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20 junho 2012

Nicholas Ray: o lirismo do homem ferido

Nicholas Ray - cujo verdadeiro nome era Raymond Nicholas Kienzie - nasceu em Wisconsin em 1911. Se vivo estivesse, estaria com 101 anos. Mas morreu em 1979, aos 67, vitimado pelo excesso de álcool e cigarro. Fumava sem parar: um atrás do outro. Resultado: um virulento câncer no pulmão matou-o. Wim Wenders, seu amigo, registrou, em Nick's movie, os últimos suspiros de Nicholas Ray. Sua esposa, que esteve presente na abertura da mostra a ele dedicada, afirmou, em entrevista, que Wenders foi cruel com Ray ao registrar os derradeiros momentos do marido.
Formado pela Universidade de Chicago, em Arquitetura, chegou a trabalhar com o famoso Frank Lloyd Wright, um dos mais célebres arquitetos do século passado. Foi na casa dele, uma mansão suntuosa, que Alfred Hitchcock, em Intriga internacional, filmou a sequência na qual James Mason e seus capangas se reúnem nos momentos finais do filme e Cary Grant consegue se infiltrar. O aprendizado no trabalho com Wright deu a Ray o gosto pela plástica da imagem, pelo sentido da composição do enquadramento, pela disposição dos objetos e pessoas em cena. Um fotograma de um quadro fílmico em Ray, se porventura em cinemascope, não pode ser destruído pela exibição televisiva no horrendo full screen (tela cheia).

Raymond Nicholas Kienzie iniciou suas atividades artísticas quando já estourada a Segunda Guerra Mundial, fazendo programas de rádio para a CBS. Interessado pelo teatro, montou várias peças, nesse período, em colaboração com John Houseman (que fazia parte do Mercury Theatre de Orson Welles, produtor eficiente e soberbo ator). Assistente de direção de Elia Kazan em Laços humanos (A tree growns in Brooklin, 1945), aprendeu com o grande diretor de atores a maneira de lhes fazer emergir uma personalidade forte em cena. Em seguida, dirigiu para a televisão, em 1946, Sorry, wrong number - adaptação de uma obra teatral que inspirou logo o filme de Anatole Litvak Uma vida por um fio (1948), com Barbara Stanwick e Burt Lancaster. Dore Schary, o novo poderoso chefe de produção da RKO, insuflado por John Houseman, deu-lhe a direção de Amarga esperança (They live by night, 1948), que focaliza o drama de jovens sem esperança com um clima lírico que fizera habitual em sua obra. É então que Nicholas Ray se associa a Humphrey Bogart , que, convertido em produtor, é dirigido por Ray em uma de suas melhores criações: o advogado de O crime não compensa (Knock on any door, 1949), melodrama de denúncia social transcendido por uma penetrante descrição de ambientes e comportamentos. 

No silêncio da noite (In a lonely place, 1950), novamente uma associação com Humphrey Bogart, dá a Raymond Nicholas Kienzie a fama de um diretor acima da média no circuito hollywoodiano ao introduzir no relato uma reflexão sobre o próprio cinema. Bogart faz um roteirista amargurado com as engrenagens da indústria que, após alguns filmes de sucesso, entra em crise criativa. A estrutura narrativa toma a forma de um autêntico film noir, mas a concepção do próprio roteiro e a montagem permitem uma transgressão ao gênero. Contracenando com Bogart, Gloria Grahame, que viria a ser esposa de Ray.

Outra pérola do film noir, Cinzas que queimam (On Dangerous Ground, 1952) mostra o calvário de um detetive particular (Robert Ryan), que, desiludido com a escória reinante na cidade, é designado para investigar a morte de uma mulher no interior. E se apaixona, no intricado do enredo, por uma mulher cega (interpretada por Ida Lupino, que também foi diretora de filmes). Ward Bond (ator fordiano por excelência também está presente), assim como Ed Begley. Filme fascinante que não se esquece de maneira assim tão fácil.

Johnny Guitar (1953) é um western sui generis e, para muitos, o melhor filme de Nicholas Ray. O mais insólito e, talvez, o mais característico dos filmes deste diretor, constitui, para certa parte dos exegetas de Ray, uma continuação ideal de No silêncio da noite: a história de um homem violento que deseja deixar de sê-lo e de uma mulher moralmente mais forte do que ele. Este contexto, dentro de uma fábula de evidente intenção antimaccarthista, permitiu ao autor desenvolver alguns de seus temas prediletos: a obsessão da violência, a inquietude da adolescência, a onipresença da morte, sem esquecer precisos matizes autobiográficos. Através de uma construção dramática inusitada - um plano-sequência inicial de 40 minutos de duração em um cenário único, a sala de jogos, expõe e enfrenta os personagens principais, Ray buscou um certo clima de exasperação lírica em todos os recursos de sua mise-en-scène, na estilização dos gestos e movimentos dos atores, no preciosismo dos diálogos, no insólito da cor (cujos defeitos técnicos foram utilizados habilmente com fins expressivos) e do cenário. Servido por uma admirável corte de intérpretes (entre os quais Sterling Hayden e Joan Crawford). E, finalmente, popularizado por um tema musical de grande êxito, Johnny Guittar foi um western feérico por excelência, que teve o mérito especial de inventar seu próprio gênero.

O lirismo do homem ferido se espraia em todos os filmes de Nicholas Ray, às vezes com mais intensidade, outras vezes com menos. Em Horizonte de glórias (Flying leathernecks, 1951), o cineasta abandona o cinema noir e o western para localizar a sua ação num campo de batalha. É a guerra o espaço onde os conflitos explodem. É bem de ver que Ray, ainda que trabalhando no cinema de gêneros, transcendendo-o para, nele, apor a sua marca, o seu pensamento, a sua visão de mundo, a sua filosofia de vida. O palco é o conflito do Pacífico Sul durante a Segunda Guerra Mundial. John Wayne é um major que assume o comando de um esquadrão de caças e encontra enormes resistências de seus comandados, entre eles Robert Ryan.

Antes de Johnny Guitar, Nicholas Ray incursionou num western em 1952 que não tem a notoriedade deste, mas é admirável: Paixão de bravo (The lusty men). Robert Mitchum (um ator de rara presença e personalidade cênica) fica machucado num rodeio e resolve voltar para a sua cidade natal. Arranja trabalho num rancho e se torna amigo de seu patrão, mas não estava no programa que se apaixonasse por Susan Hayward. Estabelece-se, então, o conflito e Ray injeta, nele, o seu constante lirismo do homem ferido. Também no elenco um ator coadjuvante, mas de extraordinário desenvolvimento interpretativo: Arthur Kennedy.

A filmografia de Nicholas Ray ainda revela muitas surpresas.  Em 1955, realiza o antológico Juventude transviada (Rebel without a cause), o primeiro longa de James Dean, que viria, depois, fazer ainda dois filmes (Vidas amargas, de Elia Kazan, e Assim caminha a humanidade, de George Stevens, antes de sua morte prematura num acidente automobilístico.

Jean-Luc Godard, num dos seus escritos no Cahiers du Cinema chegou a afirmar numa crítica a um filme desse cineasta: "O cinema é Nicholas Ray!" E o próprio disse que "o cinema é a melodia do olhar." Nicholas Ray é um dos mais importantes realizadores do cinema americano de todos os tempos. A revisão de seus filmes surge, portanto, como programa obrigatório para todos os cinéfilos que se prezam. 

 Em 1955, Nicholas Ray realiza um de seus filmes mais admirados e que causou sensação entre os jovens dos anos 50, principalmente pelo aparecimento do ator emblemático James Dean, que, com sua morte prematura, viria a se tornar um mito ainda hoje celebrado. O filme, Juventude transviada (Rebel without a cause), reflete a angústia de toda uma geração de jovens, os rebeldes sem causa do título original, e seu argumento gira em torno de Jim Stark (Dean), um jovem que é obrigado a se transferir para outra cidade por ter sido expulso da universidade onde estudava. Atraído por uma jovem vizinha, Judy (Natalie Wood), entra na universidade local, mas não tarda em demonstrar, com os colegas mais rebeldes, seu comportamento inconformista. Provocado, Jim, apesar dos conselhos do pai, homem bonachão e dominado pela esposa, dispõe-se a um duelo de honra e, com seu rival, dois carros em alta velocidade precisam frear diante de um abismo. Durante o duelo, seu antagonista, Buzz (Corey Allen) acaba por cair no abismo e, em consequência, vindo a morrer. Os pais de Jim tentam impedi-lo que se apresente à polícia e ele se refugia com Judy em uma vila abandonada descoberta pelo jovem Plato (Sal Mineo). Há, na sequência em que os jovens estão na vila, um triângulo amoroso sui generis travado apenas pela troca de olhares que se configura numa expressão maior do cinema de Ray. 

  Nicholas Ray concebe a ideia desse filme através da leitura de uma série de recortes de jornais sobre adolescentes inconformistas e, também, influenciado pelo mal-estar social muito em voga naquela época. Juventude transviada é considerado o mais completo e explícito sobre os problemas da adolescência entre as obras dedicadas ao assunto. Sua tonalidade peculiar se deve, principalmente, à excepcional identificação entre Jim Stark e seu intérprete, James Dean, arisco, de uma sensibilidade à flor da pele, e desamparado, "ambos desgarrados  pelo conflito entre o desejo de se entregar e o temor da entrega", como declara o próprio Nicholas Ray.

  Jim Stark é o protótipo do adolescente solitário e difícil cujo drama nasce de uma inocência fundamental, levada até às últimas consequências, e que resulta na impossibilidade de aceitar os compromissos impostos por certa civilização, por uma determinada forma de viver. O êxito alcançado por Vidas amargas (East of Eden), de Elia Kazan, baseado em parte do romance de John Steinbeck, com a rica e complexa caracterização desse personagem, converte James Dean em símbolo de toda uma geração, originando um culto quase idolátrico que ainda perdura. Construído segundo uma linha dramática de uma sensibilidade de tragédia clássica e apoiado numa apresentação simples e direta de seus caracteres, Rebel without a cause se desenrola em um clima febril, delirante, específico dos filmes de Ray dessa etapa, que se resolve em várias sequências culminantes, momentos fortíssimos dentro da sua estrutura narrativa: a lição do planetário, que dá uma das chaves para a compreensão da obra; a chicken run, absurda prova de valor que se consuma como uma cerimônia pagã; a penosa e violentíssima explicação de Jim a seus pais; a admirável cena de amor na vila e o desolador desenlace. O emprego pela primeira vez do Cinemascope permite a Ray estimulantes experiências de composição, tendentes a dar uma ênfase lírica a certos gestos dos intérpretes. A sinceridade e honradez  extremas de seu enfoque fazem com que Juventude transviada não haja perdido, com o tempo, a sua atualidade, ainda que Ray aborde um delicado problema social em termos mais poéticos do que analíticos.

  Alguns filmes que não tive a oportunidade de ver estão fora dessa trajetória de Ray (por exemplo: Fora das grades, entre outros). E também não há um propósito de esgotar a ficha filmográfica de Nicholas Ray. Mas, depois de Rebel without cause, o filme que mais se destaca é Delírio de loucura (Bigger than life, 1956), com James Mason, Barbara Rush, Walter Matthau, Christopher Olsen. Mason (sempre um ator impecável, fleumático) faz um professor que descobre sofrer de uma rara doença e aceita se tratar com uma droga ainda em experiência científica. Há uma recuperação e regressão na doença, mas o problema maior é que ele se vicia nela e seu comportamento familiar se torna insuportável com reações imprevisíveis. Ray também aqui adere ao Cinemascope, tela larga, cujo primeiro filme nesse processo anamórfico data de três anos antes: O manto sagrado (The rope, 1953). Bigger than life é uma obra de grande impacto no qual Ray desenvolve o violento enfrentamento dos impulsos espontâneos do indivíduo e das estruturas coletivas da vida norte-americana.

  O filme a seguir é Quem foi Jesse James? (The true story of Jesse James, 1957), com Robert Wagner, Jeffrey Hunter, Hope Lange, Agnes Moorehead, John Carradine. É a história de Jesse James e sua trajetória como um dos mais temidos, ao lado do irmão, bandidos do oeste. Há, no filme, uma aguda análise do processo de conversão de um personagem pacífico e não contaminado que se transforma, de repente, condicionado pelo meio social, em um herói violento. Ray propõe, com claridade meridiana, sua concepção da violência revolucionária como única forma válida de se opor à violência impune da sociedade constituída.

  Nesse mesmo ano de 1957, Amargo triunfo (Bitter victory), com Richard Burton, Curd Jürgens, Ruth Roman, Christopher Lee. Oficial recebe condecoração por bravura, mas a honraria se converte em insulto, porque o capitão que a indicou tem um affair com a esposa do oficial condecorado. Jornada tétrica (Wind across the everglades, 1958), com Burl Ives, Christopher Plummer, Peter Falk, tem sua ação localizada no século XIC. Nunca vi este filme, mas as críticas são entusiásticas. 

  A bela do bas-fond (Party girl, 1958), com Robert Taylor, Lee J. Cobb, Cyd Charisse (as pernas mais bonitas de toda a história do cinema), John Ireland, Corey Allen, tem o galã Taylor como um advogado manco (um homem ferido) que é ligado a um chefe mafioso, mas ao se apaixonar por uma bailarina (Charisse) tenta sair do esquema de corrupção. O que não é nada fácil.

  O filme que mais aprecio de Nicholas Ray, entre muitos outros, evidentemente, é Sangue sobre a neve (The savage innocents, 1960). Adaptado do romance Top of the world, de Hans Ruesch, pelo próprio autor ao lado do italiano Franco Solinas, a ação se passa no gélido Ártico e mostra a vida de um esquimó (Anthony Quinn) com sua mulher (Yoko Tani). Há alguns momentos que fazem lembrar a obra-prima de Robert Flaherty Nanuk, O esquimó (Nanook of the North, 1922), filmado, este, in loco, ainda no período da estética da arte muda. The savage innocents tem um registro documental do dia-a-dia do personagem: seu modo de habitar, sua necessidade de caçar para trazer o alimento no fim do dia. E que se constitui, na verdade, num autêntico discurso sobre o pensamento selvagem, a dialética da Natureza e a corrupção da civilização em uma das mais claras e transparentes expressões das concepções morais do autor, tanto de um ponto de vista emocional e dramático, quanto no exercício estrito da mise-en-scène cinematográfica. Ray não conseguiu, para este filme, recursos nos Estados Unidos. A produção é uma parceria entre a França, Itália e Reino Unido. Peter O'Toole tem uma ponta.

  No regresso a Hollywood, sem trabalho, o produtor Samuel Bronston o convidou para dirigir um épico histórico tão ao feitio da época: O rei dos reis (King of kings, 1961), quase três horas de projeção. Apesar de a crítica, na época, ter fechado os olhos para o filme, e, hoje, revisto, tem alguns defensores entusiásticos. Trata-se da história de Jesus Cristo do nascimento até a ressurreição. Quem o interpreta é Jeffrey Hunter (o acompanhante de Etahn Edwards em Rastros de ódio/The seachers, de John Ford). Há close ups magníficos de seus olhos azuis. Novamente utilizando com sabedoria o Cinemascope, para alguns críticos que viram grandeza em King of kings, Ray amplia, aqui, os limites de seu mundo e depura as suas constantes expressivas.

  Gosto muito de outra superprodução de Bronston dirigida por Ray: 55 dias em Pequim (55 days at Peking, 1963), canto de cisne de Nicholas Ray, com Charlton Heston, Ava Gardner, David Niven, Flora Robson, John Ireland, Harry Andrews, e o próprio Nicholas Ray no papel do embaixador. Estrangeiros são constrangidos e cercados durante a revolta dos Boxers, A única saída para eles é ser liderado por um valente e obstinado membro da Marinha norte-americana e pelo embaixador britânico. O filme, na época, foi malhadíssimo pela crítica.

  Eis, portanto, a trajetória de um grande diretor de cinema. Nada existe hoje que se lhe possa comparar.

17 junho 2012

Ao jegue, com carinho


Por Gilles Lapouge

Está na hora de lembrar dos jumentos. Os jornais falam muito do Festival de Cannes, do aquecimento global, do naufrágio da Grécia, mas aos jumentos quase ninguém se refere. O cavalo é mais favorecido. É sempre o foco da atenção pois tem elegância, brilho. Domingo vai às corridas, onde caminha gingando como uma estrela de cinema. Os homens usam belas calças e as mulheres lindos chapéus para montar nele.
O jumento não tem a mesma presença. É chamado de "burro" e de "asno". Palavras ofensivas. Tem cor de estopa. É desnutrido. Por que esse rosário de afrontas? Se eu fosse jumento, faria um motim. Brigitte Bardot falou recentemente dos jumentos, os do Brasil. Ela ficou furiosa ao saber que o Rio Grande do Norte, visando a criar uma nova fonte de renda, teria aceitado exportar 300 mil jumentos por ano para a China para nutrir as indústrias alimentícias e cosméticas desse país. Eu compartilho da cólera de Brigitte.
A rarefação dos jumentos nos campos - no Nordeste brasileiro, no sul da França, mesmo na Palestina - sempre me pareceu uma desgraça. Fizemos tanta coisa juntos, eles e nós - as pirâmides, as minas, as rodas d'água, as catedrais, a agricultura...
O jumento também transformou uma desvantagem em mérito. Ele sofre de um problema de vértebras: tem uma a menos. Mas, como é dono de um espírito dócil, aceitou esse infortúnio, que lhe dá pavor de correr e lhe tira o fôlego quando o dono o faz trotar. Na verdade, ele transforma essa fraqueza em força. Como suas vértebras dorsais são bastante desenvolvidas, seu dorso é saliente e seus rins são fortes. Essa constituição singular se ajusta à sela, de madeira ou de couro.
Todas essa inferioridade e a maneira com que ele teve de assumi-la compuseram o destino do jumento. Ele não é bom para correr e não sabe galopar. Em compensação é ótimo para puxar charrete, mover as rodas que trazem a água para a superfície no deserto, carregar feixes de trigo e sacos de terra e pedra. É bom também para descer ao fundo das minas de carvão, onde, muitas vezes, de tanto viver no escuro, acaba ficando cego.
O jumento participou de todas as aventuras do homem. Suou por nós. Perdeu seu fôlego por nós. Morreu sob nossos golpes. E, quando os engenheiros inventaram o motor de explosão, a moto, o trator e o caminhão, adeus jumento! Adeus, velho servidor! Vamos vendê-lo para a China para que as pessoas o comam. Nós o jogamos como se joga uma roupa esgarçada, uma gilete sem corte. Adeus, velho amigo, mas você não serve para mais nada!
Gosto muito dos jumentos do Nordeste brasileiro. Venho testemunhando sua derrota há 40 anos. E vi esta aberração: motos ruidosas, nauseabundas, perigosas, substituindo jumentos para cercar os rebanhos, em meio a um atroz odor de combustível. Em 1974 fiz uma longa viagem pelo Nordeste do Brasil. Sozinho. Fui de cidade em cidade, ao acaso, segundo meu desejo, em ônibus que rodavam 10, 12 horas por dia. Os jumentos já começavam a desaparecer, mas ainda eram numerosos. Faziam parte da paisagem nordestina. Quando chegava aos vilarejos assolados pela seca, eu ia cumprimentá-los. Eles me lembravam aqueles jumentos que conheci e amei na minha infância, não no Brasil, mas na França, nas montanhas austeras e pedregosas da Provença. Eu falava com os jumentos de João Pessoa ou de Epitácio Pessoa. Temos boas lembranças em comum, os jumentos do Nordeste e eu. Hoje, quando atravesso esses lugares ermos, em meio à barulheira dos caminhões e das motos, procuro por todo o lado as orelhas, as belas orelhas sensíveis, e elas sumiram.
Eu respirava seu odor. Olhava seus grandes olhos melancólicos e era como se um tapete mágico me conduzisse de volta aos tempos felizes da infância. Foi nessas longas noites no Nordeste que compreendi por que tanto amava os jumentos. Do outro lado do mundo, encontrei os mesmos animais, tão bonitos, tão fortes, tão resignados. Como seus congêneres da Provença, os pequenos jumentos do Nordeste se aproximavam de mim e cheiravam minhas mãos. Eles gostavam do meu cheiro, e eu do deles. Certas noites, nesse longo périplo solitário entre Salvador e Natal, Recife e Terezinha, sentia uma certa angústia pelo fato de estar só. Então ia ver os jumentos. Tínhamos este ponto em comum: detesto a solidão, os jumentos, também. Se um jumento está sem companhia, fica infeliz. Entedia-se a ponto de parecer que pode morrer de tédio.
O jumento não é só corajoso e útil: também tem caráter. Apesar de sua cortesia e indulgência com relação às loucuras e vilanias dos homens, jamais transige em questão de princípios. Na Bíblia, uma jumenta impediu que seu senhor, o adivinho Balaam, bloqueasse a passagem do povo de Israel quando este se aproximava da Terra Prometida. Naquele dia, os homens estiveram muito perto do desastre. Se a jumenta não tivesse dado uns bons coices em Balaam, os judeus jamais teriam continuado sua epopeia e isso teria provocado uma grande confusão na Bíblia, na história religiosa e em toda a História. Teríamos que começar tudo do zero. E Deus, como iria se sair dessa?
Em recompensa, o jumento teve o privilégio de aquecer com seu sopro o Menino Jesus na manjedoura. O jumento também teve a honra de servir de montaria para Cristo quando Ele entrou em Jerusalém, antes da Paixão. Jesus ficou muito emocionado e marcou o dorso do jumento com um sinal da cruz. Na Provença nós chamamos de "cruz de Santo André". Fiquei comovido ao encontrar nos jegues do Nordeste o mesmo sinal da cruz.
O jumento é bem considerado pelos deuses. Enquanto os homens o condenam ao insulto, ao desprezo, à pancada e ao trabalho perpétuo, as sociedades religiosas têm consideração com ele. A história santa está repleta de jumentos. A Bíblia o cita 133 vezes, um recorde entre os animais. Em Josué, ficamos sabendo que o jumento foi montado por judeus da mais alta sociedade, príncipes e damas. Cada patriarca tinha seu jumento. Abigail, que vai ao encontro de David, sela seu jumento (Samuel, 25) Zorobabel, depois da Babilônia retorna a Jerusalém montado no dele. Sansão, quando 3 mil filisteus o atacam, usa uma queixada de jumento para revidar e os mata.
O jumento vai do Velho Testamento para o Novo. Jesus escolheu um burrico, não um cavalo, para entrar em Jerusalém. Em Roma, os pagãos ridicularizavam a religião cristã por causa de sua amizade com os jumentos. Um pouco mais tarde, encontramos muitos místicos cristãos no Egito que se entregavam a penitências terríveis: viver sentados na ponta de uma coluna de pedra, numa árvore, quase imersos num pântano ou então se mantendo de tal modo imóveis que os pássaros faziam ninho em suas mãos. Os pagãos se divertem com esses fanáticos. E os chamam de "jumentos".
É verdade que mesmo em países cristãos os jumentos foram às vezes maltratados. Na Espanha, quando Isabel, a Católica, mandava queimar uma feiticeira, esta era amarrada nua num burro para que, à pena de morte, se adicionasse o suplício de partir da vida no dorso de um animal desprezado e obsceno. Na França os professores durante muito tempo colocavam um chapéu de asno na cabeça dos maus alunos. Por toda parte o jumento foi relegado ao desprezo e à injúria. Ao longo da história (salvo nos países do Oriente Médio), ele esteve no mais baixo nível da sociedade. Pior: foi sempre o bode expiatório dos mais humildes, o doméstico dos domésticos, o escravo dos escravos, o proletário dos proletários.
Alguns intelectuais foram em seu socorro. Victor Hugo escreveu, no fim da vida, um imenso poema glorificando o jumento. O grande historiador Michelet sublinhou o papel do burro na história dos homens, e o grande naturalista Buffon defendeu o jumento contra o cavalo. O filósofo da Renascença Giordano Bruno, último homem queimado pela Inquisição, em 1600, fez do jumento um modelo de espírito e erudição. Os sábios que acompanharam Napoleão Bonaparte no Egito, em 1798, montavam jumentos. Quando a tropa foi atacada pelos mamelucos, os oficiais franceses gritaram: "Protejam os jumentos no centro". No geral, pintores e poetas amam o jumento. Os cabalistas judeus descobriram que a palavra "jumento", em hebraico, tem as mesmas letras que a palavra "matéria". E concluíram que o jumento é "o mestre dos segredos do universo". Têm razão. O jumento entende tudo: se é idiota, é idiota como O Idiota de Dostoievski, o príncipe Muichkine - que é genial porque, se não compreende as coisas corriqueiras, compreende, por outro lado, as mais obscuras.
O jumento sabe tudo. Ele não trota nas mesmas paisagens que nós. Apenas aparenta compartilhar nossos caminhos, quando na realidade está em outro lugar, vem de outro lugar, vai para outro lugar. Ele atravessa educadamente nossa geografia sem fazer ruído para não nos perturbar, mas na verdade não caminha no mesmo passo que nós. Somente os poetas compreenderam a nobreza do jumento. Na França, no início do século 20, Francis Jammes escreveu uma oração para eles. É tão bela e luminosa que eu vou citá-la:
Prece para chegar ao Paraíso em Companhia dos Jumentos
Quando for a hora de ir a vosso encontro, meu Deus, fazei com que seja num dia em que o campo esteja brilhando em festa. Pegarei meu bastão e pela grande estrada irei, e direi aos jumentos, meus amigos: sou Francis Jammes e vou para o paraíso, porque não existe inferno na terra do Bom Deus. Eu lhes direi: venham pobres animais queridos, que com um brusco movimento de orelhas se livram das moscas, dos golpes e das abelhas. Que eu apareça diante de Vós entre esses animais que amo tanto porque baixam a cabeça docemente e juntam as pequenas patas de uma maneira tão gentil que dá pena. Meu Deus, fazei com que eu chegue até Vós com esses jumentos. Fazei com que os anjos nos conduzam em paz pelos riachos ensombreados em cujas margens tremulam cerejeiras, e fazei com que nessa morada das almas, sob vossos divinos olhos, eu me assemelhe aos jumentos, cuja humildade e doce pobreza se refletirão na limpidez do amor eterno.
Certamente, com o passar do tempo e dos milênios (ele está entre nós há 5 mil anos) o jumento começa a entender que as coisas não vão muito bem para ele, mas não se revolta. Sua tática é sutil. O cérebro humano não a alcança. O jumento é submisso e glorioso ao mesmo tempo, resignado e irredutível, escravo e soberano, vencido e vencedor. Ele dá cambalhotas nas primaveras onde não já não estamos. Encontrou obstáculos e os contornou. Ele se salvou do tempo. Sobre seus belos cascos, trota nas pradarias onde as horas não soam.
Se o espancamos, ele nos olha com um olhar incrédulo e belo. Não fica com raiva. Tem pena de nós. Não nos culpa, só nos observa. Ele gostaria de nos ajudar a ser menos vingativos. E nos consola de nossas maldades. "Não se preocupe", parece dizer, arreganhando os beiços, "não é sua culpa. Você é assim, mas isso vai passar. É um mau momento, uma má eternidade. Depois, você vai ver, tudo será melhor."
Durante a 1ª Guerra Mundial, em Verdun, inúmeros soldados foram mortos e enterrados. Inúmeros jumentos também foram mortos, mas não foram enterrados. Há alguns anos, um pintor de Auvergne (região montanhosa no centro da França onde há muitos jumentos), Raymond Boissy, manifestou sua indignação. E propôs que um monumento fosse erigido aos mortos, um monumento ao Jumento Desconhecido (como há em Paris o Túmulo do Soldado Desconhecido).
É uma ótima ideia. Aqueles jumentos, o Exército francês os fez vir de barcos do Magreb, do Marrocos, porque os jumentos dessa região são pequenos, dóceis e muito fortes. Eram capazes de transportar 150 quilos de obuses. Rastejavam nas trincheiras levando munição para os soldados que se encontravam em casamatas e fortins. Claro, os alemães descobriram e seus artilheiros bombardearam os ventres dos pequenos jumentos marroquinos. Foi uma carnificina. Aqueles que sobreviveram e retornaram às linhas francesas, contentes de reencontrar seus senhores, estavam feridos. Então foram abatidos. 150 mil jumentos foram mortos em Verdun.
O solo de Verdun está repleto de valas comuns de jumentos. Ali eram jogados os cadáveres desses animais tão gentis, suas pequenas coxas quebradas, as pequenas patas rígidas, seus olhos, tão belos, tão indulgentes, tão resignados. Como não chorar? / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

10 de junho de 2012, O Estado de São Paulo