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13 novembro 2010

O peido cultural


Bom, este artigo, que já saiu neste blog ano passado, mas que resolvo republicá-lo, de autoria do escritor Moacyr Scliar registrado em domingo, dia 9 de março de 2008, no Mais! da Folha de S.Paulo. Não resisto em transcrevê-lo. Aqui vai:

"A notícia, na Folha do último dia 28, era pequena, mas chamativa: uma funcionária, demitida por "exceder-se em flatulência" no local de trabalho, venceu demanda judicial interposta na 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. Os magistrados decidiram pela readmissão da empregada e pelo pagamento de R$ 10 mil por danos morais.

Atrás desse curioso episódio está longa história, que se baseia numa função fisiológica absolutamente normal, mas nem por isso menos perturbadora. Flatulência é a emissão de gases intestinais, uma coisa que poderia passar despercebida, como é a expiração.

Mas essa, em geral, não é ruidosa -a não ser quando a pessoa ronca, o que não raro é fonte de conflito entre marido e mulher- e é sem odor, a não ser quando há mau hálito, o que sempre resulta em constrangimento. Já no flato, existe uma complexa mistura de gases, alguns dos quais, os compostos sulfurosos, principalmente, produzem aquele característico odor, que há milênios ofende narinas.

Ah, sim, e o ruído. A última linha de "O Inferno", de Dante, parte da "Divina Comédia" [editora 34], diz "Ed elli avea del cul fatto trombetta"/ "E ele usou o traseiro como trombeta", o que pode parecer um exagero, mas traduz a indignação das pessoas.

Não só Dante se entregou ao exercício dessa forma de escatologia literária. Na clássica comédia "As Nuvens" [ed. 34], de Aristófanes [comediógrafo grego do século 5º a.C. que se celebrizou pela irreverência], há um diálogo no qual Sócrates sustenta que, quando as nuvens colidem, se produz um forte ruído, ou seja, o trovão.Para explicar o fenômeno, compara-as com o homem que, tendo comido muito, produz gases. E pergunta: "Se o ventre humano, que é relativamente pequeno, faz tanto barulho, como não o farão as nuvens, que são muito maiores?"
Nas "Mil e uma Noites" [ed. Globo], lemos a história de um homem que, tendo soltado gases durante a cerimônia de seu próprio casamento, não vê outra solução senão fugir para o exterior. Em "Gargântua e Pantagruel" [ed. Itatiaia], Rabelais assim descreve a ressurreição de Epistémon: "De repente Epistémon começou a respirar, depois abriu os olhos, depois bocejou, depois espirrou, depois soltou um grande peido. Ao que disse Panurge: "Agora está certamente curado'".

Em "Contos de Cantuária" [T.A. Queiroz], de Geoffrey Chaucer, autor inglês do século 14, o flato é usado como agressão. O conquistador Absolom está tentando roubar um beijo da trêfega Alison, mulher do carpinteiro Nicholas. Na escura noite, sem quase nada enxergar, aproxima-se da janela da casa e, sussurrando, pede que a mulher diga onde está. Mas é Nicholas que responde -soltando, pela janela, um agressivo flato.Em "Molloy" [ed. Globo], de Samuel Backett, há uma certa condescendência para com os gases: "Trezentos e quinze peidos em 19 horas, uma média de 16 peidos por hora. Não é demais. Quatro peidos a cada 15 minutos. É nada". A mesma tolerância mostrou o imperador romano Claudius, que assinou lei permitindo a emissão de gases em banquetes, mas fê-lo movido por supostas razões de saúde: acreditava-se à época que reter os gases era prejudicial para o organismo.

De maneira geral, soltar um flato era falta grave. Edward de Vere, duque de Oxford, teve o azar de fazê-lo (coisa que Freud explicaria) no exato momento em que prestava juramento de lealdade à depois cinematográfica rainha Elizabeth 1ª.

Tão envergonhado ficou que se impôs um exílio de sete anos. Quando de seu retorno à corte, Elizabeth teria dito, para consolá-lo: "Meu senhor, para dizer a verdade, já esqueci aquele flato".Aliás, em termos da associação nobreza-flatulência, o duque não ficaria sozinho. Segundo nos conta Jô Soares, em "O Xangô de Baker Street" [Cia. das Letras], dom Pedro 2º soltava gases em pleno palácio, o que, aliás, no julgamento mencionado, foi usado como argumento pelo juiz Ricardo Artur Costa e Trigueiros.

A pessoa pode reter os gases, mas será que consegue emiti-los voluntariamente?Em "A Terra", de Émile Zola, há um personagem que consegue fazê-lo e ganha apostas com sua habilidade. Houve um contemporâneo do escritor que conseguia fazê-lo e se tornou famoso por isso: Joseph Pujol (1857-1945), autodenominado Le Pétomane (O Peidômano).

O marselhês Pujol tinha um extraordinário controle de seus músculos abdominais e do esfíncter anal, o que lhe permitia façanhas assombrosas. Exibindo-se no célebre Moulin Rouge, para audiências que incluíam Edward, príncipe de Gales, e Sigmund Freud, conseguia tocar flauta por meio de um tubo de borracha inserido em seu ânus, emitindo também os sons do hino nacional e de melodias por ele compostas.

A história de Pujol inspirou pelo menos dois filmes -o britânico "Le Petomane", de 1979, com Leonard Rossiter, e o italiano "Il Petomane", de 1983, com Ugo Tognazzi-, o musical "The Fartiste" -premiado como melhor do ano em 2006, no festival internacional Fringe, em Nova York-, vários artigos e livros, incluindo o best-seller "Quem Comeu meu Queijo?", de Jim Dawson, uma abrangente história da flatulência.Uma história que, como se constata, mostra aspectos curiosos e surpreendentes da relação humana com o corpo, particularmente no que se refere ao componente gasoso deste."

"Cascalho", de Tuna, já em Livro/DVD


Cascalho, primeiro longa de Tuna Espinheira, vai ser lançado em livro/DVD dia 15 de dezembro, às 18 horas, na Aliança Francesa, que fica na Ladeira da Barra. A realização desse filme dá bem conta e é um exemplo do sacrifício que é se fazer cinema na Bahia. Apresentado em 2004, levou quatro anos para  que recursos fossem levantados para conseguir o Dolby Stereo, imprescindível para a exibição comercial.  A estréia de Cascalho, em avant-première numa das salas do complexo Multiplex aconteceu em outubro de 2008. O livro que acompanha o disco é o de Herberto Salles, fonte inspiradora do filme, um romance já antológico escrito nos anos 30, onde a ação se localiza na Chapada Diamantina. Tuna há muitos anos que tinha a idéia de transformá-lo em filme até que venceu o concurso de roteiros dos editais governamentais e conseguiu verba para pô-la em prática. Mas os recursos desses editais nunca são suficientes para terminar o trabalho. A tenacidade, a vontade e a perspicácia do velho Tuna venceram, no entanto, o desafio. A imagem é de um momento de Cascalho, com o veterano Othon Bastos.  Reproduzo abaixo a mensagem de Tuna anunciando o lançamento.

Velhos amigos,
                 Finalmente, após longo inverno, foi batido o martelo do lançamento do livro/DVD de Cascalho. Será no dia 15 de dezembro, Ás 18 horas, na Aliança francesa, ladeira da Barra. Ainda não tenho o convite oficial, soube ontem, mas o aviso, com este vasto tempo de espera, porque , creio eu, você pode dar uma força, na época, publicando alguns dizeres sobre este velho filme de barbas brancas, se este for do vosso alvitre. 
                Resgatar este trabalho do ossuário geral da utopia cinematográfica de baixo orçamento, o disponibilizando ao valioso olhar público, tirando-o de uma espécie de clandestinidade. O evento não significa nenhuma vitória, mas me inunda de alumbramento, com a alma lavada, delírio para minhas retinas cansadas.
                Vocês foram os primeiros a saber, espero contar com os dois nesta missa de corpo presente. 
Paz e muito Axé,
                                     Tuna  

"Audazes e malditos", de John Ford

A mostra John Ford ficou restrita a três capitais brasileiras (São Paulo, Rio, Brasília), deixando o resto do Brasil sem a possibilidade de ver/rever os monumentos fílmicos fordianos. Ford, primeiro e único, porém, não sai nunca da memória dos cinéfilos. Aqui o trailer de Audazes e malditos (Sergeant Rutledge, 1960), com Woody Strode e Constante Towers, filme rigoroso, emocionante, aliás como tudo que Ford fez na vida.

12 novembro 2010

Relíquia: Marta Rocha volta, triunfal, à Bahia

"Por causa de duas polegadas a mais", como dizia a marchinha carnavalesca, Marta Rocha perdeu o concurso de Miss Universo. Não se pode ter idéia, para quem não viveu a época, da excitação provocada pelos concursos de misses, e, no ano em que a baiana Marta Rocha concorreu houve um verdadeiro frenesi pelo Brasil afora. Mulher bonita, talvez com uns quilinhos a mais para a estética de beleza atual, Marta Rocha levou muitos anos no noticiário nacional, que acompanhou, a partir de seu sucesso como Miss Brasil, toda a sua trajetória. Nesta relíquia que mostro aqui, realizada pelo pioneiro do cinema baiano Alexandre Robatto, Filho, e produzida pela fábrica de refrigerantes Fratelli Vita, vemos a bela chegar ao aeroporto de Salvador, ser recepcionada no Clube Bahiano de Tênis, percorrer as ruas da cidade, e no interior da fábrica citada. Documento de um período, resgate da memória baiana. A ver obrigatoriamente.

10 novembro 2010

Como nasce um cinéfilo


O pouco que sei sobre cinema se deve às minhas constantes idas às salas exibidoras. Cinema se aprende indo ao cinema, já disse José Lino Grunewald, e, neste particular, nada mais verdadeiro. Mas o cinéfilo, que se queira completo, tem que amar aquilo que está a ver, contemplar o seu objeto e investigá-lo. Desde cedo, a começar a me interessar pelo cinema, via-o com interesse e dedicação, a procurar leituras que pudessem me dar uma compreensão melhor daquilo que estava a ver. Existem muitas pessoas que vão constantemente ao cinema, mas não o compreendem, pela simples razão de tê-lo como algo descartável, para passar o tempo, esquecendo-se muito rapidamente do que viu. Alguém, que não me lembro agora, afirmou que a cultura cinematográfica é aquilo que permanece na sua memória algum tempo depois de já tê-lo contemplado.
Não tenho formação cinematográfica acadêmica. Minha experiência com as imagens em movimento é autodidata. Formado em Direito nas priscas eras do século passado (1974), advogado por acidente de percurso, mas sem nunca ter exercido a profissão (a rigor, se entrar no fórum não sei para que lados ficam os principais cartórios nem onde se dá entrada a uma petição inicial), embrenhei-me, depois de formado, pelo jornalismo, e mais tarde, pelo magistério (neste caso, vindo a concluir um mestrado em artes visuais).
Minha formação cinematográfica, como ia dizendo, é, portanto, autodidata, com conhecimentos adquiridos pela visão rigorosa dos filmes e algumas visitas às cinematecas. E a considerar que tenho provectos 58 anos e meio, e que fui pela primeira vez ao cinema aos 5 anos, tenho, já de quilometragem rodada, 53 anos e meio de cinema, meio século, portanto, e mais alguma coisa. Mas a considerar, para ser mais rigoroso, que dos 5 aos 8 a contemplação ainda se fazia pela novidade e pelo assombro da descoberta, poderia dizer que tenho 50 anos de rotina cinematográfica.
No início, anos 50, via muito os filmes de gêneros do cinema americano e chanchadas nacionais. Assim, posso dizer que o meu interesse pela chamada sétima arte se desabrocha com a cinematografia estadunidense, Hollywood, que, ainda no seu ocaso, era, ainda, a fábrica de sonhos. Encantei-me logo com os diversos gêneros. O western, por exemplo, com filmes como "Sem lei e sem alma", "Duelo de titãs", "7 homens e um destino", todos os três do habilidoso John Sturges, com "Rastros de ódio", "O homem que matou o facínora", "Audazes e malditos", todos de John Ford, entre tantos outros, como "Shane", de George Stevens. O musical tinha seu esplendor, seu engenho e arte com os filmes de Vincente Minnelli ("A roda da fortuna", "Gigi") e Stanley Donen ("Cantando na chuva", "Dançando nas nuvens") para ficar apenas em dois diretores.
A comédia sofisticada, o "noir", o melodrama, o filme de guerra, o thriller, enfim, gêneros que determinaram o gosto pelo cinema. Bem de acordo com os postulados da indústria de Hollywood, cujos três principais sustentáculos estavam no "star system" (sistema de estrelas), "system" studio (sistema de estúdios), e a divisão do cinema em gêneros.
Ainda que industrial, o cinema americano tinha filmes adultos e não se encontrava infantilizado como ocorre atualmente. O império ideológico, no entanto, mais adiante, fez com que se desprezasse muitas pérolas oriundas de Hollywood para uma parcela de pessoas ditas intelectualizadas e de esquerda (festiva ou não). Lembro de um amigo que se dizia marxista-leninista que foi flagrado por mim no cinema Liceu (Salvador) na sala de espera de "Moscou contra 007". Ao me ver, num átimo de segundo, e em desabalada carreira, desceu para se esconder nos banheiros. Mas não adiantou: eu o tinha visto. E para um militante, como ele, não ficava bem ver filmes do agente secreto britânico com permissão para matar.
Um filme exerce influência sobre o espectador de acordo com as circunstâncias externas nas quais se o viu. É o caso de "Spartacus", de Stanley Kubrick, que, proibido para menores de 14 anos, vi-o com 11 após quatro tentativas infrutíferas para entrar. Naquela época, existia muito rigor em relação à proibição classificatória dos filmes, a existir, ao lado do porteiro, um comissário de menores na porta para impedir o ingresso deles. Mas existiam algumas sessões nas quais o tal comissário não aparecia, principalmente as sessões das 18 horas. Era o momento da oportunidade.
Mas "Spartacus" provocou no adolescente que eu era um assombro. Aquela tela grande, o épico-histórico narrado com ênfase dramática precisa, a amplidão dos espaços, os intérpretes carismáticos (Laurence Olivier, Kirk Douglas, Tony Curtis, Peter Ustinov...). Mas as circunstâncias externas determinaram muito a envolvência, a idade, etc. Atualmente, mesmo que ainda admire muito "Spartacus", não me vem aquela emoção de tempos idos, principalmente porque falta as tais circunstâncias e vê-lo em DVD não é a mesma coisa que assisti-lo na tela imensa e em cinemascope das salas de exibição.
Em meados dos anos 60, em torno de 15 anos, comecei a frequentar o Clube de Cinema da Bahia, que era programado pelo grave e sisudo (e grande ensaísta) Walter da Silveira, que, nesta época, exibia filmes especiais aos sábados pela manhã no cine Guarany. O assombro que tive com "Spartacus" teve recaída quando vi, pela primeira vez, "Hiroshima, mon amour", numa dessas sessões matinais. A partir daí vim a entender que o cinema era também uma expressão artística e não mero "divertissement", embora nunca tenha encarado os filmes como puro entretenimento, mas como fontes de emoções puras.
É preciso, portanto, ver e ver filmes. Mas a visão deve ser intensa e não desinteressada - como acontece, atualmente, com a horda de debilóides que freqüenta os complexos de salas instalados em shoppings. Se a pessoa não se interessa pelo filme, e pensa, durante a sua projeção, no encontro que terá com o namorado e com o vestido que irá usar em determinada balada, dias depois não vai mais se lembrar dele.
Minha formação cinematográfica se deu, portanto, nos cinemas soteropolitanos, e, a seguir, no contato com as obras-primas oferecidas nas exibições matinais do Clube de Cinema da Bahia. A partir daí, nasceu o cinéfilo, que se completou com leituras, investigações e reflexões.

08 novembro 2010

"A marca da maldade", de Orson Welles


Será possível que A marca da maldade (Touch of evil) já tenha feito meio século de existência? Sim, faz, neste ano em curso, cinqüenta e dois anos, pois realizado em 1958. Trata-se de obra imprescindível para quem quiser compreender e entender o cinema contemporâneo (e há cópias em DVD nas melhores locadoras).
Orson Welles (numa interpretação inexcedível, obeso, desfigurado, para dar a impressão da configuração da maldade) é Hank Quinlan, policial de uma cidade da fronteira entre o México e os Estados Unidos, que tem o costume de fabricaras provas com as quais acusa os supostos culpados perseguidos. Um colega mexicano, Vargas (Charlton Heston, que mostra não ser apenas ator de épicos hollywoodianos, mas um ator de amplos recursos), que acaba de se casar com uma jovem americana, Suzie (Janet Leigh), vem a descobrir os arranjos de Quinlan e ameaça desmascará-lo. Com a ajuda de Grandi (Akim Tamiroff), um traficante local que serve à polícia com informações, Quinlan faz seqüestrar e drogar Suzie, matando logo em seguida seu cúmplice no quarto do hotel onde ela se encontra trancafiada. Uma sucessão de acontecimentos proporciona a um fiel subordinado de Quinlan, Menzies (Joseph Callea) a constatação de seu caráter e acaba ajudando Vargas no total desmascaramento de Quinlan.
Touch of evil (o toque do mal, se traduzido ipsis litteris) marca o retorno de Orson Welles a Hollywood após uma ausência de dez anos. Os constantes estouros nos orçamentos, o seu comportamento muito além dos parâmetros convencionais, e as ameaças de interferência dos estúdios em seus trabalhos, fizeram-no se afastar da meca do cinema. Na década que fica fora (1948/1958) realiza, porém, na Europa, alguns filmes, a exemplo de Othello (personalíssima versão do texto célebre de William Shakespeare, que leva dois anos para ser realizada: 49/51), eGrilhões do passado (Mr. Arkadin ou Confidential report, 1955).
A marca da maldade é montado, na sua versão final, à revelia de seu autor. Há alguns anos, encontradas as anotações de Welles sobre como proceder à montagem do filme, Touch of evil é remontado tal qual a concepção do realizador de Cidadão Kane (as duas versões são exibidas, há cinco anos, no Telecine, quando este ainda é Classic e não Cult, com um documentário especial sobre as diferenças entre as duas cópias).
Apesar de sua base literária como ponto de partida do roteiro, uma sub-literatura de Whit Masterson (aliás, Hitchcock sempre diz que nunca gosta de fazer adaptações de grandes livros, a preferir a sub-literatura encontradiça em bancas de jornais, as chamadas pulp-fictions, mas a sua extração é sempre de um procedimento cinematográfico exemplar e reveladora de uma escrita que estabelece uma mise-en-scène de puro cinema, de pura estesia), A marca da maldade é uma de suas obras mais interessantes e reveladoras. Alguns historiadores, inclusive, estão a considerá-la como mais importante ainda do queCitizen Kane (o que se nos afigura um absurdo, ainda que Touch of evil seja um filme excepcional, e grandioso, e impactante, e genial).
A figura de Quinlan representa à perfeição a postura wellesiana ante a sociedade em que vive. Não que o autor se identifique com o personagem. É que, através de sua monstruosa personalidade, submete, com ela, a crítica ao mundo que o rodeia e no qual certos valores deixam de ter vigência. Em torno da figura de Quinlan, evolui uma série de personagens que, na verdade, não são mais que elementos de uma antítese mediante a qual Welles pretende chegar a uma visão dialética. E quem faz o resumo desta visão é a cigana interpretada por Marlene Dietrich no final do filme numa espécie de epitáfio cínico e emocionado.
O fabuloso plano-sequência inicial, longo e complicado, fica definitivamente nos anais da história do cinema mundial. E dá a tônica estilística de A marca da maldade, uma das mais barrocas de seu autor (a influência do expressionismo alemão, com o contraste das sombras e das luzes, é impressionante). Welles utiliza os inquietantes elementos de uma trama enviezada e a particular estranheza dos cenários para compor uma obra em que tudo está deformado por uma ótica com freqüência aberrante.
Com a oportunidade de comparar as duas versões de A marca da maldade (a montada à revelia e a montada segundo as anotações do diretor), vê-se que o plano-seqüência do início, na versão oficial, é desfigurado com a colocação dos letreiros de apresentação, a ofuscar a visão das pessoas, do movimento, e dos objetos dentro do enquadramento. Welles, como de hábito, na sua concepção original, elabora o plano-seqüência absolutamente desprovido de qualquer material de procedência que não a da imagem.
A aparência exterior de simples drama policial, quando do seu lançamento (depois viria a ser reavaliado e considerado até melhor do que Kane), faz com que muitos críticos venham a considerar Touch of evil como uma obra menor dentro da filmografia de Orson Welles. Nada mais equivocado, pois A marca da maldade é um filme que expõe com grande força o seu pensamento e o seu estilo.
A seqüência de Janet Leigh no motel parece ter inspirado Alfred Hitchcock a convidar a atriz para o elenco de Psicose (Psycho). Não resta dúvida de que tudo indica que a atmosfera reinante no motel wellesiano de A marca da maldade tem tudo a ver com o motel hitchcockiano, com Norman Bates à la carte, de Psycho e, inclusive, a distância entre os dois filmes é curta: dois anos. O velho Hitch há, também, de sofrer a angústia da influência de Harold Bloom.
O cineasta brasileiro Rogério Sganzerla, fã incondicional de Orson Welles, tem um enquadramento em sua obra-prima, O bandido da luz vermelha, no qual o ângulo oblíquo faz ver a sair do carro o detetive interpretado por Luiz Linhares, um enquadramento visivelmente inspirado em A marca da maldade, quando o inspetor Quinlan aparece pela primeira vez. Sganzerla, aliás, realiza dois longas tributários ao grande cineasta, entre eles Nem tudo é verdade, com Arrigo Barnabé no papel do autor de Cidadão Kane, uma mistura de material de arquivo com reconstituição ficcional.
Muitos críticos e historiadores, a exemplo de Peter Bognadovich, acreditam que A marca da maldade possui uma chegada de Welles a este momento de sua vida com o mesmo cansaço que Quinlan experimenta em relação a Kane, cansaço que emerge dos anos transcorridos, da reflexão, da angústia e da desesperança.

07 novembro 2010

...E o vento levou


...E o vento levou (Gone with the wind, 1939) está a completar 71 anos de existência. Filme emblemático como espetáculo cinematográfico, característico da escola idealista do cinema no modo de representação da realidade, marcou época e, talvez, tenha sido o mais visto em todos os tempos. As constantes listas que aferem os campeões de bilheteria já não o têm entre os seus dez maiores, porque a aferição é feita em termos dos lucros auferidos e, assim, os ingressos antigamente eram muito mais baratos.

Ainda que hoje a nova geração não o veja mais, o fato é que durante as décadas de 40, 50 e 60,...E o vento levou era uma referência constante, e não havia cinéfilo, que se quisesse prezar, que não o tivesse visto. Acredito que se, atualmente, os campeões de bilheteria, Titanic ou, já a o superar, Batman, o cavaleiro das trevas, tenham obtido as maiores bilheterias da história do cinema, por outro lado, nenhum filme como ...E o vento levou tenha ficado três décadas em cartaz (com as constantes reprises habituais daquela época) e no imaginário dos amantes do cinema. Os espetáculos cinematográficos atualmente são lançados e logo retirados de cartaz e esquecidos com muita facilidade.

Emblemático como obra cinematográfica típica da indústria hollywoodiana da época, cujos sustentáculos estavam em três pilares básicos, o star system, ostudio system, e a divisão dos filmes em gêneros específicos, ...E o vento levou é um filme de autor às avessas, a contrariar em gênero, número e grau, a Política de Autores (Politique des auteurs) formulada pelos jovens turcos da revista francesa Cahiers du Cinema, para os quais o verdadeiro criador de um filme era o seu diretor (embora a admitir também que havia obras nas quais o diretor era apenas administrativo, mas, para os turcos os melhores eram aqueles que se podiam definir como de autores). Porque o verdadeiro autor de ...E o vento levoué o seu produtor supremo David Selznick e seus diretores não passam de meros diretores administrativos, coordenadores de elenco, diretores de cena.

Adaptação do romance bastante popular de Margaret Mitchell, ...E o vento levouapresenta os estertores da época esplendorosa do Sul dos Estados Unidos e sua derrocada quando da eclosão da Guerra de Secessão. Obra essencialmente intimista (idealista), que foge aos cânones do realismo cinematográfico, tem seu interesse centrado na espetacularidade e no violento choque de personalidades entre os personagens vividos por Vivien Leigh, Clark Gable, Olivia de Havilland e Leslie Howard. O conflito bélico que se instaura, como em todo filme característico do idealismo, serve apenas como pano de fundo. O centro de tudo é a personagem de Scarlett O"Hara (Vivien Leigh) e suas ambiguidades em relação aos mistérios do amor e sua esfuziante personalidade. Pese à acusação de excessiva espetacularização, não se pode negar que algumas sequências são antológicas e, mesmo com a tecnologia atual, difíceis de serem vistas atualmente com tal força de impacto, a exemplo do baile aristocrático e a do incêndio de Atlanta.

Uma rica herdeira sulista, Scarlett O'Hara, apaixona-se seu vizinho (o ator inglês Leslie Howard que viria a morrer em acidente poucos anos depois de ter participado do filme), mas este dá preferência à sua prima Melanie (Olivia de Havilland). Ao estourar a guerra, Scarlett vê-se obrigada a assumir a direção da família, e é cortejada por Rhett Butler (Clark Gable), comerciante, e bon vivant, que a salva do incêndio de Atlanta. Assediada por Rhett (no bom sentido do assédio sem as conotações perversas do estabelecido pela onda politicamente correta atual), termina por se render a seus encantos e se casa com ele. O beijo na carroça, quando ela é salva do incêndio, tendo ao fundo as chamas, que o technicolor de então oferece num tom vermelho é um assombro, para os padrões da época, entre ela e Rhett, é antológico, e figura em qualquer livro que se queira abrir sobre cinema. O caráter rebelde e instável, porém, e sua insistência no amor ao primo, e a morte de seu filho (acidente num cavalo) terminam por conduzir o matrimônio a um beco sem saída.

...E o vento levou é a mais gigantesca superprodução do cinema americano da primeira fase do sonoro. Mesmo para os padrões atuais, não se pode imaginar o êxito de seu lançamento com uma multidão de pessoas diariamente em filas quilométricas nas portas dos cinemas. Um verdadeiro fenômeno que marcou definitivamente um tempo em que o sistema de estúdios dava as cartas para o sucesso dos filmes. E, além do mais, Gone with the wind representa bem um estilo de representação não somente da realidade focada, mas um estilo de cinema que se fazia no período.

Neste particular, a obra cinematográfica mais representativa, embora excelentes filmes foram realizados neste magnífico ano de 1939, cristalização da arte clássica, segundo escreveu André Bazin: O morro dos ventos uivantes (Wuthering heights), de William Wyler, No tempo das diligências (Stagecoach), de John Ford,A mulher faz o homem (Mr. Smith goes to Washington), de Frank Capra, A regra do jogo (La règle de jeu), de Jean Renoir, O mágico de Oz (The wizard of Oz), de Victor Fleming, Jesse James, de Henry King, entre muitos outros.

...E o vento levou teve vários diretores, entre eles George Cukor (que filmou quase toda a primeira parte antes da guerra), Sam Wood, e Victor Fleming (que, afinal, ficou com os créditos). Mas apesar do controle absoluto e obsessivo de David Selznick, o filme, sempre um trabalho de equipe, não seria o mesmo sem a contribuição, mesmo que administrativa, dos diretores citados, e, principalmente, de seu diretor de arte William Cameron Menzies. Vale ressaltar que entre os roteiristas de ...E o vento levou há contribuições nos diálogos de William Faulkner e F. Scott Fitzgerald. A atriz negra Hattie McDaniel, que faz a criada de Scarlett, foi indicada para o Oscar de melhor atriz coadjuvante (e ganhou), mas não pôde receber o prêmio, porque um negro não podia entrar, segundo as leis racistas da época, no teatro da entrega dos Oscars.

Para se ter uma idéia, ...E o vento levou, considerado uma fortuna para a época, custou aos cofres da produtora de Selznick apenas cinco milhões de dólares e rendeu trinta e dois. Atualmente o salário de uma atriz como Julia Roberts não sai por menos de vinte milhões (de dólares, de dólares!).