Seguidores

14 março 2014

"Matar ou morrer": western emblemático

Muito mais que um western, Matar ou morrer, segundo Claude Beylie, ensaísta francês, pretende ser uma parábola sobre a coragem individual diante da covardia coletiva. Faroeste com rosto humano, pode ser considerado, também, uma paráfrase do horror macartista na sociedade americana da época, quando o senador Joseph McCarthy tenta caçar todos os " comunistas" de Hollywood. Fred Zinnemann, diretor austríaco instalado nos Estados Unidos, aproveitando um roteiro de Carl Foreman, faz do western um veículo para a sua visão da sociedade americana.

O xerife de uma localidade do oeste, Will Kane (Gary Cooper no auge de sua carreira), procura ajuda entre a população para combater uns marginais que se preparam para atacá-la. Todos, no entanto, lhe negam o apoio e ainda aconselham a se retirar da luta a fim de evitar um derramamento de sangue. Contra a opinião de sua esposa (Grace Kelly), Kane não desiste e, só contra todos, espera, angustiado, a chegada dos assassinos.

Zinnemann (A um Passo da Eternidade' Julia...) estrutura a sua narrativa com absoluto respeito à unidade de tempo - que serve para potencializar o suspense à medida que a hora fatal vai chegando. Matar ou Morrer é um western sólido, sóbrio e bem construído, que, contrariando os cânones tradicionais do gênero, não se apóia na ação física - uma constante do western tradicional. A dimensão psicológica dos personagens adquire, aqui, capital importância: a descrição minuciosa da conduta de cada um, a crescente angústia do xerife situado entre a obrigação moral e o instinto de conservação. Foreman e Zinnemann pretendem refletir uma época na qual muitos setores do país ficam paralisados pelo medo ao contrário de uns poucos que assumem sozinhos suas graves responsabilidades morais.

Desde No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford, western paradigma e emblemático, o gênero, sempre baseado mais na ação física, evolui para sobreviver aos tempos , rompendo, com a ajuda de cineastas como William A. Wellman, Samuel Fuller, Delmer Daves (Flechas de Fogo), Howard Hawks, John Sturges, Nicholas Ray, John Ford e Anthony Mann, os estereótipos de outrora. O western humaniza-se, torna-se poético, adulto, adquire status como veículo para a análise de comportamentos e da condição humana (Rastros de Ódio, de John Ford, Winchester 73, de Anthony Mann, Johnny Guitar, de Nicholas Ray, Conspiração do Silêncio, de John Sturges, Onde Começa o Inferno/Rio Bravo, de Howard Hawks...).

Matar ou Morrer representa um divisor de águas no western, gênero (entende-se por gênero um conjunto de filmes que possuem o mesmo conteúdo narrativo e seguem o mesmo esquema para explicitá-lo) que se intelectualiza a partir deste filme de Zinnemann. Há cada vez mais psicologia e drama de consciência nos personagens, como neste 'High Noon', e em 'Um Homem Solitário', de Ray Milland, 1954, não faltando mesmo a nota freudiana, como no insuperável 'Rastros de Ódio', de Ford, e 'Gatilho Relâmpago', de Robert Rouse, 1957. Mas a alegoria do bem e do mal ressurge com força de tragédia grega em duas obras-primas: 'Madrugada da Traição', de Edgar Ulmer, 1956, e ‘Crimes vingados’, de Charles Haas, 1957 E a legenda do herói romântico que chega ao povoado, distribui a justiça e vai-se embora como um desconhecido, é retomada em 'Os Brutos Também Amam' ('Shane', 1953), de Georges Stevens.

Em Matar ou Morrer, Zinnemann respeita a unidade de tempo, isto quer dizer: o tempo físico é igual ao tempo dramático. Com uma duração de 89 minutos, tempo tomado pela projeção do filme, High Noon tem sua ação dramática compreendida neste mesmo tempo, ou seja: a compreensão do tempo levado pelos acontecimentos narrados. Assim, Gary Cooper espera os malfeitores durante um tempo igual ao da projeção do filme. Para sinalizar o avanço temporal, é mostrado sempre um plano de detalhe de algum relógio onde se encontre o personagem. Procedimento igual, entre muitos outros, fazem Robert Wise em Punhos de Campeão (The Set Up) e Alfred Hitchcock em Festim Diabólico/Rope, 1948).


High Noon tem uma iluminação bastante funcional de Floyd Crosby, inserida nas solicitações dramáticas, assim como a partitura de Dimitri Tiomkin, cujo tema principal se torna um clássico da música para cinema.

13 março 2014

Cinema: arte ou divertimento?

Falconetti em La passion de Jeanne D'Arc (1928), de Carl Theodor Dreyer

No seu excelente Ponto de Encontro, coluna que saia todo domingo no Mais! (que acabou) da Folha de S.Paulo, o Professor Jorge Coli, que sempre escrevia coisas pontuais e interessantes, tocou num assunto fundamental, qual seja o do "cinema de arte". Não resisto à transcrição. Saiu no dia 21 de setembro de 2008. O tempo decorrido não desatualiza o que está dito.

"Inácio Araujo, com seu sentido certeiro das formulações, escreveu outro dia em uma de suas críticas na Ilustrada: "Mas, ainda assim, não mais que um "filme de arte'".

É uma frase que abala convenções. Se fosse "não mais que um blockbuster" ou "não mais que um filme de shopping", tudo pareceria coerente. Do jeito que ficou, tem o aspecto de uma contradição: a noção "filme de arte", em princípio, elevada, foi percebida como pejorativa.

É que o chamado filme de arte deixou de ser o campo da invenção e da ousadia, como era percebido até algumas décadas atrás. Existe agora uma concepção preestabelecida que enquadra "filme de arte", com algumas receitas mais ou menos explícitas. Passou a existir o academismo do "filme de arte". Ele cumpre parâmetros e se submete a convenções implícitas, que restringem o espírito criador em benefício de um trabalhinho bem feito.

A razão principal não é cinematográfica.
Ela formou-se a partir de um pacto entre público e diretores culturalmente sofisticados, pacto que se estabelece por meio de sinais exteriores de reconhecimento, espécie de feromônios sem cheiro. Tudo isso substitui a criação cinematográfica mais autêntica.

Sim, perfeito, digo eu, passou a existir o academismo do "filme de arte". Os pseudo-cinéfilos que se deliciam com tudo que passa em sala alternativa da cidade, a pensarem, eles, que se trata de "filmes de arte", estão a trocar bolas, a misturar alhos com bugalhos. É interessante observar o comportamento dos pseudo-cinéfilos quando nas citadas salas alternativas. O Professor Coli foi preciso e tocou no ponto certo, quando diz da existência de um pacto entre público e certos diretores sofisticados, da "moda". Mas, por outro lado, pode advir do chamado cinemão (da indústria cultural hollywoodiana) filmes de grande expressão cinematográfica (Sangue negro, de Paul Thomas Anderson, A árvore da vida, de Terrence Mallick, entre tantos). Já vi gente a torcer o nariz para os filmes de Clint Eastwood, o que é revelador de uma grande, profunda, imensa, ignorância. O grande cinema pode existir em qualquer lugar, quer seja pela obra autoral, quer seja pela obra oriunda de um esquema industrial. O resto é besteira. Cinema de arte não existe!

Os filmes resultam cheios de bons sentimentos, os temas são definidos de antemão como profundos; têm boa iluminação, boa filmagem, boa montagem. Os espectadores se encantam com algumas metáforas fáceis ou alusões que se querem densas. No fim, sai do cinema levemente entediado, mas com a satisfação de um dever cultural cumprido. Tudo isso é bastante simbólico e meio cerimonial. Cinema é uma arte, e a noção "cinema de arte" não é um título de nobreza, mas um pleonasmo. Ninguém consegue dizer de onde vai brotar a criação artística.

Mas voltando às palavras do Professor Jorge Coli: “Clint Eastwood, que nasceu de um cruzamento entre filmes baratos de Hollywood e o western spaghetti, tornou-se um artista maior na história do cinema. As sequências dos "Alien", dos "Batman", para além da discussão sobre cada filme, formam magníficas sagas. É bobagem multiplicar os exemplos: um filme não é bom apenas porque é "de arte" ou ruim porque blockbuster.

A sensação de tédio, nada boa em princípio, pode, curiosamente, ter um papel valorizador no campo da arte. É um fenômeno perverso. Espera-se das obras que elas ofereçam prazeres superiores, mas não muito bem definidos, que elas tragam revelações preciosas, que agucem a sensibilidade. Em nome deles, suporta-se estoicamente o tédio, imaginando-se que, de algum modo, a recompensa virá mais tarde. Muita gente faz uma distinção nítida entre arte e divertimento, como se divertir com arte fosse quase um pecado.

Existe, por sinal, uma história filosófica desse pecado, que Hans Robert Jauss retraçou em sua "Pequena Apologia da Experiência Estética". A cultura norte-americana, com sua forte pregnância classificatória, insiste muito na separação entre "art" e "entertainment". Simplificando: se é arte, é chato, se é gostoso, não é arte. Esse jogo preconceituoso é péssimo: ele faz engolir gato por lebre e recusar lebre por gato. Há certas obras que são apaixonantes, mas consideradas difíceis. É que o espectador não encontrou as boas chaves para elas. Procurá-las é um desafio: dificuldade não quer dizer tédio, mas estímulo. As artes foram feitas para oferecer prazeres dos tipos e gêneros diversos. “Se eu me aborreço, é que alguma coisa está errada”.


10 março 2014

Nicholas Ray: o lirismo do homem ferido

Nicholas Ray - cujo verdadeiro nome era Raymond Nicholas Kienzie - nasceu em Wisconsin em 1911. Se vivo estivesse, estaria com 102 anos. Mas morreu em 1979, aos 67, vitimado pelo excesso de álcool e cigarro. Fumava sem parar: um atrás do outro. Resultado: um virulento câncer no pulmão matou-o. Wim Wenders, seu amigo, registrou, em Nick's movie, os últimos suspiros de Nicholas Ray. Sua esposa, que esteve presente na abertura da mostra a ele dedicada, afirmou, em entrevista, que Wenders foi cruel com Ray ao registrar os derradeiros momentos do marido.
Formado pela Universidade de Chicago, em Arquitetura, chegou a trabalhar com o famoso Frank Lloyd Wright, um dos mais célebres arquitetos do século passado. Foi na casa dele, uma mansão suntuosa, que Alfred Hitchcock, em Intriga internacional, filmou a sequência na qual James Mason e seus capangas se reúnem nos momentos finais do filme e Cary Grant consegue se infiltrar. O aprendizado no trabalho com Wright deu a Ray o gosto pela plástica da imagem, pelo sentido da composição do enquadramento, pela disposição dos objetos e pessoas em cena. Um fotograma de um quadro fílmico em Ray, se porventura em cinemascope, não pode ser destruído pela exibição televisiva no horrendo full screen (tela cheia).

Raymond Nicholas Kienzie iniciou suas atividades artísticas quando já estourada a Segunda Guerra Mundial, fazendo programas de rádio para a CBS. Interessado pelo teatro, montou várias peças, nesse período, em colaboração com John Houseman (que fazia parte do Mercury Theatre de Orson Welles, produtor eficiente e soberbo ator). Assistente de direção de Elia Kazan em Laços humanos (A tree growns in Brooklin, 1945), aprendeu com o grande diretor de atores a maneira de lhes fazer emergir uma personalidade forte em cena. Em seguida, dirigiu para a televisão, em 1946, Sorry, wrong number - adaptação de uma obra teatral que inspirou logo o filme de Anatole Litvak Uma vida por um fio (1948), com Barbara Stanwick e Burt Lancaster. Dore Schary, o novo poderoso chefe de produção da RKO, insuflado por John Houseman, deu-lhe a direção de Amarga esperança (They live by night, 1948), que focaliza o drama de jovens sem esperança com um clima lírico que fizera habitual em sua obra. É então que Nicholas Ray se associa a Humphrey Bogart , que, convertido em produtor, é dirigido por Ray em uma de suas melhores criações: o advogado de O crime não compensa (Knock on any door, 1949), melodrama de denúncia social transcendido por uma penetrante descrição de ambientes e comportamentos. 

No silêncio da noite (In a lonely place, 1950), novamente uma associação com Humphrey Bogart, dá a Raymond Nicholas Kienzie a fama de um diretor acima da média no circuito hollywoodiano ao introduzir no relato uma reflexão sobre o próprio cinema. Bogart faz um roteirista amargurado com as engrenagens da indústria que, após alguns filmes de sucesso, entra em crise criativa. A estrutura narrativa toma a forma de um autêntico film noir, mas a concepção do próprio roteiro e a montagem permitem uma transgressão ao gênero. Contracenando com Bogart, Gloria Grahame, que viria a ser esposa de Ray.

Outra pérola do film noirCinzas que queimam (On Dangerous Ground, 1952) mostra o calvário de um detetive particular (Robert Ryan), que, desiludido com a escória reinante na cidade, é designado para investigar a morte de uma mulher no interior. E se apaixona, no intricado do enredo, por uma mulher cega (interpretada por Ida Lupino, que também foi diretora de filmes). Ward Bond (ator fordiano por excelência também está presente), assim como Ed Begley. Filme fascinante que não se esquece de maneira assim tão fácil.

Johnny Guitar (1953) é um western sui generis e, para muitos, o melhor filme de Nicholas Ray. O mais insólito e, talvez, o mais característico dos filmes deste diretor, constitui, para certa parte dos exegetas de Ray, uma continuação ideal deNo silêncio da noite: a história de um homem violento que deseja deixar de sê-lo e de uma mulher moralmente mais forte do que ele. Este contexto, dentro de uma fábula de evidente intenção antimaccarthista, permitiu ao autor desenvolver alguns de seus temas prediletos: a obsessão da violência, a inquietude da adolescência, a onipresença da morte, sem esquecer precisos matizes autobiográficos. Através de uma construção dramática inusitada - um plano-sequência inicial de 40 minutos de duração em um cenário único, a sala de jogos, expõe e enfrenta os personagens principais, Ray buscou um certo clima de exasperação lírica em todos os recursos de sua mise-en-scène, na estilização dos gestos e movimentos dos atores, no preciosismo dos diálogos, no insólito da cor (cujos defeitos técnicos foram utilizados habilmente com fins expressivos) e do cenário. Servido por uma admirável corte de intérpretes (entre os quais Sterling Hayden e Joan Crawford). E, finalmente, popularizado por um tema musical de grande êxito, Johnny Guittar foi um western feérico por excelência, que teve o mérito especial de inventar seu próprio gênero.

O lirismo do homem ferido se espraia em todos os filmes de Nicholas Ray, às vezes com mais intensidade, outras vezes com menos. Em Horizonte de glórias (Flying leathernecks, 1951), o cineasta abandona o cinema noir e o western para localizar a sua ação num campo de batalha. É a guerra o espaço onde os conflitos explodem. É bem de ver que Ray, ainda que trabalhando no cinema de gêneros, transcendendo-o para, nele, apor a sua marca, o seu pensamento, a sua visão de mundo, a sua filosofia de vida. O palco é o conflito do Pacífico Sul durante a Segunda Guerra Mundial. John Wayne é um major que assume o comando de um esquadrão de caças e encontra enormes resistências de seus comandados, entre eles Robert Ryan.

Antes de Johnny Guitar, Nicholas Ray incursionou num western em 1952 que não tem a notoriedade deste, mas é admirável: Paixão de bravo (The lusty men). Robert Mitchum (um ator de rara presença e personalidade cênica) fica machucado num rodeio e resolve voltar para a sua cidade natal. Arranja trabalho num rancho e se torna amigo de seu patrão, mas não estava no programa que se apaixonasse por Susan Hayward. Estabelece-se, então, o conflito e Ray injeta, nele, o seu constante lirismo do homem ferido. Também no elenco um ator coadjuvante, mas de extraordinário desenvolvimento interpretativo: Arthur Kennedy.

A filmografia de Nicholas Ray ainda revela muitas surpresas.  Em 1955, realiza o antológico Juventude transviada (Rebel without a cause), o primeiro longa de James Dean, que viria, depois, fazer ainda dois filmes (Vidas amargas, de Elia Kazan, e Assim caminha a humanidade, de George Stevens, antes de sua morte prematura num acidente automobilístico.

Jean-Luc Godard, num dos seus escritos no Cahiers du Cinema chegou a afirmar numa crítica a um filme desse cineasta: "O cinema é Nicholas Ray!" E o próprio disse que "o cinema é a melodia do olhar." Nicholas Ray é um dos mais importantes realizadores do cinema americano de todos os tempos. A revisão de seus filmes surge, portanto, como programa obrigatório para todos os cinéfilos que se prezam. 

Em 1955, Nicholas Ray realiza um de seus filmes mais admirados e que causou sensação entre os jovens dos anos 50, principalmente pelo aparecimento do ator emblemático James Dean, que, com sua morte prematura, viria a se tornar um mito ainda hoje celebrado. O filme, Juventude transviada (Rebel without a cause), reflete a angústia de toda uma geração de jovens, os rebeldes sem causa do título original, e seu argumento gira em torno de Jim Stark (Dean), um jovem que é obrigado a se transferir para outra cidade por ter sido expulso da universidade onde estudava. Atraído por uma jovem vizinha, Judy (Natalie Wood), entra na universidade local, mas não tarda em demonstrar, com os colegas mais rebeldes, seu comportamento inconformista. Provocado, Jim, apesar dos conselhos do pai, homem bonachão e dominado pela esposa, dispõe-se a um duelo de honra e, com seu rival, dois carros em alta velocidade precisam frear diante de um abismo. Durante o duelo, seu antagonista, Buzz (Corey Allen) acaba por cair no abismo e, em consequência, vindo a morrer. Os pais de Jim tentam impedi-lo que se apresente à polícia e ele se refugia com Judy em uma vila abandonada descoberta pelo jovem Plato (Sal Mineo). Há, na sequência em que os jovens estão na vila, um triângulo amoroso sui generis travado apenas pela troca de olhares que se configura numa expressão maior do cinema de Ray. 

Nicholas Ray concebe a ideia desse filme através da leitura de uma série de recortes de jornais sobre adolescentes inconformistas e, também, influenciado pelo mal-estar social muito em voga naquela época. Juventude transviada é considerado o mais completo e explícito sobre os problemas da adolescência entre as obras dedicadas ao assunto. Sua tonalidade peculiar se deve, principalmente, à excepcional identificação entre Jim Stark e seu intérprete, James Dean, arisco, de uma sensibilidade à flor da pele, e desamparado, "ambos desgarrados  pelo conflito entre o desejo de se entregar e o temor da entrega", como declara o próprio Nicholas Ray.

Jim Stark é o protótipo do adolescente solitário e difícil cujo drama nasce de uma inocência fundamental, levada até às últimas consequências, e que resulta na impossibilidade de aceitar os compromissos impostos por certa civilização, por uma determinada forma de viver. O êxito alcançado por Vidas amargas (East of Eden), de Elia Kazan, baseado em parte do romance de John Steinbeck, com a rica e complexa caracterização desse personagem, converte James Dean em símbolo de toda uma geração, originando um culto quase idolátrico que ainda perdura. Construído segundo uma linha dramática de uma sensibilidade de tragédia clássica e apoiado numa apresentação simples e direta de seus caracteres, Rebel without a cause se desenrola em um clima febril, delirante, específico dos filmes de Ray dessa etapa, que se resolve em várias sequências culminantes, momentos fortíssimos dentro da sua estrutura narrativa: a lição do planetário, que dá uma das chaves para a compreensão da obra; a chicken run, absurda prova de valor que se consuma como uma cerimônia pagã; a penosa e violentíssima explicação de Jim a seus pais; a admirável cena de amor na vila e o desolador desenlace. O emprego pela primeira vez do Cinemascope permite a Ray estimulantes experiências de composição, tendentes a dar uma ênfase lírica a certos gestos dos intérpretes. A sinceridade e honradez  extremas de seu enfoque fazem com queJuventude transviada não haja perdido, com o tempo, a sua atualidade, ainda que Ray aborde um delicado problema social em termos mais poéticos do que analíticos.

Alguns filmes que não tive a oportunidade de ver estão fora dessa trajetória de Ray (por exemplo: Fora das grades, entre outros). E também não há um propósito de esgotar a ficha filmográfica de Nicholas Ray. Mas, depois de Rebel without cause, o filme que mais se destaca é Delírio de loucura (Bigger than life, 1956), com James Mason, Barbara Rush, Walter Matthau, Christopher Olsen. Mason (sempre um ator impecável, fleumático) faz um professor que descobre sofrer de uma rara doença e aceita se tratar com uma droga ainda em experiência científica. Há uma recuperação e regressão na doença, mas o problema maior é que ele se vicia nela e seu comportamento familiar se torna insuportável com reações imprevisíveis. Ray também aqui adere ao Cinemascope, tela larga, cujo primeiro filme nesse processo anamórfico data de três anos antes: O manto sagrado (The rope, 1953). Bigger than life é uma obra de grande impacto no qual Ray desenvolve o violento enfrentamento dos impulsos espontâneos do indivíduo e das estruturas coletivas da vida norte-americana.

O filme a seguir é Quem foi Jesse James? (The true story of Jesse James, 1957), com Robert Wagner, Jeffrey Hunter, Hope Lange, Agnes Moorehead, John Carradine. É a história de Jesse James e sua trajetória como um dos mais temidos, ao lado do irmão, bandidos do oeste. Há, no filme, uma aguda análise do processo de conversão de um personagem pacífico e não contaminado que se transforma, de repente, condicionado pelo meio social, em um herói violento. Ray propõe, com claridade meridiana, sua concepção da violência revolucionária como única forma válida de se opor à violência impune da sociedade constituída.

Nesse mesmo ano de 1957, Amargo triunfo (Bitter victory), com Richard Burton, Curd Jürgens, Ruth Roman, Christopher Lee. Oficial recebe condecoração por bravura, mas a honraria se converte em insulto, porque o capitão que a indicou tem um affair com a esposa do oficial condecorado. Jornada tétrica (Wind across the everglades, 1958), com Burl Ives, Christopher Plummer, Peter Falk, tem sua ação localizada no século XIC. Nunca vi este filme, mas as críticas são entusiásticas. 

A bela do bas-fond (Party girl, 1958), com Robert Taylor, Lee J. Cobb, Cyd Charisse (as pernas mais bonitas de toda a história do cinema), John Ireland, Corey Allen, tem o galã Taylor como um advogado manco (um homem ferido) que é ligado a um chefe mafioso, mas ao se apaixonar por uma bailarina (Charisse) tenta sair do esquema de corrupção. O que não é nada fácil.

O filme que mais aprecio de Nicholas Ray, entre muitos outros, evidentemente, éSangue sobre a neve (The savage innocents, 1960). Adaptado do romance Top of the world, de Hans Ruesch, pelo próprio autor ao lado do italiano Franco Solinas, a ação se passa no gélido Ártico e mostra a vida de um esquimó (Anthony Quinn) com sua mulher (Yoko Tani). Há alguns momentos que fazem lembrar a obra-prima de Robert Flaherty Nanuk, O esquimó (Nanook of the North, 1922), filmado, este, in loco, ainda no período da estética da arte muda. The savage innocents tem um registro documental do dia-a-dia do personagem: seu modo de habitar, sua necessidade de caçar para trazer o alimento no fim do dia. E que se constitui, na verdade, num autêntico discurso sobre o pensamento selvagem, a dialética da Natureza e a corrupção da civilização em uma das mais claras e transparentes expressões das concepções morais do autor, tanto de um ponto de vista emocional e dramático, quanto no exercício estrito da mise-en-scène cinematográfica. Ray não conseguiu, para este filme, recursos nos Estados Unidos. A produção é uma parceria entre a França, Itália e Reino Unido. Peter O'Toole tem uma ponta.

No regresso a Hollywood, sem trabalho, o produtor Samuel Bronston o convidou para dirigir um épico histórico tão ao feitio da época: O rei dos reis (King of kings, 1961), quase três horas de projeção. Apesar de a crítica, na época, ter fechado os olhos para o filme, e, hoje, revisto, tem alguns defensores entusiásticos. Trata-se da história de Jesus Cristo do nascimento até a ressurreição. Quem o interpreta é Jeffrey Hunter (o acompanhante de Etahn Edwards em Rastros de ódio/The seachers, de John Ford). Há close ups magníficos de seus olhos azuis. Novamente utilizando com sabedoria o Cinemascope, para alguns críticos que viram grandeza em King of kings, Ray amplia, aqui, os limites de seu mundo e depura as suas constantes expressivas.

Gosto muito de outra superprodução de Bronston dirigida por Ray: 55 dias em Pequim (55 days at Peking, 1963), canto de cisne de Nicholas Ray, com Charlton Heston, Ava Gardner, David Niven, Flora Robson, John Ireland, Harry Andrews, e o próprio Nicholas Ray no papel do embaixador. Estrangeiros são constrangidos e cercados durante a revolta dos Boxers, A única saída para eles é ser liderado por um valente e obstinado membro da Marinha norte-americana e pelo embaixador britânico. O filme, na época, foi malhadíssimo pela crítica.

Eis, portanto, a trajetória de um grande diretor de cinema. Nada existe hoje que se lhe possa comparar.

09 março 2014

Meus 20 filmes favoritos

Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles

Não é minha lista definitiva, porque, para isso, precisaria pesquisar. Mas uma relação de filmes que considero os melhores que já foram feitos elaborada com a ajuda da memória, e procurando evitar a repetição de diretores. De Hitchcock, por exemplo, poderia incluir mais dois ou três filmes, e, principalmente, Psicose (Psycho, 1960), mas dei preferência a Um corpo que cai (Vertigo, 1957), ainda que com certa relutância. Feita e digitada, lembrei-me de Akira Kurosawa cujo Viver (Ikiru, 1953)´, que considero seu melhor trabalho, é uma obra mais que prima. Veio-me também à memória Contos da lua vaga (Ugetsu Monogatari, 1953), de Kenji Mizoguchi, que admiro profundamente. Daí a imperfeição da lista, embora as obras citadas correspondam às minhas preferências. O problema é a limitação de 20 títulos, que, para um cinéfilo compulsivo, traz alguma aflição na hora da escolha para a inclusão. Como um montador de filmes que, tendo filmado 3 horas, vê-se obrigado a reduzí-lo para 90 minutos. Dos 20 listados, há um que poderia ficar como o vigéssimo-primeiro, mas preferi dar este mesmo número. Trata-se de O otário (The patsy, 1964), de Jerry Lewis, uma obra-prima não devidamente (ainda?) verificada pelos exegetas da arte do filme. Em alguns casos, preferi, como no de Billy Wilder, colocar um filme seu mais esquecido, a exemplo de Avanti!, embora admire muito quase toda a sua filmografia (Se meu apartamento falasse, Quanto mais quente melhor, Pacto de sangue, Crepúsculo dos deuses/Sunset Boulevard, entre outros).  Do cinema brasileiro, Deus e o diabo na terra do sol, obra que traumatizou toda uma geração de cineasta, é um filme de grande impacto, que me causou estupefação quando o vi nos já distantes anos 60, mas que continuo sempre a rever. Não somente é o melhor filme brasileiro de todos os tempos como pode ser incluído entre as maiores obras da história do cinema.

Uma vez pediram a sisudo crítico paulista Rubem Biáfora a sua relação dos 20 maiores filmes de todos os tempos para a revista Filme/Cultura. Ele respondeu: por que não 50, 80, 100? Mas ainda sobre a lista, devo dizer que no caso de Eisenstein, que todos apontam Outubro e O encouraçado Potemkin como as suas manifestações exponenciais, dei preferência a Ivan, o terrível, filme-ópera de grande impacto, que acredito ser a sua obra mais que perfeita.

Toda lista é pessoal e subjetiva.

1.) CIDADÃO KANE (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles
2.) OITO E MEIO (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini
3.) UM CORPO QUE CAI (Vertigo, 1957), de Alfred Hitchcock

4.) RASTROS DE ÓDIO (The seachers, 1956), de John Ford
5,) ROCCO E SEUS IRMÃOS (Rocco i suoi fratelli, 1960), de Luchino Visconti 
6.) A CRUZ DOS ANOS (Make way for tomorrow, 1937), de Leo McCarey
7.) OS GUARDA-CHUVAS DO AMOR (Les parapluies de Cherbourg, 1964), de Jacques Demy
8.) OS MELHORES ANOS DE NOSSAS VIDAS (The best years of our lives, 1946), de William Wyler
9.) LUZES DA CIDADE (City lights, 1930), de Charles Chaplin
10) ACOSSADO (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard
11) ONDE COMEÇA O INFERNO (Rio Bravo, 1959), de Howard Hawks
12) O ANO PASSADO EM MARIENBAD (L'année derrière en Marienbad, 1962), de Alain Resnais 
13) O MARTÍRIO DE JOANA D'ARC (La passion de Jeanne D'Arc, 1928), de Carl Thodor Dreyer
14) AURORA (Sunrise, 1927), de Friedrich Wilhelm Murnau
15) MORANGOS SILVESTRES (Smultronstallet, 1957), de Ingmar Bergman
16) AVANTI! (Amantes à italiana, 1973), de Billy Wilder
17) IVAN, O TERRÍVEL (Ivan Grosnii, 1939/1942), de Eisenstein

18) DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, de Glauber Rocha
19) AS ESTRANHAS COISAS DE PARIS (Elena et les hommes, 1956), de Jean Renoir
20) A RODA DA FORTUNA (The band wagon, 1953), de Vincente Minnelli
20) O OTÁRIO (The patsy, 1964), de Jerry Lewis