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18 agosto 2007

Telecine ensina como massacrar e matar os filmes


Há exatos 7 anos assinei a Net, televisão a cabo, mais por causa do Telecine Classic, cuja programação via no site da internet, e ficava impressionado com a quantidade de filmes preciosos que se constituiam numa verdadeira cinemateca. Concretizando a minha vontade, considerava que tinha uma cinemateca dentro de casa e via 2 a 3 filmes por dia. Também os outros telecines, ainda que não tão indispensáveis como o Classic, tinham uma programação razoável. O Classic programava mostras de filmes de Ernst Lubitsh, Jean Renoir, Jacques Becker, Jean-Pierre Melville, Jean-Luc Godard, François Truffaut, entre muitos outros grandes cineastas. Lembro-me que um dos primeiros filmes que vi no Classic foi a versão remontada de A marca da maldade (Touch of evil, 1957), segundo as anotações de Orson Welles - o filme na época teve montagem feita pelo estúdio à revelia de seu autor. E passou um documentário que mostra, didaticamente, as diferenças existentes entre a remontada segundo a vontade de Welles e a que foi dada ao público pelo estúdio.
Uma preciosidade como Ladrão de alcova (Strangers on the paraside, 1933), de Lubstich, somente mesmo no Classic. Que deu a conhecer quase dez filmes desse refinado cineasta. Havia um programa comandado por Rubens Ewald Filho, no Classic, e outro por José Wilker, no Première. E muito importante: havia o respeito pelo formato original. Se o filme era feito em cinemascope, a sua exibição garantia a integridade do formato. Alguém me disse na época que achava o Classic muito bom para que pudesse continuar com a mesma qualidade. Mas levou algum tempo dando a sensação de se ter uma cinemateca em casa. Até que sinais de decadência, para agradar o público, para conquistar mais assinantes, foram sendo notados. Alguns filmes em cinemascope se espichavam em tela cheia (full screen) até se tornar regra geral para o desânimo do cinéfilo: todo filme em cinemascope o Telecine deforma, mutila, criminosamente atentando contra a integridade do enquadramento. Se o filme é em cinemascope, por melhor que seja, não o vejo. Queria rever, há um ano, O leão do inverno, com Katherine Hepburn e Peter O'Toole, mas quando vi a deformidade, desliguei a televisão, e tive ímpetos de cancelar a minha assinatura. Recentemente, testei Da terra nasce os homems (The big country), western muito bom de Willyam Wyler, com Gregory Peck, Jean Simmons, Burl Ives. Quando começou, a apresentação dos créditos se deu em cinemascope, o que me animou, mas findos estes, a tela se espicha, deformando tudo. Resultado: mudei de canal. Mas não era assim nos bons tempos do Classic. Vi, por exemplo, Spartacus, de Stanley Kubrick, em cinemascope em 2001 e, ano passado, ele foi reprogramado, mas desta vez em tela cheia. O Classic se transformou no híbrido Cult. E o Happy se transformou no massacrante Pipoca, que se especializou em dublar todos os filmes.

Fiquei surpreso com o Canal Brasil, que exibiu Abril despedaçado, de Walter Salles, em tela cheia. Um crime!

A imagem é de Um corpo que cai, de Hitch, filmado em Vistavision, processo que nunca foi instalado nas salas do Brasil. O que significa dizer que grandes obras primas, com a maior parte dos filmes de Hitch a partir dos anos 50, Rastros de ódio, de John Ford, entre muitos da Paramount, foram exibidos com cortes nos seus enquadramentos. Mas o DVD possibilita a visão completa de um filme em Vistavision.

13 agosto 2007

Esperando Resnais, o último dos moicanos

Há, ainda, vivo, o gênio resnaisiano. E Godard. Há Lars von Trier, Coppola, Almodóvar, quem mais? A rigor, ficam Resnais e Godard. Os outros, e todos os outros, até Clint Eastwood, são menores. O cartaz é do último Resnais que se encontra em exibição no sul e que se aguarda, aqui, nesta híbrida metrópole/província, com a ansiedade natural que se pode dedicar à espera de coisas geniais, considerando que tudo que Resnais faz é coisa de gênio.

Cultura cinematográfica. O que é isso?


O que é, afinal de contas, cultura cinematográfica? Quando se pode dizer que determinada pessoa tem cultura cinematográfica? Apoiando-me numa preciosa definição do falecido crítico literário José Paulo Paes, tradutor e ensaísta de grande renome, vou tentar expandir o seu conceito de cultura para o cinema. Disse ele numa palestra: "Cultura não é acumulação de informação, é assimilação de informação, é tudo aquilo de que a gente se lembra após ter esquecido o que leu. A cultura se revela no modo de falar, de sentar, de comer, de ler um texto, de olhar o mundo. É uma atitude que se aperfeiçoa no contato com a arte. Cultura não é aquilo que entra pelos olhos, é o que modifica o seu olhar. (Veja bem, a observação, aqui: "Cultura é o que modifica o seu olhar"). Não é preciso ler muito, mas ler bem"

Procurando aplicar, ao cinema, o que José Paulo Paes definiu como cultura, podemos dizer que o verdadeiro cinéfilo é aquele que assimila bem os filmes vistos e, por conseguinte, lembra-se de certas seqüências após ter esquecido o que viu. Existem, infelizmente, pessoas que assistem aos filmes como produtos meramente descartáveis, esquecendo-os completamente pouco tempo depois de os ter visto. Ora, pessoas assim não podem ser consideradas cinéfilas, porque, para poder ostentar esta condição, de apreciadoras do cinema, devem, antes de tudo, assimilar bem o que viu para, então, ter, até, modificado o seu olhar pela influência de certas obras fundamentais.

Não seria exagero afirmar que depois que vi Oito e meio (Otto e mezzo), de Federico Fellini, tive, modéstia à parte, meu olhar modificado, e um novo horizonte se despontou, para mim, em relação às potencialidades expressivas do cinema como um autêntico veículo de expressão artística. Oito e meio traumatizou a minha condição de então de cinéfilo en passant. Filmes, porém, como os blockbusters oriundos da indústria cultural desta maldita contemporaneidade, somente entram pelos olhos dos espectadores, entorpecendo-os, brutalizando-os, sem que haja nenhuma modificação de suas visões de mundo (não gosto dessa expressão olhar, que me parece muito academizante - mea culpa se a usei acima). A iniciação de um cinéfilo se faz pelo processo temporal, pois a habitualidade é uma conditio sine qua non da formação de platéias. Já se disse que o excesso de informação pode gerar a desinformação, porque, antes de mais nada, necessária a contemplação, pois é através desta que se penetra na coisa e, é por meio dela que se inicia o processo de conhecimento do sentido do cinema. Um filme como Morangos silvestres (Smultronstallet), de Ingmar Bergman, ou um mais perto, mais recente, como Dogville, de Lars Von Trier, ou, ainda, Sobre meninos e lobos (Mystic river), de Clint Eastwood, para se ficar mais no contemporâneo (e considerando que, desaparecidos os grandes mestres do cinema, é preciso que as pessoas se contentem com os que restam), são obras que oferecem àquele que as aprecia uma nova perspectiva, ainda que pessimista diante do mundo - mas não se pode esquecer que a vida é traiçoeira e cruel.

A cultura cinematográfica é aquela, portanto, que, assimilada, é sempre lembrada mesmo depois que muitos anos tenham se passado daquilo que se viu. São os filmes que ficam na memória, que nos fazem sentir que o cinema é um poderoso instrumento estético, humanista, revelador, etc. Se uma obra cinematográfica é capaz de fazer uma pessoa modificar o seu olhar (vá lá, bata-me um suco de graviola!), esta obra tem um valor que transcende o mero entretenimento, acrescentando-lhe uma visão mais profunda e, com isso, tornando o cinema um veículo produtor de sentidos.

Necessário, no entanto, não confundir alhos com bugalhos, saber apreciar tanto um filme de narrativa clássica inteligente como uma narrativa cujas tomadas, demoradas, procurem uma desvinculação de modelos já gastos. O valor cinematográfico de um filme se encontra na maneira pela qual o tema é tratado, pelo modo pelo qual o realizador manipula os elementos da linguagem cinematográfica em função da explicitação temática. Assim, não é preciso ver muito, mas ver bem, embora o vestibulando a cinéfilo precise ver o maior número de filmes possível para saber, depois, separar o joio do trigo. Quando comecei, há trinta e três anos, três décadas nada prodigiosas, minha carreira de comentarista, via todos os lançamentos da semana. Freqüentava, em tempos pretéritos, as salas de cinemas todos os dias e, num ano, conhecia todos os filmes que fossem lançados no mercado. Hoje, cansado de guerra, sou mais seletivo.

Mas, perdoem-me a modéstia, sou capaz de afirmar que tenho cultura cinematográfica. Há filmes ruins, por outro lado, que ensinam pelos seus erros, pela sua tragédia como possibilidade cinematográfica . Saber ver os erros, ter consciência de um filme enquanto linguagem, que se traduz numa narrativa a conduzir a fábula, sentir os momentos capazes de proporcionar estesia, saber, enfim, admirar um corte de Welles, um contracampo de Jean Renoir, uma panorâmica de John Ford, um travelling de Hitchcock, a desdramatização de um Michelangelo Antonioni e seu domínio da anti-narrativa, o cinema enquanto ensaio proposto por Godard, etc, é saber ver o cinema. O que significa dizer: é saber ter cultura cinematográfica.

O resto é conversa fiada de blogueiro a querer postar.

12 agosto 2007

Introdução ao Cinema (8)


Dando continuidade ao capítulo anterior no qual comecei a falar da montagem. Vista a narrativa, que se veja a intelectual ou ideológica.
02. A Montagem Intelectual ou Ideológica: operação com um objetivo mais ou menos descritivo que consiste em aproximar planos a fim de comunicar um ponto de vista, um sentimento ou um conteúdo ideológico ao espectador. Eisenstein escreveu na justificativa de sua montagem de atrações: "uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade, que nasce, justamente, de sua justaposição (...) A montagem é a arte de exprimir ou dar significado através da relação de dois planos justapostos, de tal forma que esta justaposição dê origem à idéia ou exprima algo que não exista em nenhum dos dois planos separadamente. O conjunto é superior à soma das partes".

Amparado nestes ditos de Eisenstein, há de se ver que, no cinema, como em quase todos os ramos das ciências, quando se reúne elementos (no sentido amplo) para obter um resultado, este é freqüentemente diferente daquele que se esperava: é o fenômeno dito de emergência. Aprende-se, por exemplo, em biologia, que pai e mãe misturam seu patrimônio hereditário para criar uma terceira personagem não pela soma desses dois patrimônios, mas, ao contrário, pela combinação deles em um novo patrimônio inédito. Em química, sabe-se ser possível misturar dois elementos em quaisquer proporções, mas não é possível combiná-los verdadeiramente em um corpo novo se não tem proporções perfeitamente definidas (Lavoisier). Da mesma forma, na montagem de um filme, os planos só podem ser reunidos numa relação harmoniosa.

A montagem ideológica consiste em dar da realidade uma visão reconstruída intelectualmente. É preciso não somente olhar, mas examinar, não somente ver, mas conceber, não somente tomar conhecimento, mas compreender. A montagem é, então, um novo método, descoberto e cultivado pela sétima arte, para precisar e evidenciar todas as ligações, exteriores ou interiores, que existem na realidade dos acontecimentos diversos.

A montagem pode, assim, criar ou evidenciar relações puramente intelectuais, conceituais, de valor simbólico: relações de tempo, de lugar, de causa, e de conseqüência. Pode fazer um paralelo entre operários fuzilados e animais degolados, como, por exemplo, em A Greve (1924), de Eisenstein. As ligações , sutis, podem não atingir o espectador. Eis, aqui, um exemplo da aproximação simbólica por paralelismo entre uma manifestação operária em São Petersburgo e uma delegação de trabalhadores que vai pedir ao seu patrão a assinatura de uma pauta de reivindicações (exemplo extraído do filme Montanhas de ouro, do soviético Serge Youtkévitch).
- os operários diante do patrão
- os manifestantes diante do oficial de polícia
- o patrão com a caneta na mão
- o oficial ergue a mão para dar ordem de atirar
- uma gota de tinta cai na folha de reivindicações
- o oficial abaixa a mão; salva de tiros; um manifestante tomba.

A experiência de Kulechov demonstra o papel criador da montagem: um primeiro plano de Ivan Mosjukine, voluntariamente inexpressivo, era relacionado a um prato de sopa fumegante, um revólver, um caixão de criança e uma cena erótica. Quando se projetava a seqüência diante de espectadores desprevenidos, o rosto de Mosjukine passava a exprimir a fome, o medo, a tristeza ou o desejo. Outras montagens célebres podem ser assimiladas ao efeito Kulechov: a montagem dos três leões de pedra - o primeiro adormecido, o segundo acordado, o terceiro erguido - que, justapostos, formam apenas um, rugindo e revoltado (em O Encouraçado Potemkin, 1925, de Eisenstein); ou ainda a da estátua do czar Alexandre III que, demolida, reconstitui-se, simbolizando assim a reviravolta da situação política (em Outubro).

O que Kulechov entendia por montagem se assemelha à concepção do pioneiro David Wark Griffith, argumentando que a base da arte do filme está na edição (ou montagem) e que um filme se constrói a partir de tiras individuais de celulóide. Pudovkin, outro teórico da escola soviética dos anos 20, pesquisou sobre o significado da combinação de duas tomadas diferentes dentro de um mesmo contexto narrativo. Por exemplo, em Tol'able David (1921), de Henry King, um vagabundo entra numa casa, vê um gato e, incontinente, atira nele uma pedra. Pudovkin lê esta cena da seguinte forma: vagabundo + gato = sádico. Para Eisenstein, Pudovkin não está lendo - ou compreendendo o significado - de maneira correta, porque, segundo o autor de A Greve a equação não é A + B, mas A x B, ou, melhor, não se trata de A + B = C, porém, a rigor, A x B = Y. Eisenstein considerava que as tomadas devem sempre conflitar, nunca, todavia, unir-se, justapor-se. Assim, para o criador da montagem de atrações, o realizador cinematográfico não deve combinar tomadas ou alterná-las, mas fazer com que as tomadas se choquem: A x B = Y, que é igual a raposa + homem de negócios = astúcia. Em Tol'able David, quando Henry King corta do vagabundo ao gato, tanto o primeiro como o segundo figuram proeminentemente na mesma cena. Em A Greve ( Strike ), quando Eisenstein justapõe o rosto de um homem e a imagem de uma raposa (que não é parte integrante da cena da mesma forma que o gato o é em Tol'able David, porque, para King, o gato é um personagem),esta é uma metáfora.


Em Estamos construindo (Zuyderzee, 1930), de Jori Ivens, várias tomadas mostram a destruição de cereais (trigo incendiado ou jogado no mar) durante o débacle de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York, a depressão que marcou o século XX. Enquanto apresenta os planos de destruição de cereais, o realizador alterna -os com o plano singelo de uma criança faminta. Neste caso, o cineasta, fotografando uma realidade, recorta uma determinada significação. Os planos fotografados por Jori Ivens podem ser retirados da realidade circundante, mas é a montagem quem lhes dá um sentido, uma significação. Os cineastas soviéticos, como Serguei Eisenstein e Pudovkin, procuravam maximizar o efeito do choque que a imagem é capaz de produzir a serviço de uma causa.


Considerada a expressão máxima da arte do filme, a montagem, entretanto, vem a ser questionada na sua supremacia como elemento determinante da linguagem cinematográfica com a introdução - em fins dos anos 30 - das objetivas com foco curto que permitiu melhorar as filmagens contínuas - a câmera circulando dentro do plano - com uma potenciação de todos os elementos da cena e com um tal rendimento da profundidade de campo (vide Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Os melhores anos de nossas vidas, 46, de William Wyler) que possibilitou tomadas contínuas a dispensar os excessivos fracionamentos da decupagem clássica. A tecnologia influi bastante na evolução da linguagem fílmica, dando, com o seu avanço, novas configurações que modificam o estatuto da narração - o próprio primeiro plano - o close up - tão exaltado por Bela Balazs como "um mergulho na alma humana" - com o advento das lentes mais aperfeiçoadas já se encontra, esteticamente, com sua expressão mais abrangente e menos restrita. Tem-se, como exemplo, as faces enrugadas e pavorosas de David Bowie em Fome de Viver/The Hunger, 1983, de Tony Scott, com Catherine Deneuve e Susan Sarandon. A foto que ilustra a postagem é deste filme, o seu cartaz.