua presença uma justificação expressiva e pode servir para dizer coisas que não poderiam ser ditas sem a sua intervenção. Se tal não acontece, a cor não apenas resulta nociva para o filme como corre o risco de empobrecê-lo a ponto de fazê-lo regredir para um nível inferior ao alcançado no velho preto e branco.
Não é, portanto, o cinema colorido que interessa ao nosso artigo, mas, sim, o cinema de cor. Desde que, naturalmente, não reproduza a realidade de maneira cada vez mais perfeita e cada vez mais banal. Neste particular, os videomakers contemporâneos são pródigos na ânsia de reprodução do real de maneira naturalista e, em conseqüência, vulgar, pelo fato de não ter consciência da função da cor no tecido dramatúrgico da expressão videográfica. Quantos aos belos planos, não sendo o cinema uma pinacoteca – mas, pelo contrário, a vida transformada em discurso no próprio momento em que se desenrola – eles condenam o filme – ou o vídeo – à asfixia e impedem a sua respiração vital.
De citações pictóricas ilustres está a história do cinema cheia, assim como o inferno está cheio de boas intenções. Gian Piero Brunetta, ensaísta italiano, enumera alguns filmes que não aplicam bem o cinema de cor, por mais encantador e sugestivo que possa ser o resultado. A opinião é bastante discutível – este comentarista, por exemplo, não concorda, porém se trata de um estudioso do assunto. Vão desde o impressionismo francês que inspira a fotografia de Elvira Madigan (1967), de Bo Wilderberg, à pintura inglesa do século XVIII evocada em Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick, do modelo dos macchiairoli italianos dos finais do século XIX seguido por Sedução da carne (Senso, 1954), de Luchino Visconti às homenagens à pintura surrealista presentes em La montagne sacré (1973), de Alexandre Jorodowsky (que esteve no Rio e SP, sendo que, nesta cidade, participou de intenso debate que varou a noite, a entrar pela madrugada, conduzido, entre outros, por Carlos Reichenbach). Para não falar, ainda segundo Brunetta, já de citações relativas a pinturas singulares, como Rossi reproduzido em Dois destinos (Cronaca familiare, 1962), de Valério Zurlini, ou Degas em que se inspira Laura (1980), de David Hamilton, ou, ainda, Remington, recriado na tela pelo mestre John Ford em Legião invencível (She wore a yellow ribbon, 1949). Os filmes citados aqui, vale repetir, segundo Brunetta, são exemplos da má utilização do cinema de cor. E o que diria ele de Caravaggio e do recente A moça do brinco de pérolas?
Porque Brunetta acha que nos exemplos citados a expressão propriamente fílmica não atinge qualquer autonomia, marcada como está pela autoridade de tantos mestres da cor, antigos e modernos. Diante dos mestres pictóricos nos quais se inspiram para compor seus filmes, os realizadores se abstêm de tomar iniciativas pessoais que possam ofender a ilustre posição de que gozam os modelos invocados.
Quando, pelo contrário, ao invés da abstenção, os realizadores decidem tomar a iniciativa, a linguagem cinematográfica pode finalmente exibir a sua autonomia, embora tenha de defrontar-se com alguns obstáculos e alguns perigos durante a empreitada. Estes são os casos em que a cor se preocupa em ser funcional e não apenas bela. São os casos em que a cor aparece na tela para complicar as coisas que nela se sucedem e não para as secundar redundantemente. Trata-se, nestes casos, de intervenções sem as quais o filme seria diferente do que é, ou, pior ainda, não estaria completo. Em suma, somente quando a cor consegue ser irredutível a qualquer outro código presente é que se pode falar de função qualificante da cor e de emprego antinaturalista, mas também antiacadêmico, dos recursos cromáticos.
Entre as funções aptas a produzir sentido, a psicológica e a crítica são as mais eficazes, para além daquelas a que mais se recorre no âmbito do cinema que odeia a cópia rasteira da realidade quotidiana. E como o cinema brasileiro gosta de ser uma cópia servil na representação do real nas telas!
De emprego da cor em sentido psicológico, tem-se como exemplo O deserto vermelho (Deserto rosso), de Michelangelo Antonioni. As cores, aqui, são apagadas, envoltas por uma dominante cinzenta que unifica as várias tonalidades, privando-as das gradações mais vivas. Isto se justifica porque, no filme, o mundo é visto pelos olhos de uma mulher que sofre de nevrose e se sente separada da realidade. Neste caso, portanto, cabe à cor a tarefa de dar a idéia de como a protagonista vê as coisas, o que acontece sem necessidade de recorrer com insistência a indicações inerentes ao diálogo e à encenação no seu conjunto. Do mesmo modo, em Satyricon, de Federico Fellini, as tintas carregadas e desprovidas de bom gosto denotam a vulgaridade do mundo representado e sublinham a sua essência lúgubre, próxima da desagregação material e espiritual. Em Nosferatu, de Werner Herzog, cabe à dominante azul, que impregna todas as cores, a função de conferir à narrativa aquele tom de lucidez que a acompanha do princípio ao fim, sugerindo a presença do Mal onde e como quer que seja, através de uma espécie de expressionismo cromático inserido na construção figurativa geral. Em O açougueiro (1970), de Claude Chabrol, a cor evolui conjuntamente com a própria fábula e, mudando de quando em vez de tonalidade, segue o seu itinerário narrativo desde a atmosfera idílica inicial até à descida aos infernos dos protagonistas com a respectiva ressurreição final, (dramática e cromática). Em Os guarda-chuvas do amor (Les parapluies de Cherbourg, 1964) e Duas garotas românticas (Les demoiselles de Rochefort, 1966), ambos do poeta Jacques Demy – um dos cineastas mais admiráveis de toda a história do cinema, as cores exercem um importante papel constitutivo do tecido dramático, situando-se como elementos determinantes da mise-en-scène – nos dois casos, também, a partitura musical de Michel Legrand pode ser considerada tão importante que o músico faz configurar, ao lado da mise-en-scène, uma mise-en-musique.
Mas é a cor que aqui interessa. Em outro exemplo, Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia (Bring me the head of Alfredo Garcia, 1974), de Sam Peckinpah, a dominante vermelha presente a nível figurativo exprime o clima de torpor e de violência próxima da explosão que caracteriza o local onde se desenrola a ação narrada. Há, finalmente, casos em que o efeito psicológico é confiado à presença de um único valor cromático que emerge do restante preto e branco. É o que acontece em Reflexões nos olhos dourados (Reflections in a golden eye, 1967), de John Huston, com Marlon Brando e Elizabeth Taylor, onde o monocromatismo da fotografia é quebrado pela presença exclusiva do tom vermelho, a significar a loucura latente do protagonista que sofre de um trauma mental que remonta à infância. As cópias distribuídas no Brasil, no entanto, foram banhadas de um technicolor que destruiu por completo a intenção inicial do autor.
Fala-se em intervenção crítica da cor, pelo contrário, quando a cor desempenha uma função dissonante no interior do filme. Neste caso, a escolha cromática deixa de corresponder ao ponto de vista psicológico de um dos protagonistas ou à exigência de definição ambiental para passar a refletir o ponto de vista do próprio autor assim como a análise que faz da realidade representada. Em Dillinger está morto (Dillinger è morto), de Marco Ferrari, as cores, cruas e brilhantes, de aspecto metálico, denunciam a invasão multicolor dos objetos a que o homem é sujeito na civilização tecnológica e a conseqüência reificante que tal invasão comporta relativamente aos sentimentos humanos. Do mesmo modo, as cores fantasiosas do sketch La terra vista dalla luna (A Terra vista da Lua, um episódio de As bruxas) conotam a ação num sentido marcadamente irrealista e conferem-lhe um tom de alegoria moral suspensa entre o divertimento e a meditação filosófica.
Pode por vezes dar-se o caso de ser a própria ausência da cor a adquirir valor expressivo. Em Manhattan (1978), de Woody Allen, a escolha do preto e branco corresponde a uma atitude nostálgica assumida pelo protagonista relativamente a um mundo que é por ele reinvocado em puro estilo dos anos quarenta, como é, de resto, confirmado pela banda sonora. Também em O jovem Frankenstein (The Young Frankenstein, 1974), de Mel Brooks, a ausência de cor representa uma homenagem ao cinema de terror dos anos trinta, relido com uma veia que se situa entre o irônico e o nostálgico. Tem-se, entre outros, evidentemente, o caso de Truffaut, que, pouco antes de morrer, dirigiu um filme no qual faz homenagem ao noir francês: De repente num domingo (Vivement dimanche, 1984), filmado em preto e branco e, recentemente, para realizar uma releitura do filme noir, os irmãos Coen apresentaram O homem que não estava lá, filme totalmente destituído de qualquer coloração e carregado no contraste do claro e do escuro.
A cor no cinema deve ser usada em função de seu tecido dramatúrgico e é preciso que se acabe, uma vez por todas, com a confusão sempre presente entre o uso da cor em função da beleza e o uso da cor em função da própria estrutura fílmica. Quem não gosta de filme em preto e branco, por outro lado, e, desde já, com as desculpas nas mãos, é um tremendo ignorante. O assunto cinema de cor rende muito mais, porém o espaço já se alonga e o comentarista deve estar de olho no velocímetro cromático de seu próprio olhar escritural.

02 dezembro 2008

Cinéfilo agônico

Fico impressionado com a pintura de Edward Hooper como esta que se encontra aqui neste post. Soube, como pouco, refletir a "América profunda" e, por isso, é um pintor admirado por cineastas on the road como Wim Wenders, entre tantos outros. Mas devo confessar que fui ver Queime depois de ler (Burn after reading, 2008), de Joel e Ethan Coen na sexta de tarde numa das salas do complexo Iguatemi. Mas tive que sair da sala por causa de um complexo de coisas, ruídos no processo da comunicação: pessoas que atendiam celulares para conversas ligeiras, pipocas sendo mastigadas por mandíbulas animais, conversinhas assanhadas, risotas fora de hora, e o tal do Iphone no qual um débil mental via não-sei-o-quê. Não conseguia acompanhar o filme. As pessoas riam nas horas erradas. Um bando de doentes com um comportamento nitidamente selvagem. Saí. Senti que minha tensão arterial estava alta - e a mantenho abaixo do normal com ótimas medicações. Para constatá-la, fui à enfermaria do Shopping Center Iguatemi e a enfermeira, que parecia Catherine Spaak, disse que sim, que ela, a tensão, estava alta, 16 por 11. Contei-lhe então da minha aflição, da minha agonia, dentro da sala escura do cinema. Ela me aconselhou que descansasse, que fosse dar um giro pelo shopping. Segui-lhe o conselho. Sentei-me num quiosque e tomei um cafèzinho e depois comprei um jornal para ler. E fui me sentar num banco que me trouxe à memória as desaparecidas praças soteropolitanas nas quais costumava espraiecer. A minha ida ao Iguatemi já é custosa, porque longe de meu prédio, de meu bairro. Decidi ficar para a sessão noturna e, três horas depois, voltei, novamente, à enfermaria e constatei, admirado, clássicos 12 por 8. Não havia a menor dúvida: a pressão subiu por causa da selvageria dos espectadores, dos vândalos que freqüentam os complexos de salas. Calmo, retornei à bilheteria e tirei outro ingresso. A sessão noturna estava mais serena e consegui ver o filme de Joel e Ethan Coen. Fiz um esforço, esta a verdade, porque se procurasse um débil mental seria muito fácil encontrá-lo. Mas, felizmente, a sessão estava meio vazia. Pude ver o filme sem maiores contrariedades.

01 dezembro 2008

Da ação e da reflexão

Carlos Heitor Cony, em artigo recente na Folha de S.Paulo, escreveu sobre a literatura de ação e a literatura de reflexão, e citou Glauber Rocha, que disse certa ocasião que a obra de José de Alencar é um rio caudaloso enquanto a de Machado de Assis uma torneira que pinga. Queria o realizador de Deus e o diabo na terra do sol dizer que nos livros de Alencar a ação prepondera em detrimento da reflexão enquanto nos de Machado é esta que determina a sua fruição. O mesmo poderia ser aplicado ao cinema.
O que se convencionou chamar erroneamente de cinema de arte não passa, na verdade, de uma falácia. O cinema de arte não existe e, inclusive, a expressão foi dada pelos exibidores (que são comerciantes) para designar, na década de 50, os filmes de tomadas demoradas, sem ação, quando da explosão no mercado das obras de Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, Robert Bresson, Roberto Rossellini, entre tantos outros. Os exibidores é que denominaram estes de filmes de arte porque filmes que não tinham ainda muito público e o mercado era restrito. Queriam eles dizer, na verdade, se tivessem mais noção da arte do filme, que os filmes de arte se caracterizavam pela reflexão em detrimento da ação.
O fato é que não existe, a rigor, cinema de arte. O filme pode ser excelente seja ele de ação ou de reflexão. Sobre produzir um monte de lixo, a indústria cultural de Hollywood também realiza grandes filmes, como, por exemplo, e filmes do ano em curso, Sangue negro, de Paul Thomas Anderson, Onde os fracos não têm vez, dos Irmãos Coen. E os primorosos filmes de Clint Eastwood, Martin Scorsese, Sidney Lumet, entre outros tantos, não são oriundos da indústria? Se vingar a expressão cinema de arte como a significação do verdadeiro e bom cinema, filmes que são obras-primas como Rastros de ódio (The seachers), de John Ford, por serem de ação, estariam fora dela. O que seria um absurdo e uma patologia mental.
O que determina o valor de uma obra cinematográfica é a maneira pela qual o realizador articula os elementos da sua linguagem. Não importa se a articula em função da ação ou da reflexão. O que importa, na verdade, é o talento, o engenho e a arte. Também na literatura o que determina o valor literário de um livro é a maneira pela qual o escritor articula a sintaxe da língua. A ação pela ação (e também a reflexão pela reflexão), se não estiver apoiada numa escrita bem articulada, nada vale.
A confusão, porém, ainda é muito grande. A maioria dos pseudo-cinéfilos que toma conta das salas alternativas da cidade somente considera filmes válidos aqueles voltados para a reflexão. Mas se a reflexão não tiver aporte numa expressão estilística elevada não tem valor e, muitas vezes, é veículo para a aporrinhação do espectador. Neste caso, muito mais vale um filme de ação bem articulado do que um de reflexão de pouca polivalência no estilo.
Um belo dia, deparei-me com um impertinente pseudo-cinéfilo, desses que gostam mais de ficar na sala de espera para ser visto do que no interior da sala exibidora, e ele ficou admirado quando manifestei minha admiração pelos filmes de Clint Eastwood. "Mas não é aquele cowboy italiano que depois virou o perseguidor implacável?"
Existem, por outro lado, cineastas que a priori pensam fazer cinema de arte e, na verdade, seus filmes são estímulos fortíssimos à sonolência. O verdadeiro cineasta faz seu filme de acordo com a sua necessidade de expressão. Se vai conseguir um bom mercado exibidor ou ficar restrito às salas alternativas, isto, outra história.
Howard Hawks, brilhante realizador americano, fez um filme que mistura ação e reflexão numa solução de gênio em Onde começa o inferno (Rio Bravo, 1959), com John Wayne, Dean Martin, Angie Dickison. Western clássico, a ação de Rio Bravo, tirante poucos momentos de ação, transcorre quase toda dentro de uma pequena sala da delegacia ou no interior de um hotel das circunvizinhanças. A reflexão, a análise do comportamento dos personagens, e os diálogos são mais importantes do que a ação. Em outro filme desse genial diretor, Hatari!, a sua maior parte está concentrada na espera da caça e não nesta, quando se tem a ação. Hatari!, filmado in loco, na África, é sobre um grupo de caçadores de nacionalidades diferentes que está à procura de animais selvagens para os levar para os zoológicos de seus países. Mas Hawks concentra todo o filme nos momentos fracos, nos momentos de pausa, nos momentos em que os personagens estão à espera da caçada. Uma característica de Hawks, um realizador que se dividiu entre os westerns e as comédias com admirável talento (inexistente no cinema contemporâneo).
O cinema de arte, portanto, é uma falácia e uma grande mentira.
Publicado originariamente no jornal soteropolitano Tribuna da Bahia em 27 de novembro do ano em curso. A foto é de Natalie Wood no clímax de The seachers, quando John Wayne a encontra, mas aqui ela pede clemência a Jeffrey Hunter. Clique para ver a imagem mais ampliada.

30 novembro 2008

Cinema Baiano (7): "Barravento" por Ely Azeredo

Grande crítico brasileiro, que pontificou por muitos anos no Jornal do Brasil, Ely Azeredo acaba de completar 50 anos de colunismo cinematográfico. No mesmo jornal, escrevia José Carlos Avellar e era interessante comparar as duas opiniões sempre divergentes a respeito da arte do filme. Ely era um autêntico antípoda de Avellar. O fato é que tinha um estilo muito apurado, escrevia muito bem (poucos os críticos no Brasil que têm uma escrita tão perfeita). Bem, mas no capítulo de hoje sobre o cinema baiano, resolvi transcrever um artigo de Ely Azeredo sobre Barravento, que foi publicado originariamente na Revista do Cinema. Ele chama Oscar Santana de Osmar. E vamos logo abrindo as devidas aspas:

"Os artífices do Cinema Novo gozaram de uma dádiva divina: a liberdade de criação. Entre a tiragem da primeira cópia e o lançamento, a Censura podia fazer estragos, mas o mesmo fenômeno atormentou cineastas em todos os centros produtores. Já no longa-metragem inaugural do movimento, "Barravento", Glauber Rocha fez o que bem entendeu, apesar do desafio de recriar uma obra concebida e iniciada por outro – Luiz Paulino dos Santos, defenestrado no meio de uma novela de conflitos que teve diversas versões.
A personalidade e a febre criadora de Glauber ainda são esboços na tessitura de "Barravento". Mas é possível entrever no filme a trajetória ao mesmo tempo agressiva e terna, engajada e anárquica, anti-religiosa e mística do visionário de Vitória da Conquista. Ele viveu na contradição – e fez dela uma de suas marcas pessoais.

Para a Bahia, tão ciosa de sua cultura, a questão do cinema chegava a ser embaraçosa. Sempre se entregando como uma starlet aos cinematografistas estrangeiros, não produziu um longa até a segunda metade da década de 1950. Os curtas eram geralmente de encomenda e os cinejornais não podiam ir longe sem verbas de autoridades ou comerciantes.
O pioneiro mais expressivo da Bahia, o documentarista Alexandre Robatto Filho, atuante desde os anos 30, deu o melhor de si em filmes sobre a comunidade de pescadores da Praia de Buraquinho, perto de Itapoã. Os curtas, vistos no Cine Guarani (depois Cine Glauber Rocha), certamente levaram alguma inspiração aos dois "Barraventos" – o de Luiz Paulino (abortado) e o de Glauber – que vamos chamar de "Barravento 1" e "Barravento 2". Não era coisa de louco imaginar uma produção regular de longas com sede em Salvador. Já no período silencioso, houve ciclos cinematográficos notáveis na Amazônia, no Recife, na mineira Cataguases, no interior de São Paulo, no Rio Grande do Sul; fazia-se cinema de ficção em uma dezena de cidades fora do eixo Rio-São Paulo. Glauber chiava. Aparecendo como crítico de cinema aos 13 anos de idade, depois fazendo um pouco de tudo no jornalismo, cobrador de uma renascença cultural que seu estado estaria devendo ao país, intrometia-se nas rodas literárias, no teatro, nas discussões políticas. Sem procuração passada, era um vigilante-vinte-quatro-horas dos brios baianos.

"Atenção, Bahia! Cuidado com os aventureiros que vêm fazer cinema!" Assim clamou no rádio ao saber que o então desconhecido Roberto Pires, sem um mísero press-release, estava "fazendo um filme baiano" ("Redenção"). A fúria só durou até o contato entre os dois, quando Glauber se prontificou a batalhar pela divulgação da obra.

Pires (1934-2001), nascido ali mesmo em Salvador, trabalhava de dia numa ótica e filmava nas horas vagas. Geralmente perdia dinheiro realizando curtas e ganhava com matérias patrocinadas para cinejornais. "Redenção", policial com toques de melodrama, era uma tentativa de profissionalismo. Para filmá-lo, Pires acoplou à câmera um invento seu, o Igluscope, processo anamórfico da família do Cinemascope. A produção, batalhada de 1955 a 1959, naufragou nas bilheterias. Mas o quixotismo de Roberto Pires deflagrou o ciclo baiano de longa-metragem, vigoroso entre 1960 e 1963.

Para produzir "Barravento", um grupo híbrido se reuniu sob o selo da Iglu Filmes: Glauber, Roberto Pires, o fotógrafo Osmar Santana, os fazendeiros Braga Neto e Élio Lima, e o cinéfilo Rex Schindler, fundador do Teatro do Estudante e empresário do ramo imobiliário. Certamente com o dedo de Schindler, fizeram circular um folheto sobre a abordagem das desigualdades sociais no filme em projeto, afirmando que "a nossa obrigação é lugar para que tudo seja tão firme e tão altaneiro como o Elevador Lacerda"

Rex foi o principal viabilizador da produção. Para virar sócio, Glauber deu sua primeira demonstração de habilidade política, obtendo do governador Juracy Magalhães fatias de uma verba destinada a obras de assistência social. A informação é do amigo e biógrafo do cineasta, João Carlos Teixeira Gomes. "Esse dinheiro provinha de uma contribuição mensal que os bicheiros da Bahia eram obrigados a fazer com parte dos lucros do jogo do bicho, numa decisão que custou severas críticas ao governador, mas que ele, irredutível, manteve".
Em setembro de 1960, um Glauber eufórico (em carta a Paulo César Saraceni, cinemanovista então festejado pelo curta "Arraial do Cabo", também de Mário Carneiro) proclamava "tudo bem em matéria de "Barravento", que já está sendo rodado com Paulino na direção. Paulino vai bem e animado (...)". No mês seguinte não era mais segredo o surto de conflitos internos que culminou com a demissão da atriz principal, Sônia Pereira dos Santos e, três dias depois, com a saída de seu apaixonado diretor. Glauber, que fora o cupido no romance de Luiz Paulino e Sônia, gerenciou o inexorável corte da atriz, atribuído aos produtores.

Os depoimentos colhidos por José Gatti para sua tese de mestrado "Barravento: a Estréia de Glauber", são indispensáveis para a interpretação da história. Antonio Pitanga, convidado por Luiz Paulino dos Santos para viver o malandro Firmino, o protagonista, aponta dois estopins na explosão: um conflito de idéias (o produtor Schindler não se conformava com a linha mística do roteiro original de Paulino); e um conflito pessoal/profissional (diretor e atriz versus exigências da produção e do mentor intelectual, Glauber Rocha). Embora torcedor de Glauber, Pitanga destaca a importância do roteiro original, que mostra "a cultura afro através do candomblé, da religião".

No enfoque de Luiz Paulino, o pivô do drama é a jovem branca que, por promessa feita a Iemanjá pelo pai pescador, não poderia casar. A moça não resiste a uma paixão. E acontece o barravento ("profunda mudança no mar e na terra"), com seu cortejo de tragédias. Paulino defende o "sentido revolucionário" de seu título

"Barravento", mas diz que "não queria jamais um trabalho panfletário". Ao contrário de Rex Schindler, que o pressionava para obscurecer o enfoque místico e exibir a religião como fator de "alienação" e "passividade". Ao assumir o roteiro (que alterou) e a direção, Glauber fez declaradamente "um filme contra os candomblés, contra os mitos tradicionais, contra o homem que busca na religião o apoio e a esperança".

Mais de 40 anos depois, indagações sobre a troca de comando podem parecer irrelevantes, mas têm um papel irrecusável na compreensão do fenômeno "Barravento 2"

Quando o filme "parou", Glauber teria sugerido para a direção, entre outros, três Robertos: Santos, Farias e Pires. Roberto Pires recusou de imediato.

Associado ao projeto, Pires dera as primeiras lições de câmera a Glauber, quando lhe emprestara uma Arriflex para o curta "O Pátio". "Inclusive isso é bom que eu diga: fui eu que obriguei Glauber a dirigir o filme. Eu o responsabilizei, porque estava me sentindo inseguro. Na época, o cinejornal mal dava para manter a firma funcionando".

Nos anos 70, Glauber usou a expressão "golpe de Estado" ao falar da demissão de Luiz Paulino dos Santos, dramatizando sua atuação no que seria (digamos) o "Estado da Cultura na Bahia"... "Eu coloquei as razões do Estado acima das razões do coração. Paulino não quis assumir esse papel político e eu assumi a posição de eliminá-lo do filme. Foi uma espécie de golpe de Estado, porque se aquela produção fracassasse por inércia ou por excesso de histeria intelectual, o projeto de cinema na Bahia não ia andar. Assumi a responsabilidade de fazer o filme e me vi diante de roteiro absurdo com o qual não concordava. Refiz o roteiro e tive que enfrentar a equipe que me olhava como um usurpador do filme (...)".

Na versão glauberiana, o jovem negro Aruã, pescador "de corpo fechado", deve permanecer virgem a fim de garantir a continuidade da proteção das divindades à comunidade explorada pelo proprietário da rede. Quando este, insatisfeito, confisca a rede, Aruã enfrenta o mar violento em jangada, propiciando pesca frutífera e fé aos adoradores de Iemanjá. Firmino (Antonio Pitanga), nascido ali, mas formado na marginalidade de Salvador, volta a Buraquinho disposto a livrar sua gente das malhas do sacrifício cotidiano. Convence sua amante, Cota (Luiza Maranhão), a seduzir o "predestinado". Assim "humanizado", Aruã deixa de ser um Ulisses no ciclo dos barraventos. Cota morre. Firmino sai de cena. "Firmino é ruim, mas ele está certo" – diz Aruã. E parte para a capital, prometendo voltar para lutar pela transformação da gente negra, "ainda escrava, sem princesas isabéis".

Segundo Glauber, seu "Barravento" partia, "embora primariamente (sic) de que a religião é o ópio do povo", conforme carta do cineasta ao crítico Paulo Emílio Salles Gomes, em 1960. Nem aquele que Paulo Emílio chamou de Profeta Alado podia supor que o cinemanovismo chegaria a realizar obras como "O Amuleto de Ogum" (Nelson Pereira dos Santos) e "Anchieta, José do Brasil" (Paulo César Saraceni).

O discurso político de "Barravento 2" foi esmaecido pela impregnação mística das imagens e da própria trama. Um exemplo: Cota morre (de forma nunca esclarecida na tela) depois de induzida a profanar (seduzir) o "predestinado" Aruã. Outro: o fracasso místico de Aruã, no final, é inevitavelmente relacionado com o rompimento de seu voto de castidade.

Materialista verbalmente, Glauber evidenciou fervor místico em sua obra-prima, "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964) e não demonstrou estar livre dele no longa do adeus, o caótico "A Idade da Terra" (1980). Também cinemanovista, o cineasta Gustavo Dahl, "lendo" as imagens de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", escreveu (em carta a Glauber): "No filme, você não está suficientemente afastado nem suficientemente perto da religião. "Em "Barravento"" você acreditava, tendo vontade de não acreditar. Em "Deus-Diabo", porque você acredita menos, tua vontade de não acreditar, de te afastar é menor".

Alguns pontos recorrentes do primeiro Cinema Novo estão bem nítidos no "Barravento" definitivo: a exaltação do transgressor/marginal como fator de mudança social; o olho crítico sobre as relações de trabalho/produção; a busca de intérpretes fora dos quadros estabelecidos (há atores iniciantes no elenco-base, constituído por pescadores de Buraquinho); a hipervalorização dos cenários reais (apenas o terreiro de candomblé foi especialmente construído para o filme); a precariedade de recursos técnicos assumida, sem evasivas, pelo diretor; além do discurso anti-religioso.

"O filme foi praticamente reconstruído na montagem", disse Glauber em 1965, reconhecendo a contribuição de Nelson Pereira dos Santos, que se ofereceu para editá-lo. Nelson deu ao filme um andamento que, certamente, na época, não estava entre os dons de Glauber

Apesar de insucesso de público, "Barravento" foi importante ponta-de-lança para a política externa do Cinema Novo. O prêmio Opera Prima, conquistado no Festival de Karlovy-Vary, na então Tchecoslováquia – sob as bênçãos decisivas do escritor Alberto Moravia – seria um hors-d"oeuvres para o apetite de estima internacional do cinemanovismo.

Nota — No estudo "A Ideologia de Barravento", Maria do Socorro Silva Carvalho considera, em sintonia com a pesquisa-tese de Gatti, que o filme "propõe uma visão redutora do Candomblé" ao considerá-lo instrumento de alienação, preferindo ignorar seu papel na identidade cultural dos afro-brasileiros."