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20 fevereiro 2014

Em defesa do melodrama


Todos os grandes filmes são melodramáticos! Há um preconceito arraigado contra o melodrama por parte das mentes ditas intelectualizadas que precisa ser desmontado, desfeito. Hitchcock, em Marnie, elevou o melodrama à condição de obra de arte. Há momentos de melodrama nas cenas entre o protagonista e Susan Alexander em Cidadão Kane. Os importantes filmes de Vicente Minnelli, o estilista mais sofisticado do cinema, são melodramas, como Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953), Deus sabe quanto amei (Some came running, 1958), Adeus às ilusões (The sandpiper, 1964), entre muitos outros. Casablanca e ...E o vento levou são momentos sublimes de grande melodrama. Infeliz do filme que não tenha inserido nele elementos melodramáticos! Talvez o cinema brasileiro não tenha se firmado como indústria por causa da virose cinemanovista, que tinha preconceito com o melodrama.

E as novelas atuais, se são melodramáticas, estão longe, entretanto, do dramalhão. Aliás, a partir de Beto Rockfeller (1969), a dramaturgia nacional televisiva se afastou do dramalhão, cujo modelo vinha do México. Ainda hoje este país conserva elementos do dramalhão como se pode ver nas novelas importadas e dubladas pela SBT. Um bom realizador sempre evita cair no dramalhão, levando o melodrama para o patético ou o trágico ou, simplesmente, deixando-o apenas no tom exato. Douglas Sirk fez excelentes melodramas: Palavras ao vento (Written on the wind), Tudo que o céu permite, Imitação da vida, etc. E se, em Hithcock, a quintessência melodramática se encontra em Marnie, quando encontra o sublime, em quase todos os seus filmes sempre há uma, por assim dizer, história de amor com elementos melodramáticos. Há algo mais belo do que a poética de um Jacques Demy? Que, em Os guarda-chuvas do amor alcança a sublimidade, fugindo do dramalhão, para se situar na tragédia do amor e da existência?

Como definir o melodrama: Drama melado? Drama açucarado? E o que é o drama? Todo filme é um drama, considerando que drama é ação, cadeia de acontecimentos. Assim, até a comédia é um drama. Filmes de minha preferência, como Férias de amor (Picnic, 1955), de Joshua Logan, com William Holden e Kim Novak, são melodramas. Adoro, portanto, um melodrama. Já o clichê se instaura quando uma certa mesmice se repete sem haver densidade poética, mas, apenas, repetição de ganchos narrativos. Até mesmo um filme inovador, que traumatizou toda uma geração, como Hiroshima, mon amour, é, também, um melodrama.

Se o cinema de Godard, entre outros, revolucionou a linguagem do cinema na década de 60, também, por um lado, foi contraproducente, pois implantou na mentalidade cinefílica e atávica a mania da desconstrução, que se espraia, como metástase, até mesmos nos estudos acadêmicos da área das humanidades. Hitchccok já dizia que com o melodrama é mais fácil se alcançar o sublime. Sublime que ele alcançou com o citado Marnie e que Chaplin conseguiu chegar em Luzes da cidade (City light, 1930), um trágico-sublime, poderia dizer.

E Crepúsculo dos deuses (Sunset boulevard, 1950), de Billy Wilder, por acaso não contém uma carga melodramática respeitável? Usa-se, no entanto, a expressão melodrama no sentido pejorativo quando em relação ao cinema e ao teatro ou, mesmo, à literatura.  As grandes narrativas do cinema são sempre de estrutura simples, linear ou binária ou, ainda, circular. Há, por outro lado, grandes filmes que fogem a este esquema: Morangos silvestres (Smultronstallet, 1957), de Ingmar Bergman, Oito e meio (Otto e mezzo, 1964), de Federico Fellini, entre muitas outros. O importante é o talento do realizador, sua capacidade de pensar cinematograficamente. Assim como faz Clint Eastwood em seus filmes.

O preconceito ao melodrama se acentua nos últimos decênios com a falência múltipla das aspirações idealistas e o estabelecimento de uma estética baseada no realismo tout court ou, mesmo, no naturalismo. O público, diante de uma realidade cada vez mais pragmática e consumista, não aceita mais o intimismo, os filmes que idealizavam e estilizavam a vida e os homens. Um filme é bom, para a maioria dos pseudo-cinéfilos que frequenta as salas alternativas, quando diz coisas nobres e belas, desconhecendo eles que um filme é bom quando sabe dizer e toda a questão se encontra no como e não na coisa em si. A natureza nobre de um tema condiciona o espectador a achar que determinada obra cinematográfica é boa. Ledo e ivo engano!

A nova geração ri de certas sequências com alguma carga melodramática. Assim, quando James Stewart e Kim Novak, frentes ao mar, que bate, furioso, nos rochedos, se beijam apaixonadamente com a ênfase sendo dada pela partitura de Bernard Herrmann, o público ri numa confissão completa de ignorância e ausência de sensibilidade. Em outros casos, como o princípio da autoridade está patente, caso de Casablanca, a geração fim-de-mundo, esta da estética do vídeo-clip, finge gostar para não ficar out.

É todo um processo de reeducação que se tem que colocar aliado às mudanças culturais, ao espírito da época, ou, se se quiser, ao l'esprit du temps.


19 fevereiro 2014

Desimportância dos cineclubes

Mel Ferrer e Ingrid Bergman em As estranhas coisas de Paris (Elena et les homme), de Jean Tenoir
Com o advento do VHS, do laser-disc, do DVD, e, agora, com a possibilidade de se baixar quase tudo da internet, a pergunta que se quer fazer é a seguinte: ainda haveria condições de ser ter um clube de cinema nos moldes do de Walter da Silveira nas décadas de 50 e 60?

Naquela época, difícil era ver certos filmes, que ficavam restritos às cinematecas. O mercado exibidor se restringia aos lançamentos e as constantes reprises de filmes de sucesso. Como, no período que antecedeu o surgimento dos novos suportes, assistir aos filmes neo-realistas, aos do expressionismo alemão, às obras mais independentes de cinematografias desconhecidas, às obras do realismo poético francês, à vanguarda da estética da arte muda? O único jeito era a viagem e, assim mesmo, o mais certo seria ao exterior, às cinematecas de Nova York ou a de Paris, além de outras importantes da Europa. Aqui no Brasil, existiam, mas ainda incipientes, as cinematecas do Rio e de São Paulo (esta com um acervo mais versátil). Salvador não tinha nenhuma possibilidade de constituir uma cinemateca.

A importância de Walter da Silveira (que boa parte da nova geração não sabe de quem se trata, apesar de nome de sala alternativa nos Barris) foi justamente a de, com a fundação do Clube de Cinema da Bahia, trazer filmes especiais, essenciais na evolução da linguagem e da estética cinematográficas. Walter da Silveira fez ver, aos baianos de província (mas uma província muito agradável bem diferente da cidade engarrafada de hoje), que o cinema, além de um bom divertimento, era, também, a expressão de uma arte. O próprio Glauber Rocha, quando de sua morte, em novembro de 1970, em artigo para o Jornal da Bahia, confessa que o ensaísta fora seu grande mestre, que aprendeu a ver cinema através das palavras de Walter da Silveira. E conta, num artigo, o esporo que este lhe deu, quando, numa exibição de "O encouraçado Potemkin", numa sessão matutina no cinema Liceu, conversava durante a exibição com um amigo. Walter, percebendo o "arruído", deu-lhe tremendo esporo, segundo palavras do próprio Glauber que, conta, nunca mais falou durante a projeção de um filme, tal a indignação do mestre diante do jovem tagarela.

Atualmente, no entanto, com a facilidade existente, pode-se ver um raro filme antigo, a exemplo de "Ordet" (1941), de Carl Theodor Dreyer, famoso cineasta dinamarquês, em boa cópia em DVD. Este filme, há poucos anos, somente seria possível ser contemplado na cinemateca de Henry Langlois, em Paris. Outro dia, vim saber, que um conhecido baixou da internet, em cópia decente e legendada, 
As estranhas coisas de Paris (Elena et les hommes, 1956), com a bela Ingrid Bergman e Jean Marais, filme difícil de se ver (nunca passa na televisão e não tem no disquinho).

Há dois anos, tentou-se implantar um cineclube na Faculdade de Comunicação. Com excelente programação. Retrospectivas de Kubrick, Buñuel, etc. Mas os alunos antes de entrar perguntavam se os filmes estavam disponíveis em DVD. E davam meia-volta, volver.

Já se contou aqui que este colunista, uma vez no Rio, ao saber da exibição de Ladrões de bicicleta na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, em única sessão, ainda que mal tivesse chegado à cidade, correu para lá. Finda a exibição, chuva torrencial fê-lo ficar encharcado e voltar a pé para o hotel (a cidade engarrafada, tudo parado). Nos tempos atuais, faria o mesmo sacrifício? Claro que não, pois o DVD de Ladri di biciclette está disponível não somente para ser adquirido, mas também nas melhores locadoras da cidade.

Qual a função do cineclubismo nos dias atuais? Walter da Silveira, por exemplo, sobre ser um dos maiores ensaístas de cinema do Brasil (na Bahia ninguém nunca lhe chegou perto), era um homem, verdade se diga, à antiga, de tom grave, circunspeto, com uma gestualística bem diversa da juventude atual e, mesmo, dos menos jovens que atualmente constituem o meio circundante e intelectual, universitário. A figura de Walter faz lembrar aqueles antigos mestres universitários, principalmente os professores da Faculdade de Direito (no acento vocal, nas pausas, na maneira de expor o assunto, um "magister dixit").

A importância do cinema, antes tido como mero entretenimento, foi reconhecida pelas universidades, que incorporaram o seu ensino na maioria delas espalhadas pelo mundo. Porque se constatou que o imaginário do homem do século XX foi completamente contaminado pelas imagens em movimento, que interferiram no seu comportamento, na sua maneira de ser, nos hábitos e costumes. O cinema tem uma força de convencimento que ultrapassa as demais artes. Não é exagero se dizer que muitas pessoas se formaram através da visão de filmes. O cineclubismo, para isso, exerceu, sem dúvida, forte influência. Mas a indústria cultural hollywoodiano se, antes, tinha uma produção média notável, atualmente se restringe, honradas as exceções de praxe, aos efeitos especiais e, agora, à Terceira Dimensão como o “Avatar” do futuro do cinema, perdendo este o seu humanismo e a possibilidade de veículo de expressão, de idéias, de visão de mundo.

Mas acontece que o mundo mudou e, com ele, a cultura. Houve um papel importantíssimo exercido por Walter da Silveira. Os realizadores que se aventuram na captação das imagens em movimento são contemporâneos de um cinema digital. Filmes são feitos até pelos telefones celulares. O Clube de Cinema da Bahia, portanto, não poderia existir - nem teria razão de ser - nesta chamada contemporaneidade. A própria psicologia de recepção da obra cinematográfica mudou. Bem, são reflexões ao acaso.

18 fevereiro 2014

Dos cinemas de antigamente

Para quem viveu a época dos chamados cinemas de rua, quando as imagens em movimento eram restritas às salas escuras mediante o pagamento de um ingresso, havia uma atmosfera especial em cada um deles, um estilo arquitetônico particular, que gerava climas diversos. Há um livro, Um cinema chamado saudade, de Geraldo Leal e Luis Leal Filho, que mostra a quantidade de salas que Salvador tinha em relação a casas exibidoras atuais. Documento importante, um registro dos mais valiosos, Um cinema chamado saudade encontra-se, infelizmente, completamente esgotado. Verdadeira história dos cinemas na Bahia (o cinema, bem entendido, como casa de espetáculo), a publicação, dos autores, teve, porém, circulação restrita. Não seria o caso de as instituições que se dizem culturais tentar republicá-lo em uma nova edição? A Secretaria de Cultura deveria estar atenta para isso.

Mas, o fito dessa coluna é fazer um pequeno e breve inventário da memória dos antigos cinemas baianos naquilo que ficou nos arcanos de minha memória. Pequenas coisas, mas que se fixaram na minha imaginação de cinéfilo impertinente e assíduo. Como dizia Jack, o Estripador, vamos por partes:

A corrente do cinema Liceu. Nos últimos quinze minutos da sessão de um filme, era colocada uma corrente na descida das escadas que dava para a sala de exibição. Porque geralmente chegava mais cedo, ficava sentado na excelente sala de espera, aguardando o início da projeção e ficava a olhar para aquela corrente. Que era aberta somente quando, terminada a sessão anterior, já prestes a começar a seguinte. As pessoas, apinhadas na sala, de repente, aberta a corrente, desciam escadas abaixo para pegar uma poltrona mais em conta

A cortina sebosa do cinema Aliança. Situado na Baixa dos Sapateiros, o citado cinema era um autêntico 'poeira': cadeiras de madeira, ar renovado que proporcionava intenso calor, cheiro de urina insuportável, mas que, na ânsia de ver filmes, os cinéfilos aguentavam para sentir a magia dos espetáculos cinematográficos. Mas no Aliança havia, para se entrar, que se adentrar por uma cortina extremamente sebosa, que deixava na roupa o seu odor repugnante. Havia de se ter de driblar a cortina para não se 'contaminar' com o seu contato. Mas era tarefa impossível. Por mais que se tentasse, sempre ficava na roupa do cinéfilo, impregnado, o cheiro de suas sujeiras. Sacrifício monumental.

3.)Em torno de 1964, o cinema Pax, também situado na Baixa dos Sapateiros, estava lotado numa sessão dominical pela tarde. Era perto das festividades do São João. O Pax lotado significava que havia gente saindo pelo ladrão, e o cinema era enorme: uma platéia e dois balcões. De repente, uma casa de venda de fogos explodiu nas circunvizinhanças da sala exibidora e os espectadores pensaram que era o Pax que estava a explodir. Pânico geral. Algumas pessoas morreram pisoteadas. Uma verdadeira tragédia. Semana depois, indo ao Pax, vi manchas de sangue no chão de ladrilhos. Nesta sala, entrava-se 'pela tela' ao contrário dos outros cinemas. Fiquei, por um bom tempo, com 'medo' do Pax, ainda que continuasse a frequentá-lo todas as semanas.

4.)Salvador era uma beleza: calma e provinciana. Andava-se muito e se chamava o andar de 'paletar'. Frequentei muito os cinemas Brasil e São Jorge, que eram situados no Bairro da Liberdade (a famosa rua Lima e Silva). Cinemas de segunda classe, mas tinham programas duplos, quando não triplos, e o ingresso era baratíssimo. O povo, naquela época, ia muito ao cinema, ao contrário dos dias atuais quando ir ao cinema se constitui um lazer da elite, considerando os preços astronômicos. Um ingresso para uma sala dos complexos (Multiplex ou Cinemark) é mais caro do que o ingresso para o melhor cinema de Nova York.

5.)Certa ocasião, no São Jorge, o exibidor resolveu passar filmes pornográficos na sessão de meia-noite. Depois de duas semanas, a polícia promoveu uma intervenção, proibindo as exibições. Pouco tempo passou e Walter da Silveira, do Clube de Cinema da Bahia, combinou com o exibidor Francisco Pithon a realização de sessões à meia-noite de filmes de arte. As pessoas, ainda surpreendidas com o noticiário em torno das sessões do São Jorge, pensaram que os filmes programados fossem pornográficos. Mas qual nada! O túmulo do sol, película de origem japonesa, poética, nada tinha de pornográfica. Muito pelo contrário. Walter surpreendeu-se pelas filas que se formavam desde as 23 horas, pois nunca pensaria num público tão imenso para ver filmes ‘de arte’. Cinema lotado, começada a sessão, mal tinha passado meia hora, quando os espectadores começaram a perceber que não se tratava da ‘putaria’ querida. E quebraram todas as cadeiras do Guarany. Pithon encerrou as exibições. Foi a única experiência nesse sentido.

6.) Anos se passaram e a sessão de meia-noite foi instituída com êxito no cinema Bahia, à Rua Carlos Gomes. Os filmes programados eram os que seriam lançados semanas depois. Lembro-me de ter assistido Morte em Veneza, de Luchino Visconti, numa dessas sessões. Depois se tinha o hábito de ir ao Rose’s, bem em frente à sala exibidora, que inaugurava na Bahia a venda de cheesburgueres. Quem se lembra do Rose’s da Rua Carlos Gomes?


16 fevereiro 2014

Da critica cinematográfica





A função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o leem, o impacto da obra de arte.”
ANDRÉ BAZIN


Creio que a tarefa dos críticos especializados em cinema – não considerando, aqui, os comentaristas meros aficionados – é a de atuar como mediadores entre a obra cinematográfica e o espectador comum, oferecendo um modelo de leitura da primeira e sublinhando os eventuais valores poéticos nela presentes. Refiro-me aos críticos que atuam em jornais e revistas ou que escrevem em suplementos culturais cujo público alvo não se restringe ao meio acadêmico. A função daqueles que escrevem sobre cinema é ajudar – e não complicar – ao leitor a percorrer o itinerário do filme com um mínimo de conhecimento lingüístico – de modo a permitir que se reconheça, durante o trajeto, aquilo que é importante daquilo que não o é. Uma função, portanto, que, mesmo antes de se reportar à apreciação estética da obra considerada no seu conjunto, incide sobre a sua sucessiva racionalização, quer dizer, a tradução em termos lógico-discursivos do sentido poético que ela exprime através dos procedimentos de significação que lhe são próprios.

(Percorro um itinerário de colunista no jornal Tribuna da Bahia desde agosto de 1974. Trinta e seis anos que se completam no ano em curso. Neste período, tenho tentado escrever para o leitor, mas sempre procurando salientar que o filme somente pode se consolidar como obra expressiva, se houver, por parte do realizador, um ato criador na manipulação dos elementos da linguagem cinematográfica. De boas intenções, de boas idéias, o inferno está cheio. Um bom roteiro somente pode ser transformado em filme dotado de qualidades específicas, quando existe o talento natural do cineasta na manipulação do processo sintático da lingüística fílmica. Se a crítica do passado sempre estava a procurar o  elo semântico da obra cinematográfica, a crítica, a partir dos anos 60, compreendendo, afinal, que o cinema é uma linguagem, concentrou-se na procura do elo sintático, mas este sempre associado ao elo semântico, pois os dois elos são indissociáveis.

Sempre que não se queira ficar pelo desempenho de uma mera atividade de informação cronística – como sói acontecer no jornalismo cultural baiano, o crítico de cinema deve valorizar a obra examinada, fazendo emergir, dela, as suas valências ocultas e interpretando-as em ligação com o macro-contexto cultural em que a primeira vê a luz. Na condição, naturalmente, de que tal ação seja desempenhada com discrição, a fim de garantir o respeito pelo texto fílmico contra o perigo de leituras forçadas e de distorções generalizadas – muito comum, aliás, nos neófitos que se arvoram em críticos nesta província da Bahia. De resto, a própria polivalência que caracteriza o filme como sistema orgânico de sinais susceptível de múltiplas leituras, favorece a pluralidade interpretativa. Portanto, se o espectador normal se limita geralmente a ver um filme, o crítico lê-o por ofício e ajuda o primeiro a fazer outro tanto.

Porém, nesta sua função de intérprete e guia, o crítico de cinema deve contar com uma dificuldade resultante da natureza não-homogênea da linguagem escrita por ele utilizada relativamente à linguagem visual empregada pelo filme. Dificuldade esta que o intérprete dos textos literários não conhece, podendo entremear tranqüilamente o seu discurso crítico com o do texto analisado em virtude da identidade lingüística que preside a ambas as manifestações expressivas. Isto se mostra tanto mais intrigante quanto mais presente se tiver o caráter narrativo do filme, caráter assente nas outras artes visuais que também têm as suas práticas críticas correspondentes, não obstante serem igualmente irredutíveis às formas da linguagem verbal. A complicar ainda mais o caso está a natureza de linguagem sem língua que é típica do filme. De fato, a partir do momento em que não existe um sistema abstrato pré-existente ao filme, mas, apenas, obras fílmicas isoladas, não parece possível – como acontece, pelo contrário, na análise dos textos literários – estimar o eventual afastamento,  entre a parole-film e a langue-cinema, afastamento do qual derivaria a poeticidade do texto fílmico. Trocando em miúdos: é impossível distinguir entre um uso banal ou cotidiano da linguagem cinematográfica e uma sua utilização que obedeça a propósitos artísticos, e isto pela simples razão de que, no filme, o plano de  denotação coexiste sempre com o da conotação e que, por conseguinte, não existe um grau zero da escrita fílmica  a partir do qual se possam avaliar os eventuais afastamentos efetuados em sentido expressivo pela linguagem examinada.

Ainda que sem emitir, mas, nas entrelinhas, já emitindo, juízos valorativos, não acredito numa  cientificização da crítica cinematográfica, quando o analista mais se assemelha a um cientista a procurar pacientemente significados na obra cinematográfica e, com isso, destruindo não apenas a emoção do filme – essencial em toda obra que se queira de arte – como também o prazer de ler o resultado da investigação. Sigo, desde sempre, as palavras do eminente jurista Vicente Rao, quando escreveu no volume 60 de seus comentários ao Código de Processo Civil: “A clareza tem o direito de fazer parecer superficial, mas que não se infira desse aviso a conveniência de ser obscuro para parecer mais profundo.”

O grande crítico José Lino Grünewald gostava de dizer: 'Cinema se aprende indo ao cinema'. Há de se adquirir o hábito de ver filmes, assim como se adquire o hábito de ler. É um processo que leva tempo o conhecimento cinematográfico. Existe, no curso universitário, uma disciplina chamada Crítica Cinematográfica, destinada aos alunos de Comunicação Social, que tem como objetivo precípuo a ilustração sobre o que isto significa e, também, para dar a conhecer os textos dos grandes críticos e pensadores da arte do filme. Mas, interessante observar, muitos alunos pensam que, num semestre, podem se tornar, matriculando-se, críticos de cinema. Ledo e ivo engano. A disciplina é útil para aqueles que realmente se interessam, como um primeiro passo, um empurrão, no sentido do despertar os vocacionados. A necessidade de se ter a habitualidade da contemplação fílmica é fundamental e para se conhecer cinema é preciso ver filmes e filmes. O que leva tempo. E ver com atenção, procurando estar sempre antenado com leituras paralelas de críticos qualificados - no Brasil, entre outros, e correndo o risco de omissão, considero Inácio Araújo, da Folha de São Paulo, um dos mais lúcidos e conscientes, pois possui, como poucos, sentido aguçado dos procedimentos cinematográficos, do  timing e, principalmente, da natureza específica da arte cinematográfica. Poderia dizer que Luiz Carlos Merten, este do Estadão, também é um excelente crítico. E na área propriamente dita da Teoria Cinematográfica o grande mestre é Ismail Xavier, ensaísta de erudição - seu livro O discurso cinematográfico é exemplar raro e quase ninguém no Brasil pensou a natureza do cinema como ele, ainda que se possa discordar de seus pontos de vista. Outro teórico que vale ressaltar e Fernão Ramos. Além dos críticos que surgiram com o advento da internet (Ruy Gardnier, Sérgio Alpendre, Marcelo Miranda, entre outros).

Em suma, deve-se deixar à viagem fílmica toda a sua componente de prazer se quisermos que não se transforme num calvário em direção à crucificação final da fábula e do respectivo discurso. O academismo e o preconceito são tão mortais para o cinema como para a vida.