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09 abril 2014

"Nasce uma estrela" reinventa o CinemaScope

A Warner lançou no mercado um DVD duplo - já há algum tempo e parece que está esgotado - contendo a versão restaurada de Nasce uma Estrela (A Star is Born, 1955), de George Cukor, com interpretações inexcedíveis de Judy Garland e James Mason. Quando do lançamento do filme nos anos 50, a Warner, por achar excessivo um musical com três horas de duração, cortou 27 minutos, desfigurando, com isso, esta obra-prima. Há pouco mais de dez anos, um abnegado pesquisador do American Film Institut pediu ajuda à Academia de Artes e Ciências de Hollywood a fim de que esta solicitasse à Warner uma permissão para que o pesquisador desse uma busca nos depósitos da companhia. Atendido ao pedido, este começou a procurar e acabou por encontrar os 27 minutos cortados. Estragados, precisou restaurá-los, ficando três minutos apenas em fotos fixas pela impossibilidade de revivê-los no celulóide. Esse DVD duplo, portanto. é uma preciosidade, pois o resgate de um filme extraordinário, que assinala a maior interpretação de Judy Garland no cinema. Ela, na época, estava profundamente depressiva - sempre dependendo de álcool e barbitúricos e, para conseguir trabalhar no filme, fez um esforço enorme para se livrar das drogas. Tem um desempenho maravilhoso como Vicky Lester, a cantora que, descoberta por Norman Mailer (James Mason, soberbo), ator famoso de Hollywwod, e que se apaixona por ela, ascende ao estrelato enquanto Mailer, derrotado pelo alcoolismo, vê a sua decadência. Enquanto ela sobe, ele cai. É a segunda versão - e a melhor - dessa história - a primeira, dos anos 30, foi feita por William Wellman, com qualidades inegáveis já que este diretor era um especialista, mas a terceira, de Frank Pierson, com Barbra Streisand, de 1975, é um lixo. 

O cinemascope, que a Fox introduzira em 1953 em O Manto Sagrado (The Robe), mas que já havia sido inventado pelo francês Henri Chrétien há algumas décadas, não tinha ainda sido utilizado com um propósito estético e linguístico determinado até que Cukor fizesse Nasce uma Estrela. O cineasta revolucionou o cinemascope e mostrou uma utilização extraordinária de sua amplitude retangular em função do tecido dramatúrgico. O que pode ser verificado no número no qual Garland conta a sua trajetória - um dos maiores e melhores da história do cinema, que dura 18 minutos e foi, na versão anterior, cortado pela Warner, mas que na cópia do DVD está completamente restaurado. É preciso, porém, que a versão do DVD contemple toda a extensão da tela anamórfica, ou, então, seja formatado. Tudo em A Star is Born é uma promoção do encantamento, da beleza, apesar do tom trágico do final. É um filme sobre a mise-en-scène e, também, sobre o drama do alcoolismo, que se estende, aqui, para o drama da própria condição humana. 

Por pensar em Nasce uma estrela, há filmes que podem ser vistos em DVD sem perder, por assim dizer, a sua 'aura'. E outros que, no disquinho, são maltratados, perdem a sua integridade, havendo interferência no espaço da totalidade de seus enquadramentos. A experiência de se estar numa sala escura, e de ver um filme na tela grande, é fundamental. Quando se assiste ao DVD, há, no processo de comunicação entre a emissão e a recepção, 'ruídos indesejáveis - a pequenez da tela, pessoas que passam, o telefone que toca, um familiar que pergunta, que fala etc. No 'texto' imagético propriamente dito, há os problemas da diminuição e da preparação psicológica daquele que vê o vídeo. Numa sala escura, o espectador prepara-se para ela. É verdade que existem os aficionados mais atentos - como este comentarista - que, por respeito à obra cinematográfica e porque acha que toda atenção é pouca, não assistem ao vídeo em sala de estar familiar, reservando-se para a calada da noite, quando todos estão nos braços de Morfeu. E podem ficar, sozinhos, a fruir o espetáculo. Mas como se ia dizendo, há filmes que satisfazem em vídeo e outros que são destruídos. Exemplos: filmes realizados em planos fechados e que se passam em interiores podem ser vistos em vídeo. Já obras que exploram grandes espaços, têm muitos planos gerais e de conjunto são prejudicadas na fita magnética. E existe o problema do filme originariamente filmado em cinemascope. Como sentir 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, na pequenez do aparelho doméstico? É simplesmente impossível. Neste caso, tem-se, apenas, uma idéia do filme. 


Se não fosse pelo aparelho de DVD, o cinema do pretérito somente poderia ser visto em cinematecas. E como aqui na Bahia não existem estas, o baiano ficaria a ver navios. Se, por um lado, a visão de um filme em digital não se pode comparar à sua contemplação na sala escura de um cinema, por outro, o cinéfilo tem a oportunidade de ver em  DVD - em alguns casos - quase toda a obra de um realizador importante, de estudá-la, de repetir as cenas, as seqüências, etc. Há, no mercado, quase três dezenas de fitas de Alfred Hitchcock. A nova geração, sem o advento do vídeo, estaria condenada a desconhecer grandes e imprescindíveis clássicos do cinema. Além do DVD, uma perspectiva se abre com as televisões a cabo e por assinatura que possuem canais especializados em filmes bons e importantes, funcionando como verdadeiras cinematecas. Já passou o tempo em que se faziam sacrifícios memoráveis para se ver um filme por acaso perdido no circuito. 

06 abril 2014

O lobo de Wall Street

The Wolf of Wall Street

Comentário crítico do Professor Jorge Moreira sobre o último filme de Scorsese.
Atualmente, me parece que existem poucas dúvidas que o cineasta Martin Scorcese é um dos grandes conhecedores do universo cinematográfico estadounidense, isto é,  de um conjunto de elementos,  instrumentos, e  técnicas que são fundamentais para a produção e realização fílmica nos EUA. Desde esta perspectiva, o filme The Wolf of Wall Street,  é mais uma prova da grande capacidade e  habilidade de Scorcese para dirigir filmes de sucesso dentro da grandiosa escala ampliada de produção da industria cultural e do entretenimento do capitalismo estadunidense.
Um dos âmbitos onde se pode observar essas qualidades  está na elaboração dos elementos da forma fílmica do filme The Wolf of Wall Street. Como ilustração desta capacidade podemos mostrar dois elementos da forma fílmica que são sabiamente explorados por Scorcese neste filme: 1) o uso destacado do comentário voice-over do protagonista Jordan Belford (algumas vezes Jordan até aborda  a própria câmera de cinema narrando diretamente suas façanhas na construção de uma companhia de investimento corrupta e voraz) funciona eloquentemente para destacar o abuso de poder (sem limites) e a arrogância (extrema) do capitalista Belford que o personagem representa; 2)  o ritmo frenético do filme trata de duplicar a estonteante velocidade da circulação do dinheiro e do capital via especulações e apropriações indevidas, dentro do mercado de capitais e do sector financeiro dos EUA.
A história do protagonista Belford (adaptada do livro autobiográfico de Jordan Belford) evoca  a forma da novela picaresca espanhola, um género literário da maior importância na história da literatura ocidental, pois tem funcionado para expressar, entre muitas outras coisas, a luta de indivíduos das classes subalternas para medrar nas  sociedades divididas hierarquicamente em diferentes classes sociais.
O filme contem um conjunto de características que pode-se associar ao género comédia grotesca, do qual procura obter  a risada superficial e fácil de espectador  pouco exigente. Mas se analisarmos o filme de Scorcese desde a perspectiva de uma ideologia contra hegemónica, muito dessa alegria de primeira impressão se desmancharia porque, entre outras coisas, também é  possível observar que o filme de Scorcese celebra, gratuitamente, a honestidade  duvidosa e muito questionada pela sociedade, do  U.S. Federal Bureau of Investigation (FBI). 
Fundada e dirigida pelo poderoso Edgard Hoover (considerado hoje como um dos mais corruptos ex-funcionários dos EUA), a representação do FBI como o espaço do exercício da eficiência, da honradez, da honestidade e da justiça é simplesmente  ridícula. Para os que estão bem informados sobre a história das instituições ligadas à Secretaria de Justiça dos EUA, nada poderia  provocar (contra a apologia de Scorcese) mais risadas. Sem ir muito longe, poderíamos perguntar a Scorcese,  quais são (foram) os resultados das investigações do FBI  sobre os escandalosos assassinatos de John F. Kennedy, do seu irmão Robert Kennedy, de Martin Luther King Jr., de Malcom X, por exemplo.
Mas  o objetivo de Scorcese de criar um estilo e tonalidade de comédia grotesca no filme é parcialmente frustrado, na minha opinião, pelas cenas de violência explicita cometidas por Jordan Bedford e associados contra os subalternos: 1) contra o empregado homossexual que é acusado de roubar 20.000 dólares da casa do patrão; 2) contra a segunda esposa de Belford, quando este trata de raptar a filha para tirar vantagens  do jogo destrutivo de poder entre ele e a esposa no negócio (business) do divórcio  entre eles.  No geral, o filme mostra, direta ou indiretamente, a crueldade e a violência psicológica dos dominadores contra todos os subalternos.
Mesmo que Scorcese trate de amortizar a violência do protagonista contra a  mulher e o homossexual (coisa difícil para um diretor viciado em ganhar muito dinheiro com a frequente exibição da violência dos seus filmes), o espectador ainda poderá deduzir que o uso da violência explicita pelo protagonista contra estes dois tipos de subalternos, não pode ter sido um fato ocasional ou casual. Muito pelo contrário, o espectador poderá deduzir que a violência implícita e explícita do personagem é uma das vias “normais” para a acumulação e concentração do capital pelo capitalista estadounidense, ou seja, é uma das vias preferidas para  centralizar a riqueza  humana nas mãos dessa minoria exploradora e absolutamente inescrupulosa.
Se comparo o filme The Wolf of Wall Street com o documentário Inside Job, poderia afirmar que depois de assistir Inside Job e constatar (mesmo reconhecendo limitações ideológicas deste documentário) o papel obsceno e destrutivo das  autoridades do governo e dos representantes do capital financeiro nos EUA,  eu não teria a menor necessidade de assistir The Wolf of Wall Street,  pois o filme de Martin Scorcese não acrescenta ou ensina nada de significativo sobre o tema da apropriação indevida do dinheiro dos investidores pelos lobos de Wall Street.
Assim, o filme The Wolf of Wall Street poderia ser identificado como mais uma narrativa de Scorcese para monumentalizar um bando de  indivíduos sociopatas,  psicopatas, mafiosos e criminosos que tem assegurado a riqueza, o sucesso e a  glória pela utilização da voracidade e violência animalesca do dominador, do egoísmo sem limite do explorador e do individualismo feroz do opressor. Mas o filme de Scorcese também poderia ser  identificado como  mais uma impotente narrativa incapacitada para denunciar o sistema capitalista, como o maior responsável pela produção destes monstros funcionais na reprodução da nossa atual sociedade. E uma das evidèncias dessa impotência do filme é a sua incapacidade de apresentar sequências  de cenas (nem sequer uma sequència em todo o filme) mostrando o resultado destrutivo das ações de tipos como Jordan sobre as vítimas deste sistema baseado nesta gigantesca apropriação fraudulenta. Assim, o filme, fica reduzido a exibir exclusivamente  um dos polos  da luta social,  escondendo, anti-dialeticamente, a situação do polo oprimido da luta de classes dentro do capitalismo.
      O poder político de indivíduos como Jordan Belford e o poder de sua psicologia individualista sobre a sociedade somente poderiam ser denunciados se o filme também mostrasse o ponto de vista das vítimas dessas operações ilegais que são premiadas pelo capitalismo. Assim, o filme de Scorcese  é incapaz não somente de mostrar  o ponto de vista das  vítimas que foram prejudicadas diretamente pela ações de Jordan Belford e seus associados como também é incapaz de mostrar o gigantesco prejuízo que eles causam direta e indiretamente a milhões e milhões de trabalhadores desempregados, explorados e oprimidos pelo sistema capitalista nos EUA.
Em sínteses, me parece necesseario afirmar que acabo cansado e aborrecido de assistir a esse tipo de filmes. Eles apresentam e narram o sucesso de indivíduos inescrupulosos (verdadeiras excrescências sociais) mas não se preocupam em denunciar o tipo de sistema económico-social que produzem e promovem estes tipos de excrescências a mais alta posição hierárquica dentro da sociedade capitalista. Em poucas palavras, o filme The Wolf of Wall Street apresenta a psicologia individual como base explicativa para a absurda atuação desses indivíduos na sociedade, mas é incapaz de apresentar os fatores sociais, econômicos e políticos que explicariam porque estes personagens  são produtos bem sucedidos do sistema capitalista.

Assim a ausência, no filme de Scorcese, de cenas mostrando o funcionamento de um sistema social fundado na propriedade privada dos meios de produção e de vida (cujo objetivo e móvel fundamental é produzir lucros, juros, dinheiro e riqueza para esta classe de proprietários) impede que o espectador compreenda que é devido a lógica do sistema capitalista que determina e demanda a existência e funcionamento bem sucedido desta classe de indivíduos nos EUA. Somente através da falta de denuncia do sistema socioeconómico capitalista (fundado na divisão de classes sociais e na exploração, opressão e exclusão da maioria dos seres humanos da riqueza social), tipos inumanos como Jordan Belford (o protagonista de filme) podem também ser bem sucedidos e glorificados num filme como The Wolf of Wall Street.