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01 junho 2012

A marca da maldade

Orson Welles - numa interpretação inexcedível, obeso, desfigurado, para dar a impressão da configuração da maldade - é Hank Quinlan, policial de uma cidade da fronteira entre o México e os Estados Unidos, que tem o costume de fabricar as provas com as quais acusa os supostos culpados perseguidos. Um colega mexicano, Vargas (Charlton Heston, que mostra, aqui, que não é apenas ator de épicos hollywoodianos, mas um ator de amplos recursos), que acaba de se casar com uma jovem americana, Suzie (Janet Leigh) vem a descobrir os arranjos de Quinlan e ameaça desmascará-lo. Com a ajuda de Grandi (Akim Tamiroff), um traficante local que serve à polícia com informações, Quinlan faz seqüestrar e drogar Suzie, matando logo em seguida seu cúmplice no quarto do hotel onde ela se encontra trancafiada. Uma sucessão de acontecimentos proporciona a um fiel subordinado de Quinlan, Menzies (Joseph Callea) a constatação de seu caráter e acaba ajudando Vargas no total desmascaramento de Quinlan.

Touch of evil (o toque do mal, se traduzido ipsis litteris) marca o retorno de Orson Welles a Hollywood após uma ausência de dez anos. Os constantes estouros nos orçamentos, o seu comportamento muito além dos parâmetros convencionais, e as ameaças de interferência dos estúdios em seus trabalhos, fizeram-no se afastar da meca do cinema. Na década que fica fora (1948/1958) realiza, porém, na Europa, alguns filmes, a exemplo de Othello (personalíssima versão do texto célebre de William Shakespeare, que leva dois anos para ser realizada: 49/51), e Grilhões do passado (Mr. Arkadin ou Confidential report, 1955).

A marca da maldade é montado, na sua versão final, à revelia de seu autor. Há alguns anos, encontradas as anotações de Welles sobre como proceder à montagem do filme, Touch of evil é remontado tal qual a concepção do realizador de Cidadão Kane (as duas versões são exibidas, há cinco anos, no Telecine, quando este ainda é Classic e não Cult, com um documentário especial sobre as diferenças entre as duas cópias).

Apesar de sua base literária como ponto de partida do roteiro, uma sub-literatura de Whit Masterson (aliás, Hitchcock sempre diz que nunca gosta de fazer adaptações de grandes livros, a preferir a sub-literatura encontradiça em bancas de jornal, as chamadas pulp-fictions, mas a sua extração é sempre de um procedimento cinematográfico exemplar e reveladora de uma escrita que estabelece uma mise-en-scène de puro cinema, de pura estesia), A marca da maldade é uma de suas obras mais interessantes e reveladoras. Alguns historiadores, inclusive, estão a considerá-la como mais importante ainda do que Citizen Kane (o que se nos afigura um absurdo, ainda que Touch of evil seja um filme excepcional, e grandioso, e impactante, e genial).

A figura de Quinlan representa à perfeição a postura wellesiana ante a sociedade em que vive. Não que o autor se identifique com o personagem. É que, através de sua monstruosa personalidade, submete, com ela, a crítica ao mundo que o rodeia e no qual certos valores deixam de ter vigência. Em torno da figura de Quinlan, evolui uma série de personagens que, na verdade, não são mais que elementos de uma antítese mediante a qual Welles pretende chegar a uma visão dialética. E quem faz o resumo desta visão é a cigana interpretada por Marlene Dietrich no final do filme numa espécie de epitáfio cínico e emocionado.

O fabuloso plano-seqüência inicial, longo e complicado, fica definitivamente nos anais da história do cinema mundial. E dá a tônica estilística de A marca da maldade, uma das mais barrocas de seu autor (a influência do expressionismo alemão, com o contraste das sombras e das luzes, é impressionante). Welles utiliza os inquietantes elementos de uma trama enviezada e a particular estranheza dos cenários para compor uma obra em que tudo está deformado por uma ótica com frequência aberrante.

Com a oportunidade de comparar as duas versões de A marca da maldade (a montada à revelia e a montada segundo as anotações do diretor), vê-se que o plano-seqüência do início, na versão oficial, é desfigurado com a colocação dos letreiros de apresentação, a ofuscar a visão das pessoas, do movimento, e dos objetos dentro do enquadramento. Welles, como de hábito, na sua concepção original, elabora o plano-seqüência absolutamente desprovido de qualquer material de procedência que não a da imagem.

A seqüência de Janet Leigh no motel parece ter inspirado Alfred Hitchcock a convidar a atriz para o elenco de Psicose (Psycho). Não resta dúvida de que tudo indica que a atmosfera reinante no motel wellesiano de A marca da maldade tem tudo a ver com o motel hitchcockiano, com Norman Bates à la carte, de Psycho e, inclusive, a distância entre os dois filmes é curta: dois anos. O velho Hitch há, também, de sofrer a angústia da influência de Harold Bloom.

Muitos críticos e historiadores, a exemplo de Peter Bognadovich, acreditam que A marca da maldade possui uma chegada de Welles a este momento de sua vida com o mesmo cansaço que Quinlan experimenta em relação a Kane, cansaço que emerge dos anos transcorridos, da reflexão, da angústia e da desesperança.

30 maio 2012

"Os guarda-chuvas do amor", de Jacques Demy



O autor dessa proeza original - e única na história do cinema, o francês Jacques Demy, pertence à Nouvelle Vague mas pode ser considerado um cineasta atípico. Dá início a sua carreira com um curta, Le Sabotier de Val du Loire, em 1956, ao que se seguem outros três em anos sucessivos, entre eles, Le Bel Indiferent (O Belo Indiferente), inspirado no texto aclamado de Jean Cocteau. Em pleno auge do movimento - do qual participa com filmes e a amizade de Truffaut, Rohmer, Chabrol..., dirige o seu primeiro longa metragem, Lola, A Flor Proibida (Lola), revelando-se um dos talentos mais sugestivos do movimento.

Lola, iluminado pelo artista da luz Raoul Coutard - um dos principais diretores de fotografia da Nouvelle Vague, já anuncia, de certa forma, Os Guarda-Chuvas do Amor, pois todo ele é conduzido em ritmo de balé, com amor e humor, traduzindo com extremo lirismo as paisagens de Nantes. Georges Sadoul, historiador francês, enquadra Lola numa espécie de "neo-realismo poético", aproximando-o de As Damas do Bois de Bologne, do jansenista Robert Bresson. Para uma introdução na poética de Les Parapluies... é bom que se veja um pouco desta Lola, cujo personagem (Anouk Aimée), dançarina de cabaré em Nantes, cortejada sempre por um amigo de infância (Marc Michel), reencontra o seu amor perdido com o qual, há alguns anos, tivera um filho, e, neste reencontro, ela se casa com ele. Uma característica de quase todos os filmes demynianos: o encontro ra, dizem suas falas cantando ao ritmo dos arranjos belíssimos de Michel Legrand. Pode-se, no caso de Os Guarda-Chuvas do Amor, falar em co-autoria entre Demy e Legrand, tal a conjunção perfeita entre musicalidade e ação dramática. Daí se dizer que Les Parapluies de Cherbourg é uma película que se estabelece como mise-en-musique. Assim como em outra obra excepcional - e pouco vista e apreciada - que é Duas Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort, 1966), com Catherine Deneuve e Françoise Dorleac - sua irmã que seria vítima, logo após a conclusão do filme, de trágico acidente. e o desencontro permeado pelo acaso.

Catherine Deneuve em princípio de carreira - já tinha trabalhado com Roger Vadim antes de Demy - é a terna Geneviève que está noiva de Guy (Nino Castelnuovo), mas este, de repente, é convocado para a guerra da Argélia. Esperando o noivo voltar, ela se vê obrigada a confessar à mãe (Anne Vernon) que está grávida de Guy. O tempo passa. A mãe, desesperada, obriga a filha a se casar com um pretendente, Roland Cassard (Marc Michel), rico proprietário de uma loja de jóias. Ela, conformada, aceita. O tempo passa. Guy volta da guerra, ferido, procura Geneviève mas não a encontra. Sua tia Elisa está morta e, para não ficar sozinho, busca consolo em Madeleine (Ellen Farmer), uma mulher que cuidava de Elisa quando doente e que sempre o amou em silêncio.O tempo passa. Guy, já casado com Madeleine, abre um posto de gasolina na periferia de Cherbourg. Numa noite de Natal, Geneviève aparece, rica e charmosa, num reluzente carro de luxo, para colocar gasolina. Guy a vê e ambos tentam um diálogo mas nada mais têm a dizer.

Obra-prima, que reflete sobre a memória, a recordação, a nostalgia e a fugacidade do amor, Les Parapluies de Cherbourg, Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1964, derrotando, inclusive, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, tem uma fábula que, à primeira vista e se exposta pela narrativa oral, pode parecer uma história destinada às revistas sentimentais. Jacques Demy, no entanto, com sua varinha mágica, com sua mise-en-scène original, transforma-a numa espécie de conto poético musicado que é experiência que transcende o musical cinematográfico clássico americano.

Os personagens, como numa ópera - mas o filme não é uma ópera, dizem suas falas cantando ao ritmo dos arranjos belíssimos de Michel Legrand. Pode-se, no caso de Os Guarda-Chuvas do Amor, falar em co-autoria entre Demy e Legrand, tal a conjunção perfeita entre musicalidade e ação dramática. Daí se dizer que Les Parapluies de Cherbourg é uma película que se estabelece como mise-en-musique. Assim como em outra obra excepcional - e pouco vista e apreciada - que é Duas Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort, 1966), com Catherine Deneuve e Françoise Dorleac - sua irmã que seria vítima, logo após a conclusão do filme, de trágico acidente.

O que torna Os Guarda-Chuvas do Amor uma obra de rara transcendência se encontra numa conjunção de fatores.Em primeiro lugar, a concepção da mise-en-scène de Demy, mas outros elementos ajudam a potencializar o encanto desse filme inesquecível: a deslumbrante fotografia de um artista que é Jean Rabier, que usa, aqui, a iluminação em função do tecido dramatúrgico; a cenografia de Bernard Evein, que utiliza fundos de papel pintado que estabelecem sutis acordes com os estados de ânimo dos personagens; e, claro, os diálogos todos cantados segundo as melodias do maestro Michel Legrand.

27 maio 2012

"Os boas-vidas", de Federico Fellini


A visão de Abismo de um Sonho (Lo Sceicco Bianco, 1952), de Federico Fellini, filme inédito no Brasil desde o seu lançamento, foi importante para se ter uma idéia de como um gênio cinematográfico já expõe suas coordenadas temáticas e estilísticas desde a sua primeira obra. Fellini, antes de Lo Sceicco Bianco já tinha compartilhado a direção em Mulheres e Luzes (Luci de Varietà, 1950), com Alberto Lattuada. Abismo de um Sonho é, porém, o seu filme inaugural como autor integral e completo. O começo de uma carreira extraordinária que fez de Fellini um dos grandes artistas do século XX. O seu filme seguinte, I Vitelloni (Os Boas-Vidas, 1953) pertence, hoje, a qualquer antologia de cinema. É obra surpreendente. Considerando que a obra-prima de um cineasta só pode ser uma, Fellini rasgou o conceito de obra-prima, pois, extrapolando a lógica classificatória, realizou várias.Filme- crônica, I Vitelloni tem como centro a cidade natal do cineasta (rodado em Viareggio representa, porém, a eterna Rimini, que seria, décadas mais tarde, e de maneira estilizada, a inspiração de Amarcord). Fellini fala de sua juventude, de seus vizinhos, parentes, em especial dos amigos. Dos cinco boas-vidas, três têm exatamente o mesmo prenome dos atores que os interpretam: Alberto (Sordi), Leopoldo (Trieste) e Ricardo (Fellini, irmão do realizador). Há, portanto, um espírito familiar-comunal, um encanto particular na narração, os indicativos de um cineasta excepcional cuja poesia emerge a cada seqüência (e não se pode esquecer da inebriante música de Nino Rota). O cineasta de La Dolce Vitafaz com que cada personagem se defina, represente uma coisa: Fausto (Franco Fabrizzi), o sedutor barato, Alberto, o bufão da turma, Leopoldo, o intelectual de província, Ricardo, a nulidade personificada. Mas a maneira de Fellini tratá-los foge ao que pode parecer, assim à primeira vista, uma estereotipia acadêmica.

No italiano popular, vitelloni significa literalmente vitelos gordos. No filme, "os boas-vidas" são jovens provincianos, que praticam o ócio e vivem às custas de suas famílias. Segundo o próprio Fellini, estes boas-vidas "chegam à casa dos trinta fazendo discursos e repisando suas piadas de moleques. Brilham durante a estação balneária cuja espera os ocupa durante o resto do ano. São desempregados da burguesia, mas são também amigos a quem eu quero bem. Flaiano, Pinelli (os roteiristas) e eu começamos a conversar sobre isso e, sendo todos ex-vitellonis, cada um tinha milhões de coisas para contar. Após toda uma série de histórias engraçadas, fomos tomados por uma grande melancolia, e fizemos este filme" Alberto é um sentimental, um grande chorão, agarrado à infância, que se emociona muito facilmente e que, na sua ingenuidade provinciana, não percebe as armadilhas do destino. Leopoldo, um escritor frustrado, cuja ambição se situa no âmbito de sua "paróquia" (e, com este, a fantástica seqüência do velho dramaturgo homossexual, um farsante, que o convida a ler seus textos na praia). Moraldo é o mais jovem, que, enfastiado, decide sair, ir para Roma (é nele que Fellini se projeta), e nele se encontra o embrião de um filme não realizado, Moraldo in Città

Sérgio Augusto, num ensaio intitulado Os boêmios errantes de Fellini (publicado no livro que contém o roteiro de I vitelloni) observa com muita precisão: "Como todas as outras confissões, inclusive as mais diluídas (As Noites de Cabíria) e as transferidas (Julieta dos Espíritos), elas correspondem a um período na vida do autor em que a profissão, o trabalho, o fazer-alguma-coisa, possui uma significação primordial. Abismos de um sonho: recordações do Fellini-fumettista; A estrada da vida: lembranças do Fellini-saltimbanco;Trapaça, Cabíria, Dolce vita: memórias e impressões da província e da metrópole pela ótica urbanizada (leia-se romanizada) do Fellini-repórter, com graduações variáveis de envolvimento e distanciamento; Oito e Meio: as angústias do Fellini-cineasta.

As fantasias "postas em ordem" em Vitelloni pertencem a uma fase anterior à do Fellini en route, fora de casa, em transito entre a Romagna ou a Toscana e Roma, do Fellini mais dominado pelo sentimento de vegetar e pela inércia sonolenta de Rimini que pelo esplendor vitalístico dos anos de aprendizado vividos com uma máscara de responsabilidade nas estradas do interior e nas avenidas da capital."Quatro os "capítulos" principais através dos quais o filme se articula. É importante observar que Fellini não segue a lei de progressão dramática da cartilha griffithiana (de David Wark Griffith, o pai da narrativa cinematográfica), parecendo, às vezes, que o filme é meio descosido. Mera impressão. Tem-se, portanto, estes quatro atos, por assim dizer, subdivididos num grande número de situações secundárias, que se concluem no epílogo com a despedida de Moraldo, o mais jovem dos vitelos gordos. Que inventividade cinematográfica, que poesia emana do momento em que Moraldo, da janela do trem em movimento, observa seus amigos adormecidos!

O primeiro capítulo conta o casamento apressado de Fausto, que engravidou Sandra, a irmã de seu amigo Moraldo. O segundo descreve a existência dos outros boas-vidas durante a lua-de-mel de Fausto e Sandra. No terceiro, assiste-se à fracassada e indolente tentativa de Fausto de se dedicar a um trabalho estável, e, finalmente, no quarto, à passagem de uma companhia de revista (com o velho farsante já citado), com mais uma traição de Fausto e uma crise conjugal mais séria."

Os boas-vidas, por sua originalidade de composição e tratamento temático, é quase um filme-arquétipo, que influenciou sobremaneira obras posteriores. Vê-se, nitidamente, rastros de I Vitelloni em Caminhos Perigosos (Mean Streets, 1973), de Martin Scorsese, em Loucuras de Verão (American Graffiti, 1974), de George Lucas, em O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas (St.Elmo fire, 1986), de Joel Schumacher e, principalmente, em I Brasilischi. de Lina Wertemuller, entre muitos outros.