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02 julho 2014

O intimismo no cinema

    Palavras ao vento (Written on the wiind), de Douglas Sirk

Fala-se muito em intimismo cinematográfico, mas quase nada, pelo menos em língua portuguesa, existe escrito sobre esta maneira de representação do real nas imagens em movimento. O recente lançamento de “Imitação da vida” (“Imitation of life”, 1959), de Douglas Sirk, faz emergir o pensamento sobre oque significa o intimismo e o modo pelo qual é traduzido, nele, o “real”.
O intimismo representa, por excelência, a escola idealista no cinema. A realidade é filtrada pelo sentimentalismo e pela subjetividade, o que oidentifica com o romantismo. Segundo Maurício Rittner, em seu exemplar livro introdutório, “Compreensão de cinema”, editado pela Buriti em 1965, nos filmes intimistas nem sempre o desfecho da história é feliz, fato característico dos filmes românticos. Como as normas de conduta, ainda segundo Rittner, próprias do intimismo são normais ideais, elas acarretam uma técnica de renúncia aos valores autênticos da vida. Assim, o universo romântico-intimista configura um sistema de forças em conflito: as forças do sentimento e as forças da razão. Mas em sua fé nos sentimentos, os personagens se tornam quase místicos.
Segundo o crítico de arte Herbert Reed, existem três modos básicos de representar o mundo: o realismo, o idealismo (intimismo), e o expressionismo, havendo um quarto modo (surrealismo) que tenta substituir o realismo, que é, esta, a “escola”, por assim dizer, que registra tão verazmente quanto possível aquilo que nossos sentidos conseguem perceber no mundo real. Há norealismo cinematográfico várias vertentes (neo-realismo italiano, realismo poético francês, realismo socialista, realismo fantástico, realismo crítico…). A maioria dos filmes do Cinema Novo brasileiro pode se inserir dentro do realismo, assim como a famosa escola de documentaristas britânicos dos anos 20 (John Grierson, Paul Rotha…).
No expressionismo (e, principalmente, no expressionismo alemão dos anos 10 e 20) o que importa não é a tradução do real (como no realismo), mas a expressão de seu reflexo na sensibilidade e no espírito. O filme ícone do expressionismo é “O gabinete do Dr. Caligari” (Robert Wiene, 1919), com seus cenários de papelão, objetos pintados, gesticulação exagerada. Há uma preocupação maior na plástica da imagem do que nos recursos da montagem. A cenografia tem uma forte presença na produção de sentidos. Oexpressionismo influenciou todo o cinema (“Cidadão Kane”, de Orson Welles, com seu jogo de luz e sombras, é uma obra expressionista.)
O nome maior do surrealismo no cinema é o de Don Luis Buñuel, autor de duas obras puramente surrealistas:”Un chien andalou” (1928) e “L’Âge d’or” (1930), ambas em colaboração com Salvador Dali, filmes que chocaram platéias e provocaram escândalos. O surrealismo tenciona apresentar a realidade interior e a realidade exterior como dois elementos em processo de unificação. Tem grande influência de Freud (“A interpretação dos sonhos”) e do materialismo histórico.
O móvel, entretanto, da coluna, é o intimismo, que tem seu apogeu nas décadas de 30, 40 e 50 no cinema americano. Para uma sociedade extremamente imediatista e consumista, atualmente filmes intimistas podem provocar risos (vindos, evidentemente, de débeis incapazes da percepção da obra em seu momento histórico) e parecer, à primeira vista, anacrônicos. Mas os filmes intimistas, quando realizados com classe, com talento, com estilo, podem suscitar uma espécie de estesia pela beleza de sua “mise-en-scène”. Alguém, de sã consciência, poderia rir dos filmes de Douglas Sirk (“Palavras ao vento”, “Almas maculadas”, “Tudo que o céu permite”, “Amar e morrer”, “Desejo atroz”, entre outros)? O intimismo significa a evolução de uma história cinematográfica em torno das eternas constantes do amor, com a tônica noestudo exaustivo das relações afetivas e dos fatores que as precipitam ou as impedem. E criou um universo dramático especificamente feminino centrado nas reações da mulher diante do mistério do amor. Por exemplo: “…E o vento levou” (“Gone with the wind”, 1939), de David Selznick/Victor Fleming/George Cukor/Sam Wood, embora a sua ação se localize na Guerra de Secessão americana (1861/1864), esta se torna apenas um “pano de fundo”, porque o que importa é a análise da personalidade esfuziante de ScarlettO’Hara (vivida com empenho inexcedível por Vivien Leigh) e suas oscilações diante do mistério do amor. Todos os acontecimentos básicos do filmes sãoexplicados em função dos estados passionais (outro exemplo marcante é “Omorro dos ventos uivantes”/”Wuthering Heights”, também de 1939), de William Wyler, com Laurence Olivier, David Niven, Merle Oberon. A dimensão lírica do intimismo é dada por um tratamento acentuadamente romântico dos personagens e das situações.
O intimismo parte de uma visão realista, que é deliberadamente selecionada e exaltada em alguns de seus aspectos. Para Rittner, o intimismo induz das formas da realidade uma idéia abstrata, mais perfeita do que a original. A realidade “deveria ser assim” e não “assim”, como seria numa visão realista. A idéia abstrata mais perfeita do que a realidade não torna o intimismo “menor”, mas, muito pelo contrário, fala-se, muitas vezes, melhor da realidade através da fantasia e da estilização. Diria mesmo que há uma possibilidade estética maior no intimismo do que no realismo “tout court”.
A própria realidade, no intimismo, é recriada em termos de poesia e de ternura e, por isso, quase se torna estática, desvitalizada, isolando os personagens de seu meio. É, no entanto, pela imobilização da realidade circunstancial que ointimismo se torna revelador, transformando o vulgar em invulgar, osuperficial em transcendente.
Com a barbárie estabelecida no consumo do produto cinematográfico, com ocinema transformado em “fast food”, o público solicita, hoje, mais a brutalidade e a ação do que a ternura e a poesia. Ri-se de certos momentos românticos dos filmes intimistas. Ri-se de forma esquizóide, nos dias que correm, da poesia e da beleza. Há, patente, uma preferência por um realismo quase naturalista do que pelo tratamento intimista dos personagens e das situações. Rir de uma obra como “Assim estava escrito” (“The bad and the beautiful”, 1953), de Vincente Minnelli, filme intimista, dá àquele que ri um atestado inconteste de imbecilidade congênita.
o exemplos de filmes intimistas: “Grande Hotel” (“Grand Hotel”, 1932), de Edmund Goulding, com Greta Garbo, John Barrymore, Joan Crawford, que saiu recentemente numa coleção de Dvds de um jornal paulista, , “Esquina do pecado” (“Back street”, 1932), de John M. Stahl, que dirigiu a primeira versão, em 1934, de “Imitação da vida”, “Anna Cristie” (idem, 1930), de Clarence Brown, com Garbo, “A dama das camélias” (“Camille”, 1936), com Garbo e Robert Taylor, “Adeus Mr. Chips” (“Good-bye Mr. Chips”, 1939), de Sam Wood, “Um lírio na cruz” (“Till we meet again”, 1944), de Frank Borzage, “Carta de uma desconhecida” (“Letter from a unknow woman”, 1948), de Max Ophul, com Louis Jordan e Joan Fontaine, “Por tua causa” (“Because of you”, 1952), de Joseph Pevney, com Loretta Young e Jeff Chandler, “Tarde demais para esquecer” (“Na affair to remember”, 1955), de Leo McCarey, com Cary Grant e Deborah Kerr, “Suplício de uma saudade” (“Love is a many splendored thing”, 1955), de Henry King, com William Holden e Jennifer Jones, entre muitos outros. E os grandes “sirks” já citados dos anos 50.

29 junho 2014

O surrealismo no cinema

Un chien andalou (1928), de Luis Buñuel e Salvador Dali
O cineasta, quando realiza um filme, traduz o real, e, no cinema, há, basicamente, quatro modos de representação da realidade: (1) o realismo e suas variadas vertentes (neo-realismo, realismo poético, realismo socialista...); (2) o idealismo (também conhecido como intimismo cujo apogeu se dá com a idade de ouro do cinema americano – anos 30 e 40); (3) o expressionismo (Alemanha nos anos 10 e 20); e (4) o surrealismo, que tem em Luis Buñuel a sua maior expressão. O grande público está mais acostumado com o realismo e o intimismo. Um filme surrealista sempre deixa nele uma impressão de confusão, pois habituado a ver tudo mastigado, com uma explicação racional e lógica para as artimanhas do enredo. Vamos ver aqui em rápidas pinceladas o que vem a ser o surrealismo no cinema.

O surrealismo parte de uma atitude revolucionária em filosofia, cujo verdadeiro objetivo não consistiria em interpretar o mundo, mas, sim, em transformá-lo. Na forma exposta por seu principal animador, André Breton, o surrealismo revela forte influência do materialismo dialético, dele retirando sua “lógica da totalidade”. Assim como o sistema social constitui um todo e nenhuma de suas partes pode ser compreendida separadamente, a arte não deve ser o reflexo de uma parcela de nossa experiência mental (a parcela consciente), mas uma síntese de todos os aspectos de nossa existência, especialmente daqueles que são mais contraditórios.

O surrealismo tenciona apresentar a realidade interior e a realidade exterior como dois elementos em processo de unificação, e nisto está sua capacidade de passar do estático para o dinâmico, de um sistema de lógica a um modo de ação, o que é uma característica da dialética marxista. O cinema se revelou como o instrumento ideal para a conquista da supra-realidade, pois a câmera é capaz de fundir vida e sonho, o presente e o passado se unificam e deixam de ser contraditórios, as trucagens podem abolir as leis físicas, etc.

Quando Buñuel apresentou, em Paris ,O Anjo Exterminador (1961), o exibidor lhe solicitou que escrevesse alguma coisa para colocar na porta da sala de exibição. Buñuel rabiscou o seguinte: “A única explicação racional e lógica que tem este filme é que ele não tem nenhuma”. Noutra ocasião, ao ganhar o Leão de Ouro de Veneza por A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1966), lhe perguntaram o significado da caixinha de música que um japonês carrega quando no quarto com Catherine Deneuve. O cineasta respondeu que não sabia. Assim, o espectador não pode racionalizar dentro de determinada lógica nos filmes surrealistas. É claro que os significados existem, amplos, dissonantes e insólitos. E por que os convidados aristocráticos de O Anjo Exterminador, ainda que não haja nenhum obstáculo que lhes impeçam de sair, não conseguem evadir-se da mansão? Um recurso surreal para a análise da condição humana, um laboratório criado para se investigar pessoas numa situação-limite.
           Excetuando-se alguns ensaios vanguardistas e sua fugidia presença em comédias de Buster Keaton, Jerry Lewis, Jim Carrey, em filmes de Carlos Saura (Mamãe Faz Cem Anos, etc), Jean Cocteau (O Sangue de um Poeta/Le sang d’un poete), entre poucos outros, o surrealismo cinematográfico está inteiramente contido emUn Chien Andalou (1928) e L’Age D’Or (1930), ambos do espanhol Luis Buñuel, com colaboração de Salvador Dali. A cena inicial do primeiro é famosíssima: o próprio Buñuel, após contemplar uma enorme lua prateada no céu, afia uma navalha e corta pelo meio o globo ocular de uma mulher que está sentada. No segundo, vemos um cão ser arremessado pelos ares, uma vaca deitada sobre a cama, um bispo e uma árvore em chamas sendo despejados por uma janela, situações de delírio erótico, baratas numa mão que toca pianola, etc.

A ambigüidade do termo surrealismo pode sugerir transcendência, predomínio da imaginação sobre a realidade. Seria pura imaginação de Séverine sua ida ao bordel todas as tardes? A rigor, isso não importa, A significação é mais ampla, conecta-se mais ao discurso do modo de tradução do real. O surrealismo pretendia um automatismo psíquico que expressasse o funcionamento real do pensamento. Você, caro leitor, às vezes não tem pensamentos indesejáveis? É o inconsciente. Assim, e isto é muito importante, o domínio do surrealismo é o que acontece na mente humana antes que o raciocínio possa exercer qualquer controle. O papa surreal André Breton dormia com um caderno em cima do criado mudo para anotar os seus sonhos, chamando, tal comportamento, de escrita automática.

O automatismo provocado pelo surrealismo implica numa transfiguração anárquica do mundo objetivo, cujo efeito imediato é o riso. Mas o humor, aqui, é uma nova ética destinada a sacudir o jugo da hipocrisia. E o sonho é encarado como uma revelação do espírito, sendo afirmada a sua riqueza sob o duplo ângulo da psicologia e da metafísica. Para chegar à consciência integral de si próprio, o homem tem de decifrar o mundo do sonho, pois deixá-lo na obscuridade representa uma mutilação do nosso ser.

Un Chien Andalou e L’Âge d’Or procuravam, pois, o homem integral, “buscando a recuperação total de nossa força psíquica por um meio que representa a vertiginosa descida para dentro de nós mesmos, a sistemática iluminação de zonas ocultas”, como consta do manifesto de Breton. Neles têm um papel saliente o grotesco, o cruel, o absurdo, tudo com um sentido de revolta e solapamento.

Segundo Breton, qualquer divisão arbitrária da personalidade humana é uma preferência idealista. Se o propósito é o conhecimento da realidade, devemos incluir nela todos os aspectos de nossa experiência, mesmo os elementos da vida subconsciente. Essa é a pretensão do surrealismo, movimento artístico que abrangeu além da pintura, escultura e cinema, também a prosa, a poesia, e até a política e a filosofia.