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30 setembro 2011

"Na Cena" no Festival de Brasília

Raul Moreira e Cassio Seder estão plantados em Brasília para acompanhar o festival que lá está a acontecer. Como sempre com suas reportagens-clips críticos e, por vezes, como deve ser, anárquicos, no já consolidado Na Cena. O espírito crítico, porém, não agrada a gregos e troianos, mas o fato é que ninguém fica indiferente às suas diatribes brincalhonas. Moreira me mandou um recado, que, aqui, prontamente, reproduzo:

"Cá, no seu estimado blog, veículo que sempre prestigiou o Na Cena, faço público que vivemos uma crise de identidade. Isso porque, depois de sofrermos o pão que o diabo amassou em praticamente todos os festivais que reportamos Brasil afora, eis que estamos sendo tratados à pão de ló no Festival de Brasília. Sim, acredite, pois nos deram passagens aéreas, hospedagem, alimentação e tantas outras regalias. Por isso, eu, Cassio Sader e as cenosas resolvemos por em votação se deveríamos ou não continuar vivendo a ilusão burguesa do evento. E, infelizmente, o resultado foi sim: paciência! No entanto, mesmo com a mordomia, garantimos para nós mesmos que não seremos cooptados, que não nos deixaremos levar pelas facilidades e, doa a quem doer, vamos retratar o “repaginado”Festival de Brasília ao nosso modo. Tanto que as belezas, as misérias e as contradições do evento serão oferecidas em oito capítulos de três minutos. Aos interessados, eis o nosso endereço: http://www.youtube.com/user/PgmNaCena .

Divirtam-se...
Raul Moreira



28 setembro 2011

Os recursos da montagem cinematográfica

A chamada montagem ideológica ou intelectual é uma operação com um objetivo mais ou menos descritivo que consiste em aproximar planos a fim de comunicar um ponto de vista, um sentimento ou um conteúdo ideológico ao espectador. Eisenstein escreveu na justificativa de sua montagem de atrações: "uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade, que nasce, justamente, de sua justaposição (...) A montagem é a arte de exprimir ou dar significado através da relação de dois planos justapostos, de tal forma que esta justaposição dê origem à idéia ou exprima algo que não exista em nenhum dos dois planos separadamente. O conjunto é superior à soma das partes".


Amparado nestes ditos de Eisenstein, há de se ver que, no cinema, como em quase todos os ramos das ciências, quando se reúne elementos (no sentido amplo) para obter um resultado, este é freqüentemente diferente daquele que se esperava: é o fenômeno dito de emergência. Aprende-se, por exemplo, em biologia, que pai e mãe misturam seu patrimônio hereditário para criar uma terceira personagem não pela soma desses dois patrimônios, mas, ao contrário, pela combinação deles em um novo patrimônio inédito. Em química, sabe-se ser possível misturar dois elementos em quaisquer proporções, mas não é possível combiná-los verdadeiramente em um corpo novo se não tem proporções perfeitamente definidas (Lavoisier). Da mesma forma, na montagem de um filme, os planos só podem ser reunidos numa relação harmoniosa.

A montagem ideológica consiste em dar da realidade uma visão reconstruída intelectualmente. É preciso não somente olhar, mas examinar, não somente ver, mas conceber, não somente tomar conhecimento, mas compreender. A montagem é, então, um novo método, descoberto e cultivado pela sétima arte, para precisar e evidenciar todas as ligações, exteriores ou interiores, que existem na realidade dos acontecimentos diversos.

A montagem pode, assim, criar ou evidenciar relações puramente intelectuais, conceituais, de valor simbólico: relações de tempo, de lugar, de causa, e de conseqüência. Pode fazer um paralelo entre operários fuzilados e animais degolados, como, por exemplo, em A Greve (1924), de Eisenstein. As ligações , sutis, podem não atingir o espectador. Eis, aqui, um exemplo da aproximação simbólica por paralelismo entre uma manifestação operária em São Petersburgo e uma delegação de trabalhadores que vai pedir ao seu patrão a assinatura de uma pauta de reivindicações (exemplo extraído do filme Montanhas de ouro, do soviético Serge Youtkévitch).
- os operários diante do patrão
- os manifestantes diante do oficial de polícia
- o patrão com a caneta na mão
- o oficial ergue a mão para dar ordem de atirar
- uma gota de tinta cai na folha de reivindicações
- o oficial abaixa a mão; salva de tiros; um manifestante tomba.

A experiência de Kulechov demonstra o papel criador da montagem: um primeiro plano de Ivan Mosjukine, voluntariamente inexpressivo, era relacionado a um prato de sopa fumegante, um revólver, um caixão de criança e uma cena erótica. Quando se projetava a seqüência diante de espectadores desprevenidos, o rosto de Mosjukine passava a exprimir a fome, o medo, a tristeza ou o desejo. Outras montagens célebres podem ser assimiladas ao efeito Kulechov: a montagem dos três leões de pedra - o primeiro adormecido, o segundo acordado, o terceiro erguido - que, justapostos, formam apenas um, rugindo e revoltado (em O Encouraçado Potemkin, 1925, de Eisenstein); ou ainda a da estátua do czar Alexandre III que, demolida, reconstitui-se, simbolizando assim a reviravolta da situação política (em Outubro).

O que Kulechov entendia por montagem se assemelha à concepção do pioneiro David Wark Griffith, argumentando que a base da arte do filme está na edição (ou montagem) e que um filme se constrói a partir de tiras individuais de celulóide. Pudovkin, outro teórico da escola soviética dos anos 20, pesquisou sobre o significado da combinação de duas tomadas diferentes dentro de um mesmo contexto narrativo. Por exemplo, em Tol'able David (1921), de Henry King, um vagabundo entra numa casa, vê um gato e, incontinente, atira nele uma pedra. Pudovkin lê esta cena da seguinte forma: vagabundo + gato = sádico. Para Eisenstein, Pudovkin não está lendo - ou compreendendo o significado - de maneira correta, porque, segundo o autor de A Greve a equação não é A + B, mas A x B, ou, melhor, não se trata de A + B = C, porém, a rigor, A x B = Y. Eisenstein considerava que as tomadas devem sempre conflitar, nunca, todavia, unir-se, justapor-se. Assim, para o criador da montagem de atrações, o realizador cinematográfico não deve combinar tomadas ou alterná-las, mas fazer com que as tomadas se choquem: A x B = Y, que é igual a raposa + homem de negócios = astúcia. Em Tol'able David, quando Henry King corta do vagabundo ao gato, tanto o primeiro como o segundo figuram proeminentemente na mesma cena. Em A Greve ( Strike ), quando Eisenstein justapõe o rosto de um homem e a imagem de uma raposa (que não é parte integrante da cena da mesma forma que o gato o é em Tol'able David, porque, para King, o gato é um personagem),esta é uma metáfora.

Em Estamos construindo (Zuyderzee, 1930), de Jori Ivens, várias tomadas mostram a destruição de cereais (trigo incendiado ou jogado no mar) durante o débacle de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York, a depressão que marcou o século XX. Enquanto apresenta os planos de destruição de cereais, o realizador alterna -os com o plano singelo de uma criança faminta. Neste caso, o cineasta, fotografando uma realidade, recorta uma determinada significação. Os planos fotografados por Jori Ivens podem ser retirados da realidade circundante, mas é a montagem quem lhes dá um sentido, uma significação. Os cineastas soviéticos, como Serguei Eisenstein e Pudovkin, procuravam maximizar o efeito do choque que a imagem é capaz de produzir a serviço de uma causa.

Considerada a expressão máxima da arte do filme, a montagem, entretanto, vem a ser questionada na sua supremacia como elemento determinante da linguagem cinematográfica com a introdução - em fins dos anos 30 - das objetivas com foco curto que permitiu melhorar as filmagens contínuas - a câmera circulando dentro do plano - com uma potenciação de todos os elementos da cena e com um tal rendimento da profundidade de campo (vide Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Os melhores anos de nossas vidas, 46, de William Wyler) que possibilitou tomadas contínuas a dispensar os excessivos fracionamentos da decupagem clássica. A tecnologia influi bastante na evolução da linguagem fílmica, dando, com o seu avanço, novas configurações que modificam o estatuto da narração - o próprio primeiro plano - o close up - tão exaltado por Bela Balazs como "um mergulho na alma humana" - com o advento das lentes mais aperfeiçoadas já se encontra, esteticamente, com sua expressão mais abrangente e menos restrita. Tem-se, como exemplo, as faces enrugadas e pavorosas de David Bowie em Fome de Viver/The Hunger, 1983, de Tony Scott, com Catherine Deneuve e Susan Sarandon.

27 setembro 2011

Das estruturas da narrativa

A construção de uma narrativa cinematografia obedece a diversos critérios assim como um projeto arquitetônico corresponde a determinadas opções. Há uma construção narrativa que se pode considerar simples e outra que se desenha como complexa. Dois tipos de estruturas, portanto, mas que se deve ter em conta e ressaltar que a simplicidade ou a complexidade são noções exclusivamente inerentes ao como do discurso e não à sua coisa. Isto quer dizer: pode haver histórias intrincadíssimas mas de estrutura simples, elementar, e, pelo contrário histórias lineares, com começo, meio e fim e progressão dramática tradicional mas que se tornam intrincadas por uma disposição particular dos segmentos narrativos.

Dentre as narrativas de estruturas simples estão: a linear, a binária e a circular.

1. Narrativa linear. Percorrida por um único fio condutor que se desenvolve de maneira seqüencial do princípio ao fim sem complicações ou desvios do caminho traçado. A narrativa de estrutura linear é a de mais fácil leitura e é concebida de modo a respeitar todas as fases do desenvolvimento dramático tradicional. O esquema que se obedece é aproximadamente o seguinte: a) introdução ambiental; b) apresentação das personagens; c) nascimento do conflito; d) conseqüências do conflito; e) golpe de teatro resolutório. Este esquema da narrativa linear repete ao pé da letra o que era a estrutura base do romance psicológico do século XIX. Incluem-se nesse tipo de narrativa aquela nas quais o elemento poético e metafórico é reduzido ao mínimo e os motivos de interesse residem exclusivamente na fábula (story), excetuando-se os eventuais casos de erosão dentro do referido esquema - que se constituem uma exceção à regra.

2. Narrativa binária. Este tipo de narrativa é percorrido por dois fios condutores a reger a ação como só acontece nos casos de narrativas paralelas baseada na coexistência de duas ações que podem entrecruzar-se ou manter-se distintas. Garantia certa de tensão dramática, a binária é empregada em fitas de ação - thrillers, westerns, etc - porque valoriza o paralelismo e o simultaneismo, fornecendo, assim, amplas possibilidades de impacto. Exemplo clássico da narrativa binária está em David Wark Griffith (Intolerância, 1916, O lírio partido, 1918, Broken blossoms no original). A linguagem cinematográfica tomou impulso com a descoberta da ação paralela e da inserção de um plano de detalhe no plano de conjunto.

3. Narrativa circular. Este tipo de narrativa tem lugar quando o final reencontra o início de tal modo que o arco narrativo acaba por formar um círculo fechado. É menos frequente e mais ligada a intenções poéticas precisas com um propósito de oferecer uma significação da natureza insolúvel do conflito de partida e denota a desconfiança em qualquer tentativa para superar a contradição assumida como motor dramático do filme. A significação implícita a este gênero de escolha estrutural poderia ser: "as mesmas coisas repetem-se". Em A faca na água (Noz W Wodzie, Polônia, 62), o primeiro longa metragem de Roman Polansky, assim como também em O fantasma da liberdade (Le fantôme de la liberté, 74) de Luis Buñuel, e Estranho Acidente (Accident, 68), de Joseph Losey, para ficar em três exemplos, as coisas que se observam no início voltam a surgir no final, a despeito das tentativas registradas pela narrativa para se libertar delas e da sua influencia nefasta. A construção das obras citadas obedece e exprime a visão do mundo de seus autores do que, propriamente, à matéria da fábula, que pode se apresentar tranquila e jocosa e destituída de relevância maior.

Dentre as narrativas de estrutura complexa estão: a estrutura de inserção, a estrutura fragmentada e a estrutura polifônica.

(a) Narrativa de inserção. Consiste numa justaposição de planos pertencentes a ordens espaciais ou temporais diferentes cujo objetivo é gerar uma espécie de representação simultânea de acontecimentos subtraídos a qualquer relação de causalidade. Os segmentos narrativos individuais interatuam entre si, produzindo, com isso, uma complicação ao nível dos significantes que potencializa o sentido global do discurso. A contínua intervenção do flash-back pode provocar um entrelaçamento temporal que esvazia a noção do tempo cronológico em favor do conceito de duração. Por outro lado, as frequentes deslocações espaciais conferem aos lugares uma unidade de caráter psicológico mas não de caráter geográfico. Na narrativa de inserção, a realidade é vista de modo mediatizado, isto é, a realidade é refletida pela consciência do protagonista ou pela do realizador omnisciente. Seguem esta narrativa de inserção filmes como 8 ½ (Otto e mezzo, 64), de Federico Fellini, A guerra acabou (La guerre est finie, 66), Providence, entre outros trabalhos de Alain Resnais, Morangos Silvestres (Smulstronstallet, 57) de Ingmar Bergman, etc. Nestes exemplos, o receptor/espectador é posto diante de um desenvolvimento narrativo que não é lógico mas puramente mental: o velho Professor Isaac contempla a própria infância (Bergman), o cineasta Guido (Marcello Mastroianni) no cemitério conversa com seus pais já falecidos (Fellini), a projeção do desejo de um escritor moribundo (John Gielgud) imaginando situações (Resnais). O desenvolvimento puramente mental determina, por sua vez, um jogo de associações visuais e emotivas que cria um universo fictício exclusivamente psicológico.

(b) Narrativa fragmentária. Estrutura-se pela acumulação desorganizada de materiais de proveniência diversa, segundo um procedimento análogo ao que, em pintura, é conhecida pelo nome de colagem, A unidade, aqui, não é dado pela presença de um fio narrativo reconhecível, porém pelo ótica que preside à seleção e representação dos fragmentos da realidade. Se, neste caso, da narrativa fragmentária, a intenção oratória do cineasta prevalece sobre a fabulatória, mais acertado seria considerar o filme como um ensaio do que um filme como narrativa. A expectativa de fábulas, no entanto, encontra-se presente no homem desde seus primórdios e o cinema, portanto, desde seu nascedouro possui uma irresistível vocação narrativa. Poder-se-ia, então, ainda que esta irrefreável expectativa do receptor diante de um filme, falar de um cinema-ensaio ao lado de um cinema-narrativo. O exemplo de, novamente Alain Resnais, Meu tio da América (Mon oncle d'Amerique) vem a propósito, assim como Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (Deux ou trois choses que je sais d'elle, 66) de Jean-Luc
Godard - um minitratado sobre a reificação que ameaça o homem na sociedade de consumo, La hora de los hornos (68), de Fernando Solanas - obra nascida como ato político que utiliza documentos, entrevistas, cenas documentais e trechos com o objetivo de proporcionar a tomada de consciência revolucionária por parte do espectador.

(c) Narrativa polifônica. Estrutura-se pelo número de ações apresentadas que confere uma feição coral à narrativa, impedindo-a de afirmar-se de um ponto de vista que não seja o do realizador-narrador. Os acontecimentos que se entrelaçam são múltiplos, dando a impressão de um afresco, que se forma pelas situações captadas quase a vol d'oiseau. Utilizando-se desse tipo de narrativa complexa, o cineasta capta de maneira sensível, se capacidade houver, o clima social de uma determinada época, como fez Robert Altman em Nashville (1975). Neste filme, vinte e quatro histórias se entrecruzam para compor um mosaico revelador da realidade dos Estados Unidos durante a década de 70. Outro exemplo do mesmo Altman é Short cuts. (Short cuts, EUA, 91).

As estruturas examinadas são todas elas do tipo fechado, segundo as coordenadas estabelecidas por René Caillois. Porque, assim fechadas, estas estruturas servem de suporte à narrativas concluídas do ponto de vista de seu desenvolvimento, não importando o seu significado poético. Existem, no entanto, casos de estruturas abertas, nas quais a conclusão do discurso é deixada em suspenso ou então prolongada para além do filme. O que caracteriza a obra cinematográfica como um trabalho em devir, um filme que busca ainda o seu desfecho ou, então, como um texto que se oferece à meditação do espectador. Em Apocalypse now (1978), de Francis Ford Coppola, o cineasta apresenta três finais todos igualmente legítimos e solidários com o contexto narrativo. Já em Dalla nube nulla ressitenza (81), de Jean-Marie Straub, formado por blocos de sequências fixas, a solução final é deixada ao subsequente trabalho de reflexão do espectador/receptor. Trata-se de uma obra que faz uma reflexão, por meio de representações dialogais, sobre a passagem da idade feliz do Mito para a idade infeliz da História.

O caráter aberto da narração, todavia, em nada desfalca a contextualidade orgânica do discurso, contextualidade que se mantém íntegra apesar da suspensão da fábula. A solidariedade estrutural, ressalte-se, constitui a conditio sine qua non de qualquer discurso cinematográfico que pretenda considerar-se artístico.
 
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25 setembro 2011

Os lugares narrativos da fábula

Se a narrativa possui as suas estruturas-tipo, a fábula também se apresenta sob a forma de lugares narrativos bem reconhecíveis. As estruturas da narrativa têm a ver com a organização do discurso enquanto que os lugares narrativos da fábula se referem às modalidades em que a história está representada dentro das coordenadas espácio-temporais do texto fílmico. Aparentemente, na multiplicidade das construções narrativas, esconde se apenas um número limitado e repetido de situações dramáticas. À primeira vista, e a grosso modo, pensa-se que todo filme conta uma história diferente. Daí vem a necessidade de se aplacar esta impressão de multiplicidade - uma ilusão! - através de um mecanismo redutor que faça esclarecer os arquétipos do gênero fabulístico. Com maior frequência, quatro são os mais utilizados lugares narrativos na fábula: a viagem, a educação sentimental, a investigação, e o elemento deflagrador.

A viagem. É o topos - configurações que o material narrável adota no plano da dispositio - que ostenta os mais ilustres precedentes, a começar pela Odisséia, de Homero, até On the road, de Jack Kerouac. É também o mais congenial ao cinema que sempre mostrou uma predileção particular por histórias tendo por tema a descrição de um itinerário físico durante o qual, entre mil dificuldades e imprevistos, o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento. Ou, como se pode também dizer: do pecado à salvação. A viagem é pontuada por etapas que se constituem em estações de um percurso interior que conduz do Erro inicial à Verdade final. É isso que se vê, por exemplo, em O Sétimo selo (Det sjunde inseglet, 57), de Ingmar Bergman, onde os encontros reveladores efetuados pelo cavaleiro Antonius Block durante a sua viagem de regresso da cruzada levam-no, gradualmente, a descobrir o valor da solidariedade humana e, com isso, a superar a condição de crise que o afeta. Os dois meninos que procuram o pai na Alemanha em Paisagem sob a neblina, do grego Theo Angelopoulos, percorrem, na viagem de busca, estações e, com elas, descobrem o mundo com a presenciação da dor e do sofrimento e da solidão. Do mesmo modo, em O soldado azul (Quando é preciso ser homem/The soldier blue, 71), de Ralph Nelson, a necessidade de atravessar o território índio em companhia de uma mulher branca permite ao protagonista descobrir os valores de uma civilização antes considerada inferior e compreender que os verdadeiros selvagens são, afinal, os soldados do seu regimento enviados para arrasar a aldeia dos peles-vermelhas.

Variante do topos é o motivo da fuga que, sendo semelhante ao precedente, se distingue dele por uma maior funcionalidade crítica. A fuga pode ser devida a razões externas (necessidade de afastar-se de uma situação de perigo ou, então, de perseguir de modo aventuroso aquilo que é proibido pela legalidade) ou a razões interiores de natureza existencial (intolerância de uma dada condição humana e procura de uma vida melhor). Em O viajante (Voyager, 93), de Volker Scholoendorff, o protagonista interpretado por Sam Shepard foge da vida por meio de viagens aéreas tomadas ao acaso, vivendo uma trajetória permeada de aeroportos.

O exemplo bem típico do primeiro caso - fuga devida a razões externas - é o de O fugitivo (I'm a fugitive from a chain gang, 1932), de Mervyn Le Roy, que mostra um inocente que foge e é encarcerado numa prisão e que, fugindo desta novamente, tem de continuar errando pela noite como um perseguido sem nenhuma perspectiva de retorno a uma vida normal. Também em A Louca escapada (The sugarland express, 74), de Steven Speilberg, um casal tem de afrontar as perseguições da polícia para recuperar a criança que lhe foi tirada por infâmia.

No segundo caso - fuga devido a razões internas - insere-se a fuga para um mítico Alasca tentada pelo protagonista inquieto de Five easy pieces (Cada um vive como quer, 1970), de Bob Rafelson, que espera encontrar um modelo de vida alternativa àquele obrigado a seguir e que não considera autêntico. Jack Nicholson é o intérprete que personifica o personagem andarilho em busca de uma identificação bem típica dos anos 60 e corolária do movimento paz e amor.

Existe também, dentro dos assim chamados lugares narrativos da fábula, um outro tipo de fuga chamado de gratuita cuja característica principal está num desejo de afirmação do eu e do desafio às normas sociais. Ainda: a fuga metafísica de causas reais desconhecidas e interpretável como metáfora do destino humano. Na fuga gratuita, o exemplo marcante é encontrado em Corrida contra o destino (Vanishing point, 1970), de Richard Sarafian, uma louca corrida através dos Estados Unidos feita de automóvel pelo personagem, uma fuga que termina pela autodestruição espetacular do homem. Já em No limiar da liberdade (Figures in a landscape, 70), de Joseph Losey, e em Encurralado (Duel, 73), de Steven Spielberg, há, no primeiro, uma fuga planetária - os protagonistas estão envolvidos, sem uma razão visível, e sob a ameaça de um estranho helicóptero numa corrida desenfreada - e, no segundo, uma fuga absurda - um homem foge desesperadamente de um gigantesco caminhão que o persegue pelas estradas.

Há, ainda, outros tipos de fugas como as de Geena Davis e Susan Saradon em Thelma & Louise (idem, 90), de Ridley Scott, ou a empreendida pelo protagonista de Com o passar do tempo (Im lauf der zeit, 76) de Wim Wenders, que, destituído de passado e futuro, percorre a Alemanha, exclusivamente imerso na, por assim dizer, dimensão existencial do dasein heideggeriano. Neste caso, a narrativa renuncia a qualquer conotação dramática e limita-se a registrar com um gosto fenomenológico o comportamento do herói seguido nas suas incessantes deslocações espaciais. A fuga, aqui, apresenta a vagabundagem como uma condição normal do protagonista, como resultado de uma opção de vida coerente e consciente. Uma característica, aliás, do cinema wendersiano: Alice nas cidades (Alice in den stadten, 73), Movimento em falso (Falscher bewegung, 75), entre outros.

Um outro lugar narrativo - topos - é o que se pode definir por educação sentimental. Se nos topos da viagem o desenvolvimento narrativo se faz no espaço, tem-se, na educação sentimental, um desenrolar-se no tempo.

A educação sentimental. A tomada de consciência opera-se graças a um itinerário que já não é mais horizontal mas vertical, considerando-se que neste topos se se reporta aos fenômenos psicológicos ligados à passagem de uma idade do homem para outra. O arco de tempo analisado pode ser mais ou menos longo consoante a quantidade e a qualidade das experiências narradas pela fábula. Além disso, a educação dos sentimentos pode ser apresentada segundo o seu desenvolvimento real ou, então, ser objeto de reinvocação por parte de quem a protagonizou. Em ambos os casos é contemplada pelo autor numa perspectiva mais ou menos autobiográfica, com a diferença de que, enquanto na primeira hipótese - a do seu desenvolvimento real - há uma pretensa objetividade que tende a fazer desaparecer esta característica autobiográfica, na segunda, a identificação entre o cineasta/autor e o protagonista da ação fica a descoberto. Em Os incompreendidos (Les quatre-cents coups, 59), de François Truffaut, existe uma melancolia eivada de um sentimento patente de nostalgia pela idade das ilusões anterior ao princípio do realismo ligado à dimensão adulta, qualquer que seja o período da vida em que tal princípio se afirma. Já em O mensageiro (The go-between, 71), de Joseph Losey, a reinvocação da passagem traumática do mundo das ilusões para o da realidade é confiada ao protagonista direto dessa dolorosa transição.

Este topos - arquétipo no qual se assentam muitos filmes - tem sua origem em Gustave Flaubert. Na primeira versão de A educação sentimental (1845), ainda sob o impacto da experiência amorosa que tivera na adolescência, o jovem Flaubert confere um desenlace feliz à sua paixão, acreditando ainda que, para conquistar a felicidade, bastaria desejá-la com toda a força. Anos mais tarde, ao redigir a segunda versão da obra (1869), já na idade da razão, reconhece o engano de sua mocidade e inicia o livro com uma saudosa evocação de Elisa Schlesinger (a Sra. Arnoux do romance), lembrando, com ternura, até os pormenores de seu vestuário para finalizar com a melancólica despedida de Frédéric Moreau (nome que atribui a si próprio no enredo) à amada impossível.

A investigação. Baseia-se na reconstrução a posteriori de um acontecimento obscuro sobre o qual há que fazer luz. Os instrumentos utilizados podem ser os clássicos da investigação policial ou os mais recentes do inquérito jornalístico ou, se se quiser, cinematográficos. O móbil comum revelador é apreendido por meio de fragmentos soltos que, organizados, propõem o denominador comum. A fábula apresenta-se, aqui, como o lugar da desordem que tende a encontrar a sua explicação unitária para além da aparente casualidade dos acontecimentos descritos. É ao esquema do inquérito policial que obedecem filmes como A marca da maldade (Touch of evil, 58), de Orson Welles e A Besta deve morrer (Que la bête meure, 70), de Claude Chabrol. No filme de Welles, a procura do assassino está animada por um sentimento de legalidade oficial: numa cidade de fronteiras entre os Estados Unidos e o México, instaura-se uma rivalidade entre dois policiais, o americano Quinlan (Welles) e o Vargas (Charlton Heston) num caso de drogas e crimes. No filme de Chabrol, a procura do assassino é movida por um desejo de vingança privada. Inspirados no inquérito jornalístico e no filmado se encontram, respectivamente, O Bandido Giuliano (Salvatore Giuliano, 61), de Francesco Rosi e O Homem de mármore (Czlowiek z marmur, 79), de Andrzej Wajda, o primeiro procurando fazer luz sobre a morte do bandido siciliano, enquanto o outro se preocupa na reconstituição da verdadeira história de um "herói do trabalho" do período stalinista desaparecido imprevistamente das crônicas do regime. Ainda há um derradeiro lugar narrativo da fábula: aquele a que se recorre com maior frequência a ponto de não ser quase percebido como tal. O esquema em que o Bem e o Mal são eternamente contrapostos numa estrutura narrativa o mais elementar possível. Tal conflito, na realidade, para além de poder assumir um dos aspectos exteriores até aqui examinados, também pode ser representado de modo linear e segundo uma progressão dramática facilmente previsível pelo espectador. Em tal caso, o bom pode vestir as roupas de uma personagem histórica que tenha realmente existido como Aleksandr Nevsky no filme homônimo (Aleksandr Nevsky, 38), de Serguei Eisenstein, ou ser personificado por um herói lendário como Shane (Os Brutos também amam/Shane, 53), de George Stevens. Em ambas as circunstâncias, os códigos fílmicos procuram exaltar a figura empenhada na benemérita tarefa de destruir o Mal nas suas repetidas encarnações históricas e meta-históricas: a música, os fatos e até a cor fazem uma simpática apologia ao herói e, em contrapartida, exprimem toda a sua reprovação pelo malvado mau.

O elemento deflagrador. Talvez não se possa definir o elemento deflagrador como um lugar narrativo da fábula mas é uma constante e uma presença marcante nos arquétipos da narrativa. Trata-se do elemento que vem de longe e deflagra, com sua aparição, um processo de transformação no meio social no qual se intromete. A chegada de Shane, cavaleiro misterioso, cujo passado é desconhecido, provoca uma metamorfose na localidade, revelando para os seus habitantes e, principalmente, para o menino Joe, sua mãe e seu pai, a família na qual Shane pousa por um tempo, uma força estranha e poderosa capaz de mudar o statu quo.

O anjo de Teorema (idem, 67), de Pier Paolo Pasolini, também é, na fábula, um elemento deflagrador da transformação de uma família burguesa italiana que, depois de sua misteriosa aparição, toma rumos inesperados após o contato sexual do anjo com todos os familiares e inclusive a empregada: o pai, desesperado, doa a fábrica aos operários; a mãe, ensandecida, procura, como prostituta em desespero, homens pela rua; o filho se torna um pintor abstrato; a filha entra em estado catatônico, e, por fim, a empregada, saindo da casa onde trabalha, volta às origens numa localidade interiorana onde levita, ascendendo ao céu e transformada em santa.

O elemento deflagrador é um arquétipo do qual se valem muitos filmes. Em Férias de amor (Picnic, 54), de Joshua Logan, o personagem interpretado por William Holden, um forasteiro, um estranho, chega a um vilarejo interiorano dos Estados Unidos e provoca, no dia da Festa do Trabalho, quando tem lugar um piquenique, um verdadeiro cataclisma. É a força que vem de fora e causa transtornos na aparente tranquilidade de uma sociedade onde os preconceitos, recônditos, eclodem à menor faísca.

Existem poucas situações dramáticas originais, pois os arquétipos do gênero fabulístico reduzem a maioria a um número limitado.

Na foto (cliquem-na), Julie Christie em O mensageiro (The go-between, 1971), de Joseph Losey.