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25 janeiro 2013

"O anjo exterminador", de Luis Buñuel


Os 51 anos de O anjo exterminador (El angel exterminador, 1962), de Luis Buñuel, obra-prima do surrealismo cinematográfico, não podem passar em branco. Sobre ser o maior realizador surrealista da história do cinema, Luis Buñuel tem uma trajetória desigual, cheia de acidentes de percurso, vindo a estrear, em fins dos anos 20, com filmes puristas no que diz respeito aos postulados surrealistas: Un chien andalou (Um cão andaluz, 1928), em colaboração com o excêntrico Salvador Dali, e, dois anos depois, L'âge d'or (A idade do ouro, 1930). Nestas duas obras, Buñuel pretendeu passar ao cinema o surrealismo em estado bruto: as imagens se desenrolam como num processo onírico de associação de idéias. A cena inicial de Un chien andalou é clássica: um homem, com uma navalha, decepa o globo ocular de uma mulher enquanto as nuvens passam, indiferentes, no céu enluarado.
Em 1962, quando O anjo exterminador estreou em Paris, o exibidor solicitou a Buñuel que escrevesse alguma coisa para ser colocada na porta do cinema, a fim de esclarecer melhor os espectadores. Buñuel escreveu o seguinte: "A única explicação que pode ter esse filme é que ele, na verdade, não tem nenhuma." Woody Allen, em seu recente Meia-noite em Paris (Midnight in Paris), quando do retorno no tempo aos esfuziantes anos 20 na Cidade Luz, há um momento impagável: o personagem se encontra com o próprio Buñuel e dá a ele a idéia de fazer um filme como O anjo exterminador sobre um grupo de burgueses que depois de um jantar comemorativo, sem que haja obstáculos que o impeçam de sair, ficam trancados meses e meses na mansão. Buñuel se espanta com a idéia e diz que não compreendeu o por que de o grupo não poder sair.
Em 1955, Luis Buñuel se encontra com André Breton em Paris e este, desanimado, aborrecido, diz ao cineasta: "O escândalo não existe mais!" Breton, autor do manifesto surrealista, é o seu principal nome. Se o escândalo não existe mais, pour épater les bourgeois (para escandalizar os burgueses), o que se pode dizer hoje, decorridos mais de 50 anos, no momento de vale-tudo em que o BBB expõe, sem arte e sem surrealismo, a demência verificada na mentalidade da sociedade atual? A juventude, passou-a nos atribulados anos 20 em Paris, quando os artistas se amontoavam (como mostra Midnight in Paris, como mostra Sinfonia em Paris/An american in Paris, 1950, de Vincente Minnelli, entre tantos outros). Na capital da França, o aragonês Buñuel conheceu a nata e ficou amigo de muitos, além de trabalhar como assistente de direção em uma ou duas películas. Mas o que o atraiu mesmo foi o movimento surrealista liderado por André Breton. Nos anos 30, teve uma experiência mal sucedida em Hollywood, e, com a Guerra Civil da Espanha (1936/1939) exilou-se no México, onde estabeleceu a sua residência, ainda que, no final da carreira tenha filmado bastante em Paris. Terminadas as filmagens, porém, voltava para o aconchego de sua casa mexicana.
Metáfora surrealista sobre o homem e a sociedade, El angel exterminador (o título é bíblico, premonitório e profético) tem na impossibilidade de sair da mansão, sem que nada impeça que seus convidados saiam, um recurso de surrealismo que o autor utiliza para, na verdade, fazer um estudo de comportamentos, um laboratório para a observação de burgueses metidos a aristocratas que, com o tempo, fazem com que caiam as suas máscaras de hipocrisia, e, em consequência, as normas de etiquetas sejam relegadas.
Em uma suntuosa mansão de Nóbile (Enrique Rambal) se celebra um jantar elegante depois que os participantes voltam de uma ópera. Ao término da recepção, os convidados se dão conta de que não podem abandonar o salão. Reclusos por força invisível naquele lugar, iniciam um verdadeiro processo de degradação que deixa a descoberto o ser primário e zoológico que luta para sobreviver e, com isso, são esquecidos todos os prejuízos e convencionalismos sociais. Tudo é pulverizado e destruído, inclusive os luxuosos trajes dos personagens e o mobiliário rico da sala. Eles se alimentam graças a uns cordeiros que conseguem pegar – e que vivem, surrealisticamente, dentro da mansão, recorrendo a toda a classe de fórmulas – cerimônias mágicas, invocações maçônicas, rezas – numa série de tentativas para por fim àquela situação. O parágrafo seguinte contém spoiler e para os suscetíveis melhor que não seja lido.
Finalmente, depois de vários meses de reclusão, os convidados repetem os instantes finais da festa, e, desse modo, conseguem sair da casa. Na catedral do México, assistem a um solene Te Deum. Mas, findo este, comprovam que nem os oficiantes nem seus assistentes conseguem abandonar a igreja. O plano final apresenta cordeiros que entram na catedral enquanto nas ruas explode uma revolução.
(Na versão disponível em DVD de O anjo exterminador, a empresa distribuidora achou por bem cortar uma cena. No original, quando os convidados chegam à mansão de Nóbile, a chegada deles, entrando pela porta e subindo as grandes escadarias, é filmada duas vezes sob dois ângulos diferentes. O responsável pela edição do DVD cometeu um desastre com o corte, interferindo indevidamente na integridade da obra cinematográfica. Talvez por achar que, com a supressão de dois momentos idênticos, viesse a dar mais legibilidade ao filme. Já a versão em VHS, distribuído pela Sagres, mantém a obra na sua integralidade).
O surrealismo parte de uma atitude revolucionária em filosofia, cujo verdadeiro objetivo não consistiria em interpretar o mundo, mas, sim, em transformá-lo. Na forma exposta por seu principal animador, André Breton, o surrealismo revela forte influência do materialismo dialético, dele retirando sua "lógica da totalidade". Assim como o sistema social constitui um todo e nenhuma de suas partes pode ser compreendida separadamente, a arte não deve ser o reflexo de uma parcela de nossa experiência mental (a parcela consciente), mas uma síntese de todos os aspectos de nossa existência, especialmente daqueles que são mais contraditórios.
O surrealismo buñuelesco se, no princípio, seguia fielmente os postulados bretonianos, com o passar do tempo foi se diluindo, com o acréscimo de um humor refinado, sutil, ainda que bem corrosivo, a exemplo de O charme discreto da burguesia (1973), O fantasma da liberdade (1974) e Este obscuro objeto do desejo (1977, seu último filme, pois viria a morrer em 1983. Entre os seus filmes de minha predileção, os dois primeiros, Ensaio de um crime (1956), Viridiana (1960), que causa escândalo na época, O anjo exterminador, Nazarin, O alucinado,La mort em CE jardin, A bela da tarde, e Ocharme discreto da burguesia. Sem esquecer de uma fita mexicana, Los olvidados, que realizou em 1950. Em Este obscuro objeto do desejo, por exemplo, uma mesma personagem é interpretada por duas atrizes diferentes.
Obra sobre a alienação dos indivíduos alienados por crenças e atitudes, e, também, sobre as vacuidades das fórmulas postiças de convivência, El Angel exterminador constitui, de certo modo, uma prolongação dos grandes temas apontados em Laje d'or., mas com uma maturidade e lucidez ideológicas tais que fazem do filme uma síntese perfeita de toda a obra e ideário de seu autor. O roteiro original – de Buñuel e Luiz Alcoriza – leva o expressivo título de Os náufragos da Rua da Providência. O anjo exterminador foi premiado em Cannes (1962), Sestri-Levante (1962) e Acapulco (1963).

23 janeiro 2013

"Spartacus", de Stanley Kubrick/Kirk Douglas


Considero Spartacus (1960), de Stanley Kubrick, o melhor épico da história do cinema, ainda que o diretor não tenha tido a oportunidade de concebê-lo na sua integridade, pois, tratando-se de uma produção da companhia de Kirk Douglas, a Byrna (nome em homenagem à sua mãe), o autor de A Laranja Mecânica somente foi convidado após a desistência de Anthony Mann, que entrou em conflito com o poderoso producer.
Douglas, que já tinha trabalhado com Kubrick em Glória feita de sangue (Paths of glory, 1958), e admirado muito o seu trabalho; com a saída de Mann Kirk Douglas convidou Kubrick para assumir a direção, apesar dos protestos de alguns acionistas de sua empresa produtora, que o consideravam um imberbe para uma empreitada caríssima como Spartacus. O fato é que o filme, monumental, possui características kubrickianas na maneira de encenar, na composição do enquadramento (a câmera no chão com os gladiadores de corpo inteiro, por exemplo, em angulações ousadas), no sentido peculiar do ritmo, do timing, e da concepção de montagem (Laurence Olivier, como Crassus, enquanto fala para sua tropa, tem, intercalando-a, Spartacus a falar para seus comandados em montagem alternada extremamente funcional).
O melhor de tudo, porém, é a sequência da batalha final, que somente poderia ter sido dirigida mesmo por um mestre como Kubrick, pois se assemelha, pelo impacto, pela força expressiva, à seqüência da batalha do gelo de Alexandre Nevsky (1938), de Serguei Eisenstein. Se, nesta, a partitura é de Prokofiev, a de Spartacus é de Alex North, músico especializado em grandes temas para cinema e que tem neste filme um de seus momentos de glória.
Filme de produtor, Spartacus, ainda que comandado administrativamente por Kirk Douglas, este confiou na capacidade daquele rapaz e lhe deu carta branca para a concepção das grandes sequências. Este imenso espetáculo, singular na história do cinema, saiu (há alguns anos) em edição especial cheio de extras em DVD, e pode ser considerada a superprodução hollywoodiana que melhor se conservou com o passar do tempo e, vista hoje, é como se o filme tivesse sido feito agora.
A sensação que se tinha, quando do seu lançamento em 1961, era de um filme avançado para a sua época em termos da sua concepção de mise-en-scène, deixando em segundo plano Ben-Hur e Os dez mandamentos, embora estes possam, também, serem considerados espetáculos primorosos dentro das fronteiras de seu gênero. Spartacus, no entanto, ganha de todos eles por sua magnificência, sentido de cinema pulsante, elenco inexcedível. E Laurence Olivier, como Crassus, tem, aqui, uma de suas performances mais eloquentes.
Baseado em livro de Howard Fast, com roteiro do grande roteirista Dalton Trumbo (que entrou para a lista negra de MacCarthy), Spartacus, sobre ser um épico empolgante, é um filme que mostra a relação escravocrata e a necessidade de um grito de liberdade.
Em Roma, um escravo trácio (Kirk Douglas/Spartacus) é comprado por um comerciante romano, Batiatus Lentulus (Peter Ustinov, que ganhou o Oscar por este desempenho) para a sua escola de gladiadores. Nesta vem a conhecer uma bonita escrava inglesa, Varinia (Jean Simmons) pela qual se apaixona. Quando o treinamento de Spartacus se encontra quase concluído, um general de Roma, Crassus (Laurence Olivier) faz uma visita à escola e exige, para satisfazer os desejos sádicos de sua comitiva, que dois escravos/gladiadores lutem até à morte. O escolhido é Spartacus, que se vê obrigado a enfrentar o guerreiro etíope Draba (Woody Strode, um dos atores preferidos de John Ford, negro alto e forte). Draba é vitorioso, mas se recusa a matar o companheiro. Tem início então uma rebelião e a fuga quando Spartacus começa a comandar um verdadeiro exército de escravos para lutar contra Roma.
A versão original, segundo dados do Imdb (The Internet Movie Database), o maior banco de dados sobre cinema do mundo, incluía uma cena em que Crassus tenta seduzir Antoninus (Tony Curtis). O Código Hayes, porém, então vigente e draconiano, não autorizou e a cena foi cortada da versão exibida nos cinemas quando de seu lançamento. Com a restauração milionária realizada em 1991 (fotograma por fotograma) a cena foi acrescentada. Mas, durante o trabalho de restauro, a equipe encontrou alguns problemas. A faixa sonora estava perdida (música e diálogos). Os atores, assim como foi feito em Lawrence da Arábia, de David Lean, os que ainda estavam vivos, se prestaram a dublar seus personagens. Mas a voz de Laurence Olivier, particularíssima, com ele já morto, deve que ser dublado por Anthony Hopkins, que procurou imitar, na medida do possível, a voz do maior ator de teatro do século XX.
Vi Spartacus, pela primeira vez, no velho cine Tupy (Salvador/Bahia) antes da reforma de 1968. No já distante ano de 1961, quando, com 11 anos, quase que não conseguia entrar, pois, na época, o filme era proibido para menores de 14 anos. Assim, talvez meu entusiasmo pelo filme tenha vindo pelo impacto que provocou no adolescente que estava se formando como cinéfilo impertinente. Mas continuei, pela vida inteira, a ver Spartacus, indo assisti-lo onde estivesse passando. A última vez que foi exibido em cinema, creio, se a memória não falha, foi nos anos 70, no Tupy, em cópia esplendorosa na bitola de 70mm. Depois passou para a fita magnética, em horrendo full screen, e, agora, vem restaurado em edição que respeita a integridade de seu enquadramento, isto é, preservando o cinemascope original.
O elenco é excepcional, um cast de primeiríssima: além de Douglas, Simmons, Olivieri, Ustinov, Strode, estão presentes: Tony Curtis, Charles Laughton (em fim de carreira e que tem aqui uma interpretação soberba como um senador romano), John Gavin, Nina Foch, John Ireland, Herbert Lom, John Dall (um dos estudantes assassinos de Festim Diabólico/Rope, 1948, do mestre Hitch), Harold J. Stone, Charles MacGraw, entre outros. A iluminação é de um artista da luz: Russell Metty.
O fascínio que permanece em Spartacus se deve muito à contribuição de Stanley Kubrick como metteur-en-scène e, também, pela confiança que Kirk Douglas depositou nele. Produtor de visão, este dispensou a Kubrick a necessária liberdade para conceber o espetáculo, embora com algumas discussões e atritos por causa do temperamento do realizador de Lolita.
Spartacus é um filme permanente que, se for ser sincero, o colocaria entre os 10 melhores filmes que já vi. Há, nestas listas de melhores, as listas afetivas e as protocolares, que procuram aferir a importância dos filmes no processo histórico da sétima arte. Posso dizer que após os 11 anos de idade, quando o vi pela primeira vez, naquele Tupy com o teto cheio de teias de aranhas negras, Spartacus permaneceu comigo, fazendo parte, portanto, de minha história de cinéfilo.
Spartacus foi lançado no Brasil há quase meio século no dia 17 de novembro de 1960 (mas para a Bahia veio somente no ano seguinte).

20 janeiro 2013

Nicholas Ray: o lirismo do homem ferido


Formado pela Universidade de Chicago, em Arquitetura, chegou a trabalhar com o famoso Frank Lloyd Wright, um dos mais célebres arquitetos do século passado. Foi na casa dele, uma mansão suntuosa, que Alfred Hitchcock, emIntriga internacional, filmou a sequência na qual James Mason e seus capangas se reúnem nos momentos finais do filme e Cary Grant consegue se infiltrar. O aprendizado no trabalho com Wright deu a Ray o gosto pela plástica da imagem, pelo sentido da composição do enquadramento, pela disposição dos objetos e pessoas em cena. Um fotograma de um quadro fílmico em Ray, se porventura em cinemascope, não pode ser destruído pela exibição televisiva no horrendo full screen (tela cheia).
Raymond Nicholas Kienzie iniciou suas atividades artísticas quando já estourada a Segunda Guerra Mundial, fazendo programas de rádio para a CBS. Interessado pelo teatro, montou várias peças, nesse período, em colaboração com John Houseman (que fazia parte do Mercury Theatre de Orson Welles, produtor eficiente e soberbo ator). Assistente de direção de Elia Kazan em Laços humanos(A tree growns in Brooklin, 1945), aprendeu com o grande diretor de atores a maneira de lhes fazer emergir uma personalidade forte em cena. Em seguida, dirigiu para a televisão, em 1946, Sorry, wrong number - adaptação de uma obra teatral que inspirou logo o filme de Anatole Litvak Uma vida por um fio (1948), com Barbara Stanwick e Burt Lancaster. Dore Schary, o novo poderoso chefe de produção da RKO, insuflado por John Houseman, deu-lhe a direção de Amarga esperança (They live by night, 1948), que focaliza o drama de jovens sem esperança com um clima lírico que fizera habitual em sua obra. É então que Nicholas Ray se associa a Humphrey Bogart , que, convertido em produtor, é dirigido por Ray em uma de suas melhores criações: o advogado de O crime não compensa (Knock on any door, 1949), melodrama de denúncia social transcendido por uma penetrante descrição de ambientes e comportamentos.
No silêncio da noite (In a lonely place, 1950), novamente uma associação com Humphrey Bogart, dá a Raymond Nicholas Kienzie a fama de um diretor acima da média no circuito hollywoodiano ao introduzir no relato uma reflexão sobre o próprio cinema. Bogart faz um roteirista amargurado com as engrenagens da indústria que, após alguns filmes de sucesso, entra em crise criativa. A estrutura narrativa toma a forma de um autêntico film noir, mas a concepção do próprio roteiro e a montagem permitem uma transgressão ao gênero. Contracenando com Bogart, Gloria Grahame, que viria a ser esposa de Ray.
Outra pérola do film noirCinzas que queimam (On Dangerous Ground, 1952) mostra o calvário de um detetive particular (Robert Ryan), que, desiludido com a escória reinante na cidade, é designado para investigar a morte de uma mulher no interior. E se apaixona, no intricado do enredo, por uma mulher cega (interpretada por Ida Lupino, que também foi diretora de filmes). Ward Bond (ator fordiano por excelência também está presente), assim como Ed Begley. Filme fascinante que não se esquece de maneira assim tão fácil.
Johnny Guitar (1953) é um western sui generis e, para muitos, o melhor filme de Nicholas Ray. O mais insólito e, talvez, o mais característico dos filmes deste diretor, constitui, para certa parte dos exegetas de Ray, uma continuação ideal deNo silêncio da noite: a história de um homem violento que deseja deixar de sê-lo e de uma mulher moralmente mais forte do que ele. Este contexto, dentro de uma fábula de evidente intenção antimaccarthista, permitiu ao autor desenvolver alguns de seus temas prediletos: a obsessão da violência, a inquietude da adolescência, a onipresença da morte, sem esquecer precisos matizes autobiográficos. Através de uma construção dramática inusitada - um plano-sequência inicial de 40 minutos de duração em um cenário único, a sala de jogos, expõe e enfrenta os personagens principais, Ray buscou um certo clima de exasperação lírica em todos os recursos de sua mise-en-scène, na estilização dos gestos e movimentos dos atores, no preciosismo dos diálogos, no insólito da cor (cujos defeitos técnicos foram utilizados habilmente com fins expressivos) e do cenário. Servido por uma admirável corte de intérpretes (entre os quais Sterling Hayden e Joan Crawford). E, finalmente, popularizado por um tema musical de grande êxito, Johnny Guittar foi um western feérico por excelência, que teve o mérito especial de inventar seu próprio gênero.
O lirismo do homem ferido se espraia em todos os filmes de Nicholas Ray, às vezes com mais intensidade, outras vezes com menos. Em Horizonte de glórias(Flying leathernecks, 1951), o cineasta abandona o cinema noir e o western para localizar a sua ação num campo de batalha. É a guerra o espaço onde os conflitos explodem. É bem de ver que Ray, ainda que trabalhando no cinema de gêneros, transcendendo-o para, nele, apor a sua marca, o seu pensamento, a sua visão de mundo, a sua filosofia de vida. O palco é o conflito do Pacífico Sul durante a Segunda Guerra Mundial. John Wayne é um major que assume o comando de um esquadrão de caças e encontra enormes resistências de seus comandados, entre eles Robert Ryan.
Antes de Johnny Guitar, Nicholas Ray incursionou num western em 1952 que não tem a notoriedade deste, mas é admirável: Paixão de bravo (The lusty men). Robert Mitchum (um ator de rara presença e personalidade cênica) fica machucado num rodeio e resolve voltar para a sua cidade natal. Arranja trabalho num rancho e se torna amigo de seu patrão, mas não estava no programa que se apaixonasse por Susan Hayward. Estabelece-se, então, o conflito e Ray injeta, nele, o seu constante lirismo do homem ferido. Também no elenco um ator coadjuvante, mas de extraordinário desenvolvimento interpretativo: Arthur Kennedy.
A filmografia de Nicholas Ray ainda revela muitas surpresas. Mas o espaço chega ao fim. Em 1955, realiza o antológico Juventude transviada (Rebel without a cause), o primeiro longa de James Dean, que viria, depois, fazer ainda dois filmes (Vidas amargas, de Elia Kazan, e Assim caminha a humanidade, de George Stevens, antes de sua morte prematura num acidente automobilístico. 
Jean-Luc Godard, num dos seus escritos no Cahiers du Cinema chegou a afirmar numa crítica a um filme desse cineasta: "O cinema é Nicholas Ray!" E o próprio disse que "o cinema é a melodia do olhar." Nicholas Ray é um dos mais importantes realizadores do cinema americano de todos os tempos. A revisão de seus filmes surge, portanto, como programa obrigatório para todos os cinéfilos que se prezam.
Em 1955, Nicholas Ray realiza um de seus filmes mais admirados e que causou sensação entre os jovens dos anos 50, principalmente pelo aparecimento do ator emblemático James Dean, que, com sua morte prematura, viria a se tornar um mito ainda hoje celebrado. O filme, Juventude transviada (Rebel without a cause), reflete a angústia de toda uma geração de jovens, os rebeldes sem causa do título original, e seu argumento gira em torno de Jim Stark (Dean), um jovem que é obrigado a se transferir para outra cidade por ter sido expulso da universidade onde estudava. Atraído por uma jovem vizinha, Judy (Natalie Wood), entra na universidade local, mas não tarda em demonstrar, com os colegas mais rebeldes, seu comportamento inconformista. Provocado, Jim, apesar dos conselhos do pai, homem bonachão e dominado pela esposa, dispõe-se a um duelo de honra e, com seu rival, dois carros em alta velocidade precisam frear diante de um abismo. Durante o duelo, seu antagonista, Buzz (Corey Allen) acaba por cair no abismo e, em consequência, vindo a morrer. Os pais de Jim tentam impedi-lo que se apresente à polícia e ele se refugia com Judy em uma vila abandonada descoberta pelo jovem Plato (Sal Mineo). Há, na sequência em que os jovens estão na vila, um triângulo amoroso sui generis travado apenas pela troca de olhares que se configura numa expressão maior do cinema de Ray.
 Nicholas Ray concebe a ideia desse filme através da leitura de uma série de recortes de jornais sobre adolescentes inconformistas e, também, influenciado pelo mal-estar social muito em voga naquela época. Juventude transviada é considerado o mais completo e explícito sobre os problemas da adolescência entre as obras dedicadas ao assunto. Sua tonalidade peculiar se deve, principalmente, à excepcional identificação entre Jim Stark e seu intérprete, James Dean, arisco, de uma sensibilidade à flor da pele, e desamparado, "ambos desgarrados  pelo conflito entre o desejo de se entregar e o temor da entrega", como declara o próprio Nicholas Ray.
  Jim Stark é o protótipo do adolescente solitário e difícil cujo drama nasce de uma inocência fundamental, levada até às últimas consequências, e que resulta na impossibilidade de aceitar os compromissos impostos por certa civilização, por uma determinada forma de viver. O êxito alcançado por Vidas amargas (East of Eden), de Elia Kazan, baseado em parte do romance de John Steinbeck, com a rica e complexa caracterização desse personagem, converte James Dean em símbolo de toda uma geração, originando um culto quase idolátrico que ainda perdura. Construído segundo uma linha dramática de uma sensibilidade de tragédia clássica e apoiado numa apresentação simples e direta de seus caracteres, Rebel without a cause se desenrola em um clima febril, delirante, específico dos filmes de Ray dessa etapa, que se resolve em várias sequências culminantes, momentos fortíssimos dentro da sua estrutura narrativa: a lição do planetário, que dá uma das chaves para a compreensão da obra; a chicken run, absurda prova de valor que se consuma como uma cerimônia pagã; a penosa e violentíssima explicação de Jim a seus pais; a admirável cena de amor na vila e o desolador desenlace. O emprego pela primeira vez do Cinemascope permite a Ray estimulantes experiências de composição, tendentes a dar uma ênfase lírica a certos gestos dos intérpretes. A sinceridade e honradez  extremas de seu enfoque fazem com que Juventude transviada não haja perdido, com o tempo, a sua atualidade, ainda que Ray aborde um delicado problema social em termos mais poéticos do que analíticos.
  Alguns filmes que não tive a oportunidade de ver estão fora dessa trajetória de Ray (por exemplo: Fora das grades, entre outros). E também não há um propósito de esgotar a ficha filmográfica de Nicholas Ray. Mas, depois de Rebel without cause, o filme que mais se destaca é Delírio de loucura (Bigger than life, 1956), com James Mason, Barbara Rush, Walter Matthau, Christopher Olsen. Mason (sempre um ator impecável, fleumático) faz um professor que descobre sofrer de uma rara doença e aceita se tratar com uma droga ainda em experiência científica. Há uma recuperação e regressão na doença, mas o problema maior é que ele se vicia nela e seu comportamento familiar se torna insuportável com reações imprevisíveis. Ray também aqui adere ao Cinemascope, tela larga, cujo primeiro filme nesse processo anamórfico data de três anos antes: O manto sagrado (The rope, 1953). Bigger than life é uma obra de grande impacto no qual Ray desenvolve o violento enfrentamento dos impulsos espontâneos do indivíduo e das estruturas coletivas da vida norte-americana.
 O filme a seguir é Quem foi Jesse James? (The true story of Jesse James, 1957), com Robert Wagner, Jeffrey Hunter, Hope Lange, Agnes Moorehead, John Carradine. É a história de Jesse James e sua trajetória como um dos mais temidos, ao lado do irmão, bandidos do oeste. Há, no filme, uma aguda análise do processo de conversão de um personagem pacífico e não contaminado que se transforma, de repente, condicionado pelo meio social, em um herói violento. Ray propõe, com claridade meridiana, sua concepção da violência revolucionária como única forma válida de se opor à violência impune da sociedade constituída.
  Nesse mesmo ano de 1957, Amargo triunfo (Bitter victory), com Richard Burton, Curd Jürgens, Ruth Roman, Christopher Lee. Oficial recebe condecoração por bravura, mas a honraria se converte em insulto, porque o capitão que a indicou tem um affair com a esposa do oficial condecorado. Jornada tétrica (Wind across the everglades, 1958), com Burl Ives, Christopher Plummer, Peter Falk, tem sua ação localizada no século XIC. Nunca vi este filme, mas as críticas são entusiásticas.
  A bela do bas-fond (Party girl, 1958), com Robert Taylor, Lee J. Cobb, Cyd Charisse (as pernas mais bonitas de toda a história do cinema), John Ireland, Corey Allen, tem o galã Taylor como um advogado manco (um homem ferido) que é ligado a um chefe mafioso, mas ao se apaixonar por uma bailarina (Charisse) tenta sair do esquema de corrupção. O que não é nada fácil.
 O filme que mais aprecio de Nicholas Ray, entre muitos outros, evidentemente, éSangue sobre a neve (The savage innocents, 1960). Adaptado do romance Top of the world, de Hans Ruesch, pelo próprio autor ao lado do italiano Franco Solinas, a ação se passa no gélido Ártico e mostra a vida de um esquimó (Anthony Quinn) com sua mulher (Yoko Tani). Há alguns momentos que fazem lembrar a obra-prima de Robert Flaherty Nanuk, O esquimó (Nanook of the North, 1922), filmado, este, in loco, ainda no período da estética da arte muda. The savage innocents tem um registro documental do dia-a-dia do personagem: seu modo de habitar, sua necessidade de caçar para trazer o alimento no fim do dia. E que se constitui, na verdade, num autêntico discurso sobre o pensamento selvagem, a dialética da Natureza e a corrupção da civilização em uma das mais claras e transparentes expressões das concepções morais do autor, tanto de um ponto de vista emocional e dramático, quanto no exercício estrito da mise-en-scène cinematográfica. Ray não conseguiu, para este filme, recursos nos Estados Unidos. A produção é uma parceria entre a França, Itália e Reino Unido. Peter O'Toole tem uma ponta.
 No regresso a Hollywood, sem trabalho, o produtor Samuel Bronston o convidou para dirigir um épico histórico tão ao feitio da época: O rei dos reis (King of kings, 1961), quase três horas de projeção. Apesar de a crítica, na época, ter fechado os olhos para o filme, e, hoje, revisto, tem alguns defensores entusiásticos. Trata-se da história de Jesus Cristo do nascimento até a ressurreição. Quem o interpreta é Jeffrey Hunter (o acompanhante de Etahn Edwards em Rastros de ódio/The seachers, de John Ford). Há close ups magníficos de seus olhos azuis. Novamente utilizando com sabedoria o Cinemascope, para alguns críticos que viram grandeza em King of kings, Ray amplia, aqui, os limites de seu mundo e depura as suas constantes expressivas.
 Gosto muito de outra superprodução de Bronston dirigida por Ray: 55 dias em Pequim (55 days at Peking, 1963), canto de cisne de Nicholas Ray, com Charlton Heston, Ava Gardner, David Niven, Flora Robson, John Ireland, Harry Andrews, e o próprio Nicholas Ray no papel do embaixador. Estrangeiros são constrangidos e cercados durante a revolta dos Boxers, A única saída para eles é ser liderado por um valente e obstinado membro da Marinha norte-americana e pelo embaixador britânico. O filme, na época, foi malhadíssimo pela crítica.
 Eis, portanto, a trajetória de um grande diretor de cinema. Nada existe hoje que se lhe possa comparar.