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24 junho 2010

Resnais: Cinema e a explicação do cinema


Lançado nas últimas semanas de dezembro, quando a lista dos melhores de 2009 já estava pronta, As ervas daninhas (Les herbes folles), este magnífico opus recente do renascentista Resnais (Prêmio Especial do Júri em Cannes do ano que passou), deixou de constar da relação dos eleitos. Mas não se pode deixar de retificar e registrar: de longe, este filme admirável é o melhor de 2009, a estar a léguas de distância de todos os outros. Feita a observação, que se vá a ele:

Les herbes folles tem nos pensamentos dos personagens a sua mola propulsora. São os pensamentos que detonam os atos e as situações. Alain Resnais é um realizador cinematográfico que tem como característica sempre a investigação da mente do ser humano. O que eleva sobremaneira seus filmes é a sua capacidade de apresentar, cinematograficamente, as angústias, os desejos, as hesitações de seus personagens. Há, em Les herbes folles, um trabalho original no que concerne ao tratamento da fragilidade do homem frente as suas circunstâncias. Evitando qualquer tipo de psicologia banal, o filme é sobre o mecanismo de funcionamento paradoxal da mente humana. Kubrick, em De olhos bem fechados (Eyes wide shut, 1999), ainda que uma obra a respeitar, tornaria este seu derradeiro filme numa obra-prima se possuísse os recursos resnaisianos ou, melhor a dizer, se Resnais filmasse De olhos bem fechados daria, a ele, uma funcionalidade e uma expressão que o gênio kubrickiano tentou, mas não conseguiu, a considerar que também aqui se trata dos desvarios da mente humana num processo de obsessão.

Além do mais, As ervas daninhas é um exercício cinematográfico puro no qual a lógica e a psicologia se explodem num redemoinho. A mise-en-scène é de tirar o fôlego (como um movimento de câmera para frente – travelling – na sequência do almoço na casa de Dussolier quando este, que aparece sentado num sofá, de repente, com a continuação, aparece já sentado na mesa, havendo, um deslocamento não somente da máquina de filmar como também dos personagens em cena num tour de force admirável. O recurso resnaisiano dos lances de memória é usado com eficiência na estrutura narrativa: a bolsa amarela roubada em câmera lenta, o plano de detalhe da carteira perdida debaixo de um dos pneus do carro, os close ups de Sabine Azéma, os pacientes a sofrer na cadeira de dentista de Marguerite etc. É o imaginário controverso dos seres em movimento que dá margem à fabulação desse extraordinário Les herbes folle.

Marguerite Muir (interpretada com a elegância de Sabine Azéma, companheira, na vida real, de Resnais) é uma dentista que tem fascinação pelos sapatos exclusivos de uma loja parisiense. Depois de comprá-los, ao sair do estabelecimento, sua bolsa amarela, é-lhe roubada. Georges Palet (André Dussolier, ator constantes dos últimos filmes do cineasta) após comprar um relógio num centro comercial acha a carteira de Marguerite, que fora jogada fora pelos ladrões e se encontra embaixo de seu carro no estacionamento do shopping center. Curioso, verifica os documentos e descobre que a dona da carteira tem brevê de piloto, o que o fascina, porque, desde tenra idade, tem mania por aviões e seu sonho seria ter se tornado um aviador. É bom observar que a ação de Les herbes folles se estabelece a partir dos pensamentos de seus personagens, como já foi dito. Palet, por exemplo, ainda no estacionamento do shopping, fica revoltado com uma mulher que usa uma calcinha preta e tem desejo súbito de matá-la. É neste cipoal de desejos paradoxais e esquisitos que se estrutura o filme, baseado em O incidente, de Christian Gailly, com roteiro de Alex Reval.

Palet entra em obsessão para conhecer Marguerite e imagina várias formas de entrar em comunicação com ela. A cena na qual ele está dentro do carro, e imagens laterais vão sendo mostradas como soluções hipotéticas, é bem ao feitio resnaisiano. De repente, durante um almoço familiar (Palet é casado há 30 anos com Suzanne/Anne Consigny e tem três filhos), recebe uma ligação de Marguerite para agradecer a devolução da carteira (não sem antes ter ido à polícia para entregá-la e fazer os trâmites legais com o comissário interpretado por Mathieu Amalric, que se desorienta com as hesitações dele). É quando tem início a idéia fixa de Palet em entrar em contato, custe o que custar, com Marguerite. É a pulsão de um desejo na estrutura mental de Palet que aciona os mecanismos fabulatórios de Les herbes folles, que, para evitar o spoiler, deixa-se, aqui, de contar o resto.

Se ainda pudesse existir uma, por assim dizer, lógica narrativa, esta explode no final numa apologia à liberdade da mise-en-scène. Resnais propõe, na parte final, a apologia do espetáculo puro, do cinema em plena autonomia de vôo, quando a fábula dá lugar à narrativa imaginária à disposição do específico cinematográfico. Os leitmotivs (como que refrões) que permeiam o filme (as ervas daninhas das circunvizinhanças e que adentram a casa de Palet, a bolsa amarela em câmera lenta...) se desatam num processo único. A tal ponto que é a celebração do cinema que se verifica com o passeio aéreo que pontua a obra-prima. A partir mesmo, antes disso, do momento em que Marguerite vai procurar Palet, que se encontra num cinema de bairro a ver As pontes de Toko-Ri (The bridges of Toko-Ri, 1954), de Mark Robson, com William Holden e Grace Kelly, por ser um filme de guerra e de aviões em combate. Mas, em verdade, não são apenas os tormentos mentais dos personagens que se constituem o móvel de Les herbes folles, mas, também, as formas de expressá-los de maneira puramente cinematográfica.

Duas vezes a bela fanfarra da Fox, a pontuar a fantasia que é o cinema: tocada, com aquela ênfase que fez a emoção dos antigos frequentadores das salas de exibição, no neon do cinema onde Palat se escondera para ver os aviões de As pontes de Toko-Ri, e, quando ele se encontra com Marguerite e a beija no hangar. O filme, na terceira parte, toma um rumo surpreendente, a transformar as hesitações iniciais dos personagens em decisões. A rigor, não há rumo a tomar em Les herbes folles, ainda que haja o rumo do roteiro a seguir, a se fazer cinema pela varinha mágica de Resnais. Mas os personagens, as criaturas resnaisianas, não o têm. Como a vida.

Impressionante o poder de convencimento que passa as interpretações de André Dussolier (que tem neste filme a maior performance de sua carreira) e de Sabine Azéma, além de todos os outros intérpretes, buscados, a maioria deles, na excelência do cast da Comédie Française.

Celebração ao cinema e ao imaginário, como bem acentua a interrogação aparentemente infantil do garoto, na última tomada do filme, que pergunta à mãe: “Quando eu for gato, posso comer a ração do gato?”.

23 junho 2010

"Bye Bye Birdie", de George Sidney


A existência em DVD de Adeus, amor! (Bye, bye, Birdie, 1963), comédia romântica musicada de George Sidney, provocou a nostalgia deste comentarista e uma viagem ao passado, quando o cinema americano, ainda que com certa ingenuidade, tinha, além de engenho e arte, graça e envolvimento, fazendo do espectador um verdadeiro cúmplice do espetáculo. Este comentarista adquiriu o DVD de Bye, bye, Birdie e passou duas belas horas a contemplá-lo. Muitos poderiam achar neste filme um teor narrativo já gasto, preocupados que se encontram com a desconstrução de tudo. É bem de ver que um filme narrativo clássico, se bem feito, se realizado com talento, pode ser até melhor do que muitos outros que procuram mostrar que aqueles os fazem são ‘cineastas’, são autores. O filme para ser bom precisa, antes de mais nada, de talento. E George Sidney o tem para dar e vender.

Visto em meados dos anos 60 no antigo cinema Liceu da rua Saldanha da Gama, Adeus, amor (Bye bye Birdie, 1963), com exceção de uma rápida aparição na televisão (no Cineclube da Globo, quando passava filmes no original e com legendas em português), desapareceu de circulação até a sua chegada em DVD distribuído pela Columbia. É um musical anacrônico, quando o gênero já dava sinais de exaustão (o último musical clássico, na acepção da palavra, foi Gigi, em 1958, de Vincente Minnelli), mas muito inventivo e divertido. Após este, o gênero, que dominou Hollywood por décadas, ainda apareceu em grandes produções, a exemplo de Amor sublime amor (West Side Story, 1961), A noviça rebelde (The sound of music, 1965), ambos de Robert Wise, Positivamente Millie, de George Roy Hill, entre poucos outros, até entrar em profunda decadência com o fiasco de Hello Dolly! de Gene Kelly, em 1970.

O diretor George Sidney é um especialista do gênero e tem pleno domínio dos recursos do espetáculo musical, considerando ter feito alguns Ziegfeld Follies, Os três mosqueteiros, com Gene Kelly, filme de aventura todo cantado e dançado, O barco das ilusões (Show boat), Dá-me um beijo (Kiss me Kate), Meus dois carinhos (Pal Joey), Amor a toda velocidade (Viva Las Vegas, 1964), o melhor filme de Elvis Presley, e A moedinha do amor (Hal a sixpence, em 1967, que assinala o encerramento de um carreira que começou em 1937). Além do capa/espada coreográfico, um dos melhores filmes de aventura de todos os tempos: Scaramouche, com Stewart Granger.

Visão satírica do advento dos ídolos do rock e a conseqüente histeria provocada em seus fãs, Bye bye Birdie tem um personagem cantor que remete a Elvis Presley (o filme é de 1963, e este estava ainda no auge da carreira). Visão também irônica do american way of life, mas o que encanta sobremaneira no filme é a excelência de alguns números musicais, a suavidade com que Sydney trata o tema, a engenhosidade do argumento e, principalmente, a graça e a beleza de Ann-Margret, que depois ficaria cativa do diretor em filmes como Amor a toda velocidade, entre outros. Sydney também investe na contemplação da 'cultura pop' então emergente e que causou uma devastação no cenário musical tradicional.

Conrad Birdie (Jessie Pearson) é um cantor de rock, um super 'star', que, convocado para o exército, causa revolta em seus fãs, que realizam intensas passeatas em Washington (É bom lembrar que o mesmo, nos anos 50, aconteceu com Elvis Presley, que serviu o exército para desgosto de seus admiradores e, quando voltou, trabalhou em 'Saudades de um pracinha'). Albert F. Peterson (Dick Van Dyke) é um empresário musical que está quase em falência. Mas, com a notícia da convocação de Birdie, sua noiva, Rose De Leon (Janet Leigh), combinando com Ed Sullivan, famoso 'show man' americano que aparece como ele mesmo ('himself'), tem a idéia de escolher uma adolescente do interior para ser beijada por Birdie na sua despedida antes de partir. Birdie cantaria, então, uma música de Pearson, que venderia, em conta pequena, mais de um milhão de discos, salvando-o assim da falência.

Sullivan aceita o acordo e Birdie é levado à cidadezinha onde mora Kim McAffe, e a sua chegada chama a atenção de todo o lugar, com discursos, inclusive o do prefeito. Birdie desencadeia uma verdadeira polvorosa. Kim e suas colegas exultam, menos o noivo dela, Hugo (Bobby Rydell), que, ciumento do astro, acaba consentindo, ainda que contrariado. O número de Birdie aconteceria no show televisivo de Sullivan 'coast to coast', sucedendo a um balé russo. Mas os empresários deste revelam que a apresentação vai consumir todo o tempo do programa, ficando Birdie para o fim e sem poder cantar a música de Peterson (objetivo de todas as tratativas de Rose para tirar o noivo da falência, possibilitando uma vendagem da gravação de sua música pelo astro pop). Mas tudo se resolve segundo o figuro, graças aos esforços de Rose, vivida por uma Janet Leigh a todo vapor. A sequência em que dança para o comitê soviético, na tentativa de enganá-lo, foi cortada da versão que passou nos cinemas, mas aqui, no DVD, está integral. A partitura musical é do consagrado Charles Strouse (Annie), e quem escreveu as canções, Lee Adams.
Janet Leigh, uma atriz de presença constante na época (Sob o domínio do mal, Psicose, A marca da maldade...), está esplêndida. Mas toda a graça do espetáculo se encontra em Ann-Margret, ainda bem jovem, mas o mínimo que se pode dizer dela é que trata-se de uma mulher extremamente sensual e encantadora. Dick Van Dike, excelente comediante, que tem seu momento de glória ao lado de Julie Andrews em Mary Poppins, é sempre uma contribuição para a emergência da alegria.

A melhor seqüência de Bye bye Birdie é a do café/boite, quando Anne-Margret mostra todo o seu imenso sex-appeal além de seus atributos como dançarina e cantora. Há, também, aqui, uma erupção de seu lado sensual, escondido no resto do filme, mas que se revela à toda velocidade neste momento. Um desafio lançado por ela em direção a Hugo, seu namorado, que também faz emergir de seu ar juvenil um sentimento de maturidade. O momento em que Dick Van Dyke encontra Janet Leigh no jardim, aborrecida, e tenta fazê-la alegre, é desenvolvido com a naturalidade estilizada de Sydney e, também, pela performance de Van Dyke. A rigor, quase todas as sequências musicais são boas, bem dirigidas, com um sentido exato de inspiração, contenção e, se for o caso, explosão.

22 junho 2010

"O nono mandamento", de Richard Quine

Tenho fascinação por O nono mandamento (Strangers when we meet, 1961), de Richard Quine, um príncipe da sofisticação, que dirigiu, entre outras, comédias notáveis e inesquecíveis como Aconteceu num apartamento, Quando Paris alucina, Como matar sua esposa. Quine tem um tal poder no domínio formal da mise-en-scène que a dota de uma, por assim dizer, estesia. Não existem mais cineastas de seu nível, de sua finesse, com uma escrita superior (outros existiam ainda melhor, a exemplo de Vincente Minnelli, Billy Wilder...). Em Strangers when we meet, Kirk Douglas, ao levar seu filho à escola infantil, vem a conhecer Kim Novak (também casada) e ambos se apaixonam. Novak era a atriz preferida de Quine, que, maltratado pela vida e pela indústria cinematográfica, suicidou-se. Segundo Carlos Reichenbach, Strangers when we meet está livre e desembaraçado de gralhas, e com legendas em português, para ser devidamente baixado na internet.
Nestes tempos medíocres e extremanente moralistas, e, além do mais, politicamente corretos, quando o cinema se transformou numa espécie de videogame (não gosto de avatares, ainda bem), ver um filme como Strangers when we meet é um bálsamo.

21 junho 2010

"Viagens com minha tia", de George Cukor


Obra crepuscular de George Cukor, Viagens com minha tia (Travels with my aunt, 1972), baseado em Hilarious novel, de Graham Greene, apesar de seu alto nível de sofisticação, passou batido quando do seu lançamento na primeira metade dos anos 70. Tive a felicidade de vê-lo na tela do cinema, quando, na semana de sua estreia, cheguei a assisti-lo por três vezes. Lembro que quase sai de cartaz no meio da semana por absoluta falta de público, mas, para minha fortuna, chegou aos 7 dias habituais de exibição (colunista de um jornal, alertei para a sua importância e para o crime de retirá-lo do cartaz). Mas, desde então, nunca mais o vi nem na televisão em cópia dublada nem em VHS ou DVD e, nem mesmo, nos canais telecines.
Cukor é um grande diretor de atores, principalmente de mulheres. Foi um dos diretores de E o vento levou (Gone with the wind, 1939), mas o poderoso produtor David Selznick o demitiu a pedido de Clark Gable, que ficou com ciúmes da atenção extremada que dava a Vivien Leigh. Em Travels with my aunt, um depressivo homem Alec McCowen (o inspetor de polícia do delicioso Frenesi, de Hitch) vem a conhecer sua tia (Maggie Smith - Oscar por A primavera de uma solteirona, de Ronald Neame, que morreu há poucos dias aos 99 anos) com a qual dá uma volta ao mundo, encontrando, pelo caminho, as mais esdrúxulas aventuras.
Talvez seja fácil baixá-lo na internet. Vale a pena. Mas aviso: é em cinemascope.

20 junho 2010

"Um corpo que cai" é o melhor Hitchcock

Um corpo que cai (Vertigo, 1958) ganhou no segundo turno da enquete por 56% (23 votos) para Janela indiscreta (Rear window). A rigor, é, realmente, o melhor filme de Hitchcock para a crítica mundial, embora cada hitchcockiano possa ter o seu preferido. Numa pesquisa do jornal Folha de São Paulo, em 1995, quando se comemorou os 100 anos do cinema, entre quase uma centena de críticos e historiadores de diversos países, para se saber quais os maiores filmes de todos os tempos, Um corpo que cai tirou, feitas as contas, um honroso segundo lugar (o primeiro, como de hábito, ficou com Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles. Mas James Stewart me disse (sorry, periferia), no Rio de Janeiro, em outubro de 1984, quando aqui esteve para lançar o pacote Hitchcock, que o filme do mestre que mais admirava era Janela indicreta (que ficou com 43% e 18 votos).
Clique no cartaz para vê-lo maior.