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23 janeiro 2010

Blog do Hamilton Correia

Figura lendária da crítica de cinema na Bahia, Hamilton Correia teve, por muitos anos, uma coluna diária no jornal soteropolitano Diário de Notícias, além de programas em rádio e televisão. Quando editou o seu famoso suplemento literário, publicou um artigo de um jovem meio abusado que se chamava Glauber Rocha. Hamilton Correia, embora muita gente disso não saiba, é o introdutor do autor de Deus e o diabo na terra do sol na imprensa. Amigo de Walter da Silveira, um dos maiores ensaístas de cinema no Brasil, ajudou a programar o Clube de Cinema da Bahia e, um belo dia, indo a Recife, descobriu ninguém menos do que Ingmar Bergman, que passou a ser programado no clube soteropolitano. Aposentado, continua a ver filmes e filmes. É um grande amante do cinema como expressão da arte. Mas a novidade é que, aderindo ao espaço virtual, resolveu fundar um blog. Antes, porém, gostaria de ressaltar que Hamilton, hoje, é um colecionador de cartazes preciosos de filmes importantes da história do cinema. Quem se interessar em adquiri-los basta escrever para ele: hamiltoncorreia@terra.com.br
Mas vamos comigo ao site: http://www.hamiltoncorreia.blogspot.com

20 janeiro 2010

Mostra de Cinema de Tiradentes

Já se encontra em sua décima-terceira edição a Mostra de Cinema Tiradentes, evento cinematográfico que se consolidou como um dos mais importantes do Brasil. Tem início na sexta próxima, dia 20, e irá até 30 de janeiro, com mostras de filmes, oficinas, seminários, mesas redondas etc, uma verdadeira jornada para quem quiser acompanhar como anda o cinema brasileiro contemporâneo. Ao contrário da maioria dos festivais, que se caracterizam mais pela festa, a Mostra Tiradentes, sobre ser um evento quase paradisíaco pela sua localização numa cidade histórica, é uma mostra concentrada não somente na exibição das últimas novidades da cinematografia nacional, mas revestida de um imenso debate sobre a linguagem, a estética e a economia do cinema que se faz neste país.

Fui convidado para participar do júri de filmes de jovens cineasta, o Aurora, e devo estar ausente a partir de domingo, dia 14, quando viajarei para a paisagem de Guimarães Rosa, e, volto no outro domingo, dia 31. Já fui a Tiradentes há exatos quatro anos, quando participei, lá, de um seminário sobre crítica de cinema. A organização do evento é exemplar e tem à frente a dinâmica Raquel Hallak, que, com o sucesso alcançado em Tiradentes, já consolidou outros, como o de Ouro Preto e Belo Horizonte.


Maiores informações no site da mostra: http://www.mostratiradentes.com.br/
Clique na imagem para vê-la melhor.

18 janeiro 2010

Rubem Biáfora, pois não?


Dezembro de 1979. Nesta época, estava no Rio de Janeiro e precisei ir a São Paulo resolver um negócio. Hospedei-me no Hotel Central, que fica na Avenida São João. Mas não pude solucionar a questão que me levou a SP pelo fato de a pessoa, com a qual deveria me encontrar, ainda que combinado o encontro, teve de viajar de repente. Assim, restei-me sozinho, e sem fazer nada, no citado hotel. Comentarista cinematográfico diário do jornal Tribuna da Bahia, lembrei-me de ter recebido uma carta do cineasta Juan Bajon (que não conhecia) sobre o lançamento de seu filme, O estrangulador de mulheres, em Salvador. Visto o filme, e considerando a gentil missiva, recortei a página, na qual estava estampada minha crítica, e a mandei ao realizador, pois tinha gostado do filme, principalmente pelo seu lado bizarro e insólito (enterro de baratas, etc). E, vale ressaltar, nunca mandei nada para ninguém. Nunca tive o hábito de recortar artigos para enviá-los. Mas, surpreendentemente, talvez pela carta pessoal - o que não é também hábito dos realizadores, bastando aos críticos os releases das distribuidoras, resolvi isto fazer. Bajon me respondeu em várias folhas datilografadas (naquele tempo computador era peça de Millor Fernandes).

Assim, no quarto do Hotel Central, vi, no criado-mudo, um grosso catálogo de telefone, e resolvi procurar o nome de Juan Bajon. Qual não foi a minha surpresa quando, achando-o, telefonei e ele, muito receptivo, disse-me que o esperasse em cinco minutos. Menos do que isso, o telefone toca me anunciado que, na portaria, tinha uma pessoa como o nome de Juan Bajon a me esperar. Desci e o encontrei. Um rapaz em torno de trinta anos, chinês, que me recebeu com bastante efusividade. Fomos a um bar na Avenida São João, e tomei algumas cervejas, ainda que Bajon não bebesse. Convidou-me, então, para almoçar no bairro da Liberdade, onde mora quase toda a colonia de nipônicos. Conversamos bastante e, de tarde, levou-me à rua do Triunpho, lugar do nascimento e estabelecimento da famosa Boca do Lixo, quando ele me apresentou a vários cineastas. Resolvi me sentar num daqueles bares, e, totalmente em ócio, continuei a tomar minhas cervejas, desfrutando do ambiente. A las cinco de la tarde, Juan Bajon se despediu, convidando para me levar ao hotel. Fiquei, no entanto, a continuar o processo etílico começado. Mas disse, taxativo, que iria, no outro dia, me apanhar às dez horas no hotel para irmos ao apartamento de Rubem Biáfora, que disse ser seu amigo. Gostei da idéia, pois Biáfora, para mim, aos 29 anos, era um mito.

Durante a rolagem de pensamentos que ocorre sempre quando se bebe sozinho, achei que Bajon, apesar de simpático, tinha um anti-comunismo feroz. Esquerdista que era, não gostei muito disso. Contou-me que sua família, por burguesa, tinha sido massacrada pelas tropas de Mao-Tsé Tung. Estava, no entanto, mais preocupado em conhecer o famoso Biáfora. Fui para o hotel e ainda, neste, tomei, no quarto, mais cervejas, compradas em latas grossas na avenida - ainda não havia as latinhas leves e práticas. Acordei de ressaca pelo telefone, cujo recepcionista me informava da chegada de um tal de Juan Bajon. Falei com ele e pedi, desculpando-me, para que esperasse dez minutos, pois tinha, ainda, que tomar banho.

Fomos andando para o apartamento do severo crítico. Antes de entrar, Bajon se dirigiu a um telefone público, comunicando a nossa subida. E ao sairmos do elevador, já estava Biáfora a nos esperar. Não podia acreditar: Gervásio Rubem Biáfora em pessoa. Entramos e ficamos a conversar. Biáfora me recebeu com muita gentileza e disse ter gostado de meu comentário sobre O estripador de mulheres. Percebi, então, que Bajon realmente tinha amizade com o crítico. Irônico, lembro-me que falou mal da frase de Paulo Emílio Salles Gomes, quando afirmou que o pior filme brasileiro era melhor do que qualquer filme estrangeiro, achando-a uma bobajada (sic). Não estou, aqui, fazendo juízo de valor nem concordando com o crítico, mas constatando fatos. Recordo-me que contou que dias atrás tinha ido a um cinema ver Procura insaciável (Taking off), de Milos Forman, com sua colega do Estado de São Paulo, Pola Vartuk - que já morreu, e ficou estupefato quando esta, na seqüência em que todos fumam maconha, engoliu as orelhas de tanto rir. Achou que uma senhora daquela idade não deveria ficar tão efusiva. Mas sempre rindo. Muita conversa rolou até que falei de Walter Hugo Khoury. Biáfora, então, disse que era seu vizinho e telefonou para ele a perguntar se poderia dar um pulo acompanhado de um jornalista baiano. Khoury concordou e pediu, apenas, meia hora, pois estava na banheira. Biáfora me disse que quando o realizador de Noite vazia acordava tinha o hábito de ficar na banheira por um bom período de tempo.

Subindo o elevador , a porta deste se abre diretamente no apartamento de Khoury, não havendo , portanto, hall. Khoury nos recebeu no seu imenso espaço, e eu, Biáfora, Bajon, conversamos bastante, apesar de um certo acanhamento característico de minha personalidade, que se poderia traduzir por timidez. De repente, de um dos quartos, aparece Sandra Bréa, que estava trabalhando com ele em O convite ao prazer. Finda a visita, estávamos já na rua, quando Biáfora nos convida para almoçar num restaurante italiano ali perto. Fomos. Iria viajar à meia-noite de ônibus para voltar ao Rio de Janeiro e já tinha fechado a conta no Hotel Central. Depois do almoço, resolvi me despedir para andar pelas ruas de São Paulo até o anoitecer, quando iria para a rodoviária esperar o ônibus. Ciente do fato, Biáfora, terminada a refeição, convidou-me para descansar um pouco em seu apartamento. Bajon, lembro-me, não nos acompanhou porque estava com um parente muito doente. Na entrada do prédio, o porteiro disse que tinha ali uma encomenda para ele. Era um álbum de fotografias americano, fotografias de atrizes famosas, as divas do cinema, como Greta Garbo, em imagens ricamente iluminadas. Já no apartamento, não tive vontade de descansar, e Biáfora me mostrou os cadernos manuscritos onde anotava os filmes que via, com fichas completíssimas, comentários, etc. Quando falei de minha admiração por Moniz Vianna, Biáfora, incontinenti, pegou do telefone e ligou para ele, que concordou em me receber quando estivesse no Rio. Perguntei como, antigamente, conseguia as fichas técnicas já que as distribuidoras não as forneciam assim tão completas. Disse-me que anotava tudo dentro do cinema. Via o filme e, depois, na outra sessão, ficava a anotar.

Bem, para quem não sabe, Gervásio Rubem Biáfora foi um dos grandes críticos de cinema dos anos 50, 60 e 70. Também realizador, dirigiu, entre outros, dois filmes que merecem, porque muito bons, uma revisão: Ravina e O quarto, este último, para mim, o seu melhor trabalho, que foi injustamente desprezado pela crítica ideológica.

17 janeiro 2010

Os elementos da fábula


Se a narrativa possui as suas estruturas-tipo, a fábula também se apresenta sob a forma de lugares narrativos bem reconhecíveis. As estruturas da narrativa têm a ver com a organização do discurso enquanto que os lugares narrativos da fábula se referem às modalidades em que a história está representada dentro das coordenadas espácio-temporais do texto fílmico. Aparentemente, na multiplicidade das construções narrativas, esconde se apenas um número limitado e repetido de situações dramáticas. À primeira vista, e a grosso modo, pensa-se que todo filme conta uma história diferente. Daí vem a necessidade de se aplacar esta impressão de multiplicidade – uma ilusão! – através de um mecanismo redutor que faça esclarecer os arquétipos do gênero fabulístico. Com maior frequência, quatro são os mais utilizados lugares narrativos na fábula: a viagem, a educação sentimental, a investigação, e o elemento deflagrador.

(1) A viagem. É o topos – configurações que o material narrável adota no plano da dispositio – que ostenta os mais ilustres precedentes, a começar pela Odisséia, de Homero, até On the road, de Jack Kerouac. É também o mais congenial ao cinema que sempre mostrou uma predileção particular por histórias tendo por tema a descrição de um itinerário físico durante o qual, entre mil dificuldades e imprevistos, o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento. Ou, como se pode também dizer: do pecado à salvação. A viagem é pontuada por etapas que se constituem em estações de um percurso interior que conduz do Erro inicial à Verdade final. É isso que se vê, por exemplo, em O Sétimo selo (Det sjunde inseglet, 57), de Ingmar Bergman, onde os encontros reveladores efetuados pelo cavaleiro Antonius Block durante a sua viagem de regresso da cruzada levam-no, gradualmente, a descobrir o valor da solidariedade humana e, com isso, a superar a condição de crise que o afeta. Os dois meninos que procuram o pai na Alemanha em Paisagem sobre a neblina, do grego Theo Angelopoulos, percorrem, na viagem de busca, estações e, com elas, descobrem o mundo com a presenciação da dor e do sofrimento e da solidão. Do mesmo modo, em O soldado azul (Quando é preciso ser homem/The soldier blue, 71), de Ralph Nelson, a necessidade de atravessar o território índio em companhia de uma mulher branca permite ao protagonista descobrir os valores de uma civilização antes considerada inferior e compreender que os verdadeiros selvagens são, afinal, os soldados do seu regimento enviados para arrasar a aldeia dos peles-vermelhas.

Variante do topos é o motivo da fuga que, sendo semelhante ao precedente, se distingue dele por uma maior funcionalidade crítica. A fuga pode ser devida a razões externas (necessidade de afastar-se de uma situação de perigo ou, então, de perseguir de modo aventuroso aquilo que é proibido pela legalidade) ou a razões interiores de natureza existencial (intolerância de uma dada condição humana e procura de uma vida melhor). Em O viajante (Voyager, 93), de Volker Scholoendorff, o protagonista interpretado por Sam Shepard foge da vida por meio de viagens aéreas tomadas ao acaso, vivendo uma trajetória permeada de aeroportos.O exemplo bem típico do primeiro caso – fuga devida a razões externas – é o de O fugitivo (I’m a fugitive from a chain gang, 1932), de Mervyn Le Roy, que mostra um inocente que foge e é encarcerado numa prisão e que, fugindo desta novamente, tem de continuar errando pela noite como um perseguido sem nenhuma perspectiva de retorno a uma vida normal. Também em A Louca escapada (The sugarland express, 74), de Steven Speilberg, um casal tem de afrontar as perseguições da polícia para recuperar a criança que lhe foi tirada por infâmia.

No segundo caso – fuga devido a razões internas – insere-se a fuga para um mítico Alasca tentada pelo protagonista inquieto de Five easy pieces (Cada um vive como quer, 1970), de Bob Rafelson, que espera encontrar um modelo de vida alternativa àquele obrigado a seguir e que não considera autêntico. Jack Nicholson é o intérprete que personifica o personagem andarilho em busca de uma identificação bem típica dos anos 60 e corolária do movimento paz e amor.

Existe também, dentro dos assim chamados lugares narrativos da fábula, um outro tipo de fuga chamado de gratuita cuja característica principal está num desejo de afirmação do eu e do desafio às normas sociais. Ainda: a fuga metafísica de causas reais desconhecidas e interpretável como metáfora do destino humano. Na fuga gratuita, o exemplo marcante é encontrado em Corrida contra o destino (Vanishing point, 1970), de Richard Sarafian, uma louca corrida através dos Estados Unidos feita de automóvel pelo personagem, uma fuga que termina pela autodestruição espetacular do homem. Já em No limiar da liberdade (Figures in a landscape, 70), de Joseph Losey, e em Encurralado (Duel, 73), de Steven Spielberg, há, no primeiro, uma fuga planetária – os protagonistas estão envolvidos, sem uma razão visível, e sob a ameaça de um estranho helicóptero numa corrida desenfreada – e, no segundo, uma fuga absurda – um homem foge desesperadamente de um gigantesco caminhão que o persegue pelas estradas.

Há, ainda, outros tipos de fugas como as de Geena Davis e Susan Saradon em Thelma & Louise (idem, 90), de Ridley Scott, ou a empreendida pelo protagonista de Com o passar do tempo (Im lauf der zeit, 76) de Wim Wenders, que, destituído de passado e futuro, percorre a Alemanha exclusivamente imerso na, por assim dizer, dimensão existencial do dasein heideggeriano. Neste caso, a narrativa renuncia a qualquer conotação dramática e limita-se a registrar com um gosto fenomenológico o comportamento do herói seguido nas suas incessantes deslocações espaciais. A fuga, aqui, apresenta a vagabundagem como uma condição normal do protagonista, como resultado de uma opção de vida coerente e consciente. Uma característica, aliás, do cinema wendersiano: Alice nas cidades (Alice in den stadten, 73), Movimento em falso (Falscher bewegung, 75), entre outros. Um outro lugar narrativo – topos – é o que se pode definir por educação sentimental. Se nos topos da viagem o desenvolvimento narrativo se faz no espaço, tem-se, na educação sentimental, um desenrolar-se no tempo.

(2) A educação sentimental. A tomada de consciência opera-se graças a um itinerário que já não é mais horizontal mas vertical, considerando-se que neste topos se se reporta aos fenômenos psicológicos ligados à passagem de uma idade do homem para outra. O arco de tempo analisado pode ser mais ou menos longo consoante a quantidade e a qualidade das experiências narradas pela fábula. Além disso, a educação dos sentimentos pode ser apresentada segundo o seu desenvolvimento real ou, então, ser objeto de reinvocação por parte de quem a protagonizou. Em ambos os casos é contemplada pelo autor numa perspectiva mais ou menos autobiográfica, com a diferença de que, enquanto na primeira hipótese – a do seu desenvolvimento real – há uma pretensa objetividade que tende a fazer desaparecer esta característica autobiográfica, na segunda, a identificação entre o cineasta/autor e o protagonista da ação fica a descoberto. Em Os incompreendidos (Les quatre-cents coups, 59), de François Truffaut, existe uma melancolia eivada de um sentimento patente de nostalgia pela idade das ilusões anterior ao princípio do realismo ligado à dimensão adulta, qualquer que seja o período da vida em que tal princípio se afirma. Já em O mensageiro (The go-between, 71), de Joseph Losey, a reinvocação da passagem traumática do mundo das ilusões para o da realidade é confiada ao protagonista direto dessa dolorosa transição.Este topos – arquétipo no qual se assentam muitos filmes – tem sua origem em Gustave Flaubert. Na primeira versão de A educação sentimental (1845), ainda sob o impacto da experiência amorosa que tivera na adolescência, o jovem Flaubert confere um desenlace feliz à sua paixão, acreditando ainda que, para conquistar a felicidade, bastaria desejá-la com toda a força. Anos mais tarde, ao redigir a segunda versão da obra (1869), já na idade da razão, reconhece o engano de sua mocidade e inicia o livro com uma saudosa evocação de Elisa Schlesinger (a Sra. Arnoux do romance), lembrando, com ternura, até os pormenores de seu vestuário para finalizar com a melancólica despedida de Frédéric Moreau (nome que atribui a si próprio no enredo) à amada impossível.

(3) A investigação. Baseia-se na reconstrução a posteriori de um acontecimento obscuro sobre o qual há que fazer luz. Os instrumentos utilizados podem ser os clássicos da investigação policial ou os mais recentes do inquérito jornalístico ou, se se quiser, cinematográficos. O móbil comum revelador é apreendido por meio de fragmentos soltos que, organizados, propõem o denominador comum. A fábula apresenta-se, aqui, como o lugar da desordem que tende a encontrar a sua explicação unitária para além da aparente casualidade dos acontecimentos descritos. É ao esquema do inquérito policial que obedecem filmes como A marca da maldade (Touch of evil, 58), de Orson Welles e A Besta deve morrer (Que la bête meure, 70), de Claude Chabrol. No filme de Welles, a procura do assassino está animada por um sentimento de legalidade oficial: numa cidade de fronteiras entre os Estados Unidos e o México, instaura-se uma rivalidade entre dois policiais, o americano Quinlan (Welles) e o Vargas (Charlton Heston) num caso de drogas e crimes. No filme de Chabrol, a procura do assassino é movida por um desejo de vingança privada. Inspirados no inquérito jornalístico e no filmado se encontram, respectivamente, O Bandido Giuliano (Salvatore Giuliano, 61), de Francesco Rosi e O Homem de mármore (Czlowiek z marmur, 79), de Andrzej Wajda, o primeiro procurando fazer luz sobre a morte do bandido siciliano, enquanto o outro se preocupa na reconstituição da verdadeira história de um “herói do trabalho” do período stalinista desaparecido imprevistamente das crônicas do regime.

Ainda há um derradeiro lugar narrativo da fábula: aquele a que se recorre com maior frequência a ponto de não ser quase percebido como tal. O esquema em que o Bem e o Mal são eternamente contrapostos numa estrutura narrativa o mais elementar possível. Tal conflito, na realidade, para além de poder assumir um dos aspectos exteriores até aqui examinados, também pode ser representado de modo linear e segundo uma progressão dramática facilmente previsível pelo espectador. Em tal caso, o bom pode vestir as roupas de uma personagem histórica que tenha realmente existido como Aleksandr Nevsky no filme homônimo (Aleksandr Nevsky, 38), de Serguei Eisenstein, ou ser personificado por um herói lendário como Shane (Os Brutos também amam/Shane, 53), de George Stevens. Em ambas as circunstâncias, os códigos fílmicos procuram exaltar a figura empenhada na benemérita tarefa de destruir o Mal nas suas repetidas encarnações históricas e meta-históricas: a música, os fatos e até a cor fazem uma simpática apologia ao herói e, em contrapartida, exprimem toda a sua reprovação pelo malvado mau.

(4) O elemento deflagrador. Talvez não se possa definir o elemento deflagrador como um lugar narrativo da fábula mas é uma constante e uma presença marcante nos arquétipos da narrativa. Trata-se do elemento que vem de longe e deflagra, com sua aparição, um processo de transformação no meio social no qual se intromete. A chegada de Shane, cavaleiro misterioso, cujo passado é desconhecido, provoca uma metamorfose na localidade, revelando para os seus habitantes e, principalmente, para o menino Joe, sua mãe e seu pai, a família na qual Shane pousa por um tempo, uma força estranha e poderosa capaz de mudar o statu quo. O anjo de Teorema (idem, 67), de Pier Paolo Pasolini, também é, na fábula, um elemento deflagrador da transformação de uma família burguesa italiana que, depois de sua misteriosa aparição, toma rumos inesperados após o contato sexual do anjo com todos os familiares e inclusive a empregada: o pai, desesperado, doa a fábrica aos operários; a mãe, ensandecida, procura, como prostituta em desespero, homens pela rua; o filho se torna um pintor abstrato; a filha entra em estado catatônico, e, por fim, a empregada, saindo da casa onde trabalha, volta às origens numa localidade interiorana onde levita, ascendendo ao céu e transformada em santa.O elemento deflagrador é um arquétipo do qual se valem muitos filmes. Em Férias de amor (Picnic, 54), de Joshua Logan, o personagem interpretado por William Holden, um forasteiro, um estranho, chega a um vilarejo interiorano dos Estados Unidos e provoca, no dia da Festa do Trabalho, quando tem lugar um piquenique, um verdadeiro cataclisma. É a força que vem de fora e causa transtornos na aparente tranquilidade de uma sociedade onde os preconceitos, recônditos, eclodem à menor faísca.