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26 outubro 2007

Joseph Losey, "by the way"



Já publiquei este post há exatamente um ano pouco antes do insulto cardíaco que me acometeu e que me fez passar por via crucis hospitalar até que duas pontes do suspiro fossem instaladas nas minhas coronárias plenas de estenose. Limitado em meus vícios secos e molhados - nada mais prazeroso do que fumar e beber ao mesmo tempo e quando se fuma, sabem os doutos na matéria, fica-se no paraíso, principalmente quando a fumaça que invade os pulmões, os futuros pulmões cancerosos e enfisemáticos, diga-se, assim, de passagem, vem acompanhada de generosos goles de uma boa cerveja tipo Heineken ou Carlsberg naquelas garrafias verdes, as quais, carinhosamente, chamo-as de minhas queridas. Mas o fato é que o Losey abaixo já foi postado, mas creio que vale a reprise, ainda que esteja, agora, sem meu amigo, o cigarro, e me contendo para não ir à esquina para tomar uma cervejinha. Como se pode ver, o blogueiro, apesar de seus sofridos 57 anos, ainda pensa em coisas que façam mal à saúde. Gostei muito da atitude de Paulo Autran quando, pouco antes de morrer, pediu um cigarro ao médico para fumar e morreu com o semblante satisfeito. Viva o cigarro, a bebida, e o colesterol mau, aquele ruinzinho. Viva a picanha gordurosa. É interessante observar o esquecimento a que Losey está relegado. A platéia que se diz cult e que tem orgasmos com os almodovares da vida sequer sabe quem é Losey. Prometi que ia fazer uma investigação na ficha filmográfica de Lelouch, mas não tive tempo. Mas o assunto está em pauta.
Losey, apesar de sua fleugma, que o faz parecer um britânico nato, nasceu nos Estados Unidos, em Wisconsin, La Crousse, em 1909. Se estivesse vivo -morreu em 1984 - teria a provecta idade de 98 anos. Membro de uma família de ascendência holandesa, quando ingressa nos estudos superiores opta por duas carreiras bastante distintas: medicina e teatro. Logo, porém, a segunda fica no centro de suas preocupações, atuando, como intérprete, em peças alheias e, em 1930, findo seus estudos, dá-se a conhecer como um excelente crítico teatral. Da teoria, todavia, Losey passa, logo, à práxis, funcionando como diretor, metteur-en-scène, em The Living Newspaper (1936), influenciado, nesta ocasião, pelas teorias de Piscator e Bertold Brecht. Do teatro para ocinema, um pulo: em 1937 supervisiona mais de 40 documentários educativos para a Fundação Rockefeller e, realiza curtas autorais, e, trabalhando, para seu sustento, ao mesmo tempo, numa rádio, Losey desponta para a crítica como diretor teatral com a adaptação de Galileu, Galileu, de Bertold Brecht, considerada, até então, a melhor versão no proscênio da peça de Brecht. Após o triunfo de Galileu é que vem o cinema propriamente dito, o cinema ficcional, de longa metragem, com caráter profissional. Dore Schary o convida, em 1948, para dirigir The boy with green hair (O menino dos cabelos verdes), uma fábula humanista acerca do racismo latente em uma coletividade. O Fugitivo de Santa Maria (The Lawless, 49), seu filme seguinte, insiste sobre o mesmo tema, mas com uma chave realista, pois o primeiro está cheio de metáforas e símbolos na fabulação. O menino dos cabelos verdes e O fugitivo de Santa Maria revelam o cineasta Joseph Losey como um realizador original e singularmente apto para restituir a pulsação lírica de alguns estados de ânimo. Assim, The boy with grenn hair contém o que não nos é dado com freqüência observar - uma mensagem de solidariedade humana, de tolerância, de paz, e The lawless, rodado numa pequena cidade do norte da Califórnia, expõe, através de uma narrativa um tanto descontrolada, a dramática situação desta localidade, quando um dos rapazes do bairro mexicano, tomado de pânico após esmurrar um policial, rouba um carro, foge desesperadamente e é acusado de vários crimes (entre os quais o de tentar violentar uma jovem estudante) no decorrer de sua perseguição. A população mais "respeitável" da cidade, indignada com os acontecimentos, percorre as ruas agredindo a pauladas outros mexicanos e empastela o único jornal da região, cujo editor resolvera defender a causa do fugitivo.

Em 1950, O cúmplice das sombras (The prowler), que significa um passo importante na sua carreira ao transcender um tema melodramático - um policial que seduz a uma mulher depois de assassinar o marido - para realizar um profundo estudo psicológico da condição humana de um personagem, a evidenciar Losey, neste filme, como um seguro realizador no controle da técnica naturalista e uma exatidão extraordinária na apresentação psicológica dos personagens. A seguir, no mesmo ano, M, o maldito, nova versão do célebre filme de Fritz Lang, que lhe permite descobrir outra de suas facetas: a faculdade de uma fusão expressiva entre o cenário e o seu protagonista. A maior parte da história e muitos dos arranjos de câmara são conservados e, quase cena por cena, o filme americano segue o alemão. As modificações principais se referem à época e ao local, com a transferência da ação de 1929 para 1950, e de Dusseldorf para uma cidade não identificada dos Estados Unidos. Em ambos, porém, o cenário é o mesmo: uma cidade agredida e aterrorizada por um psicopata cuja especialidade é matar meninas, após captar-lhes a confiança, sem uma pista a seguir, sem um delator, e que invade diariamente o bas-fond. Depois de M, Losey faz The big night, onde Robert Aldrich aparece como figurante: um dos espectadores da luta de boxe.

Em O homem que o mundo esqueceu (Stranger on prowl), filme que se segue a The big night na filmografia de Joseph Losey, a ação está situada em um porto não identificado, que apenas se sabe, pela insistente focalização de suas ruínas, ter sido duramente atingido pela guerra, num passado próximo. Um estranho percorre as ruas faminto e sem esperanças e, mais tarde, se vê perseguido e encurralado como se fora um animal por ter morto acidentalmente a dona do armazém que ameaçava entregá-lo à polícia ao surpreendê-lo com umpedaço de queijo na mão. Dois anos depois, 1954, O monstro de Londres (The sleeping tiger), com Dirk Bogarde (que mais tarde seria um ator constante do cineasta), com Losey a amargar o exílio forçado (é vítima do estupidez maccartista e taxado de 'comunista', deslocando-se para a Europa), assinando a fita como Victor Hanbury. Um homem em desespero (The intimate stranger, 56), assinado, também com pseudônimo, parece refletir a angústia do exílio. E a partir de A sombra da forca (Time without pity, 57), cuja fotografia é de Freddie Francis (o mesmo de Cabo do medo), o realizador já se sente mais livre para assinar seu próprio nome. Thriller policial britânico, apesar de realizado por um norte-americano, tem a britanicidade necessária para que se não lhe perceba a origem direcional: atmosfera sufocante, rictus narrativo, imagens rápidas, cheias de emoção visual e personagens enfocados oniricamente. Após o que, Losey realiza Por amor também se mata (The gypsy and the gentleman), de 1957, com Melina Mercouri e Patrick MacGoohan. Em 1959, um filme muito acima de sua média, e que muitos críticos consideram um de seus momentos altos: Entrevista com a morte (Blind date), com Hardy Kruger, Stanley Baker. Jovem pintor holandês em Londres leva à sua amante um ramalhete de violetas, mas não a encontra em casa e, de repente, chega a polícia. Há impressão de kafkanismo na narrativa com a tensão se fazendo à custa de um equívoco produzido pela usurpação de identidade da vítima. A direção de Losey se mostra menos preocupada com a trama policial do que com o exame psicológico de dois de seus três personagens centrais. Um filme que marca a presença de um autêntico cineasta.The damned, de 1962, nunca foi exibido nos cinemas brasileiros, restringindo-se a uma histórica exibição na TV Tupi do Rio de Janeiro em março de 1973, com o título de O mundo os condenou. Losey, entretanto, já se encontra, dois anos antes, com alta cotação entre os críticos, principalmente porque The criminal revela um realizador inusitado, estilista admirável. Mas é com Eva que a admiração total a Losey se estabelece de maneira definitiva, e seu nome se inclui, definitivamente, na galeria dos grandes cineastas. Com Jeanne Moreau, Stanley Baker, Virna Lisi, Eva é o ponto mais grave de uma acidentada carreira, pois a fita mais ambiciosa, concebida sem preconceitos e realizada num regime de absoluta liberdade de criação. Talvez seja Eva ainda a resultante dos estímulos recebidos por Losey de um grupo compacto da crítica francesa, que o elegeu um dos seus ídolos, para o seu espanto e estupefação, com o elogio descontrolado de suas obras menores. Um ano antes de O criado, que é de 1963, Eva tem uma narrativa pictoricamente sufocante por causa da poderosa beleza da iluminação de Gianni di Venanzo, um artista da luz.

Obra de mestre, obra-prima, O criado (The servant), com Dirk Bogarde e JamesFox, traduz bem a relação hegeliana do senhor e escravo. É o melhor filme de Losey, um trabalho exemplar, que se encontra, de repente e para surpresa de todos, em DVD. Vi o filme nos bons tempos do Cinema 1 em Copacabana. O criado é representativo desse enfoque de personagens cuja transparência de status social só tem igual na opacidade psicológica. Tony (James Fox), um jovem e sedutor aristocrata britânico, contrata um camareiro, Barrett (Bogarde). Como observou o ensaísta francês Claude Beylie, "A fábula é límpida: herdeiros de um mundo condenado, o escravo torna-se amo e vice-versa. Losey deleita-se com o espetáculo desse processo inexorável de degradação. Aí encontramos aquela 'exigência em perpétuua tensão' de que falava Michel Mourlet a propósito de À sombra da forca."
A seguir, um inédito em território brasileiro: King and country. Depois uma brincadeira satírica em tom descontraído: Modesty Blaise, com Monica Vitti, Terence Stamp, 1966, uma sátira ao bondianismo, desta vez colocando, como a heroína, uma mulher, e movido por chave irônica em linguagem de história em quadrinhos. E posteriormente uma quase obra-prima: Estranho acidente (Accident, 67), análise de comportamentos e de idiossincrasias, pintura ácida (como de hábito) de um meio corrompido (desta vez o acadêmico), com, novamente, Bogarde e o Stanley Baker de tantos filmes. O casal Burton reviveria Tennessee Williams em Boom (O homem que veio de longe), que se passa nos interiores do elizabetano palazzo onde tudo é ostentação. Vieram a seguir: Cerimônia secreta (Secret cerimony, 1968). No limiar da liberdade (Figures in a landscape, 1970), O mensageiro (The gobetween, 71, Palma de Ouro em Cannes), O assassinato de Trotsky, 1973), Casa de bonecas (A doll's house), com Jane Fonda, baseado em Henrik Ibsen, Galileo (74), A inglesa romântica (The romantic englishwoman, 74), Cidadão Klein (76), Don Giovanni. Em Cerimônia secreta, uma mulher (Mia Farrow, recém chegada de Rosemary's baby) adota uma prostituta (Elizabeth Taylor) como sua mãe. Segundo Losey, Secret cerimony é um filme sobre a terrível necessidade que os seres humanos têm uns dos outros e a incapacidade que todos temos de nos satisfazer." Moral da história: dois ratos caem num balde de leite. Um morre afogado. O outro debate-se a noite inteira e acorda na coalhada.

25 outubro 2007

Obra insólita e de inusitada importância



Filme impressionante, O pântano (La cienaga), de Lucrecia Martel, que vem da Argentina e que me surpreendeu – não tive oportunidade de vê-lo nos cinemas e somente agora, em DVD, pude confirmar os tantos elogios que estava a receber. Martel é uma realizadora insólita, que surpreende, perturbando-nos, a mostrar a vida nos seus gestos mais insignificantes. Não há propriamente uma história para ser contada, mas o que se dá é um registro da existência, de seus momentos melancólicos, contemplativos, perdidos. É como se fosse, o filme, uma espécie de radiografia de um ambiente no qual residem pessoas sem perspectivas, desesperadas, apáticas. O que interessa está nas expressões, nos gestos e na própria monotonia. Martel consegue pegar instantes de vida com sua câmera. Espectadores, contemplamos o vazio das várias criaturas, mas a capacidade da realizadora em auscultar a vacuidade é que faz valer O pântano como algo sem paralelo no cinema contemporâneo. O ranger das cadeiras de ferro, ao redor da piscina, logo no início, e também no fim, é sinalizador de um trabalho de som aplicado à significação. O som (o ranger, ruído que aborrece, que atormenta) é usado, portanto, com genial aplicabilidade dentro do discurso cinematográfico a que se propõe Lucrecia Martel, porque é como se o ranger das cadeiras falasse e, com isso, proporciona quase o que vem a seguir. Ranger de pessoas maltratadas pela vida. Ranger de objetos. Estes, por exemplo, desde uma simples cuba de gelo, deixam de ser os objetos em si para se dimensionar diferentes na estrutura significante dessa obra-prima. Vou pegar um outro filme de Martel, que localizei numa locadora, Menina Santa. Deve ser tão estranho e tão bom como La cienaga.
Lucrecia Martel é esta aí, que está ao lado do texto. Mulher inteligente e, coisa rara, com faro de cineasta.

Que seja bem-vindo Claude Lelouch!


Esnobado por uma crítica truculenta e pernóstica, como lembra brilhante artigo de Leon Cakoff na Folha de S.Paulo, (cuja leitura se faz obrigatória: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2410200723.htm, Claude Lelouch nunca foi perdoado por ter feito sucesso, ainda que tenha, em sua fimografia, filmes notáveis, a exemplo de Um homem como poucos (Le voyou), Toute une vie, Um homem e uma mulher, A dama e o gangster (La bonne année), Retratos da vida (Les uns et les autres), Ilya des jours e des lunes, etc. Espero, ainda nesta semana, se tempo tiver, fazer um levantamento da rica filmografia desse cineasta emocionante. Sempre gostei dos filmes de Claude Lelouch, que era visto sempre e sempre com reservas pela crítica dona da verdade. O ser crítico, neste particular, é um chato, que corta a emoção do sentir. E Lelouch, por ser um realizador notável no estabelecimento de uma mise-en-scène, na qual a mobilidade de câmera, féerica, aliada à particura musical, poucas vezes no cinema tão funcional, ficou sendo um realizador quase desconhecido para a nova geração. Vou continuar em outro post a falar de Lelouch. Ele se encontra em São Paulo, convidado para a mostra internacional de Cakoff. Muito pouca coisa na imprensa foi escrita sobre ele.
A crítica (por sinal assunto para um post mais aprofundado) exerce uma espécie de patrulhamento sobre muitos pobres cinéfilos, que ansiosos pelo status de críticos e entendidos da coisa, ficam a concordar com a chamada autoridade crítica dos jornais e revistas mais abalizados e considerados. Já vi muita gente, antes de ver determinado filme cultuado, dizer, ainda na bilheteria, que o filme é genial. Respeito mais a opinião de um sapateiro que conheci quando criança, e que ia todos os dias aos cinemas poeiras soteropolitanos. Por intuição, naquela época, quando ainda existia sapateiros (e era o sapateiro de minha família), sabia, este consertador de sapatos, perceber um corte específico, um travelling denunciador, uma panorâmica nostálgica e bucólica, a perceber o in crescendo da estrutura narrativa. É verdade que existem críticos sérios e bons, e confesso ter sido formado por alguns, a exemplo de Walter da Silveira e Moniz Viana (duas quantidades heterogêneas, mas que me importaram sobremaneira), mas, por outro lado, existem muitos que se dizem críticos e são pernósticos, pedantes, confundindo obscuridade com profundidade. Destes procuro me afastar. E são estes que acham Claude Lelouch um diretor sem nenhuma importância.
Após o que está escrito, verifiquei que o link somente dá acesso ao artigo de Leon Cakoff àqueles que têm assinatura do UOL. Assim, e sem pedir licença à Folha, resolvo transcrevê-lo por julgá-lo importante e oportuno. Abro as necessárias e obrigatórias aspas:
"As evidências são flagrantes. Há menos espectadores seguindo críticos, e há menos críticos empenhados na formação de platéias. Críticos e cinéfilos precisam reaprender que filmes e seus autores podem existir independentemente de suas opiniões. Críticos e cinéfilos precisam parar de querer educar os cineastas com suas opiniões ou desconsiderações excludentes. Vamos promover uma discussão sadia e necessária. Afinal, sem os críticos não haveria história do cinema. O cinema escrito e pensado é também base de nossa formação e muitas vezes ajuda a traduzir o que não vemos. Críticos devem conduzir filmes e seus pensamentos com as fragilidades requeridas. Não devem entregar produtos aos consumidores finais já destruídos na embalagem. Devem deixar a própria vida sedimentar os fragmentos de filmes que dão base a nossos conceitos e sabedorias. Os filmes devem voltar a ser vistos como materiais de construção. Não é por acaso essa discussão sobre a crise da crítica e da cinefilia. A 31ª Mostra Internacional de Cinema lança (em parceria com a editora Cosac Naify) "A Rampa", com textos exemplares do crítico Serge Daney (1944-1992), escritos entre 1970 e 1982 para os "Cahiers du Cinéma". Para embasar essa discussão, conseguimos reunir os dois elos do movimento que significou o resgate da credibilidade da mítica revista francesa com os seus leitores-cinéfilos. Os prefácios de "A Rampa" são assinados por Serge Toubiana, contemporâneo de Redação de Daney, hoje presidente da Cinemateca e do Museu de Cinema de Paris, e por Jean-Michel Frodon, atual redator-chefe dos "Cahiers". Toubiana vê em Daney o seu ponto forte pela "capacidade de inventar e unir, a partir da visão de um filme, um corpo-linguagem que permita dialogar com o autor, transcender a visão subjetiva do filme e conduzi-la a um nível de inteligência superior". O que Serge Daney fez é exemplar. Ele limpou os templos do cinema de seus profanadores, dos afetados ideológicos que nem sequer permitiam a divulgação de fotos como os talebans de hoje. Daney resgatou a vocação dos "Cahiers" com textos apaixonados por cinema ao reagir contra uma Redação afetada pelas infantilices ideológicas, precisamente do nefasto maoísmo e sua raivosa revolução cultural excludente. Graças à coragem de Daney, Frodon herdou uma revista mais livre de preconceitos. Ainda experimental, mas aberta a todos os segmentos do cinema. E é dele a observação no livro de que o "canteiro de obras teórico" de Daney recompôs a rampa que separava o palco/tela das platéias. Vítimas da críticaMas a discussão não se encerra com os bons exemplos do passado e suas heranças. Vamos ver o que acontece dentro da própria seleção da 31ª Mostra, onde temos um novo filme de Manoel de Oliveira e um novo de Claude Lelouch. Ambos fazem quase que um filme por ano, só que Oliveira não faz o sucesso que merece, e Lelouch faz (o sucesso que merece). Ambos são vítimas de uma boa parcela da crítica, inconformada com as suas existências. Só que o insucesso de Oliveira se consegue justificar, e o sucesso de Lelouch, não. É óbvio que Manoel de Oliveira não faz um filme primoroso do ponto de vista dos que têm o cinema como referência de ação. Mas ele é um pensador que se vale do cinema como instrumento de reflexão. Há críticos que fazem chacota de Oliveira e de seus defensores, como se fôssemos sustentáculos de uma mentira indefensável. Num outro segmento há críticos inconformados com sucessos que fogem de seu controle. E é obvio que Claude Lelouch, embora faça um cinema primoroso, apegado a emoções, desagrade a uma categoria de críticos inconformados pela traição das platéias à sua cartilha de verdades dogmáticas. Pode haver absurdo maior do que críticos ignorarem um autor como Claude Lelouch por ele fazer sucesso de público, contrariando todas as suas vontades? A própria Folha se recusou a pautar uma entrevista com Lelouch nesta sua passagem pela Mostra. Não existe nem "crise de cinefilia", muito menos "perda da credibilidade da crítica", contesta-me o crítico da Folha Cássio Starling Carlos no caderno Mais! de 14/10. Como prova, cita revistas e sítios na internet "com uma produção inquieta e estimulante de idéias". Sugiro que, na sua próxima resenha de um filme de Lelouch, ele dê um link a esses endereços que ousaram ouvir o que Lelouch tem a dizer sobre afeição pelo cinema. "
LEON CAKOFF é diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

23 outubro 2007

Todo dia ela faz tudo sempre igual

O título, sugestivo, é de uma música de Chico Buarque de Holanda, e o filme é a primeira incursão de Ludmila Olivieri como diretora, como metteur-en-scène. Trata-se de um curta na bitola 35mm, que está sendo realizado como se fosse um longa tal a organização de sua produção. Conta com Elizabeth Savalla como a sua atriz principal.
Ludmila há anos participa de filmes e peças teatrais, além de trabalhar em programas de televisão. Mas Todo dia ela faz tudo sempre igual é a sua oportunidade de mostrar a sua visão de cinema, a sua têmpera como organizadora e regista das imagens em movimento.
Alguém pode sugerir alguma familiaridade com o autor deste blog por causa do sobrenome dela: Olivieri. Sim, apesar de assinar, o bloguista, André Setaro, seu nome todo, na verdade, é André Olivieri Setaro. O que significa dizer que Ludmila é minha prima. E mais não digo, mais não conto.
Apenas sugiro que se faça uma visita ao site dedicado ao filme de Ludmila, onde se pode ter maiores informações:

22 outubro 2007

Gosto não se discute



GOSTO de tudo que faz mal à saúde, de excentricidades, de cinema (claro!), de louras, morenas e ruivas, de andar pela praia até o Leblon, da Bahia quando era uma província e tudo se concentrava no centro histórico, do cinemascope do antigo Guarany que virou Glauber Rocha e já desapareceu, dos espelhos da sala de espera do extinto cinema Liceu, de Machado de Assis de quem sou leitor voraz, lendo e relendo sempre a sua obra completa da Aguillar, da Pousada de Cachoeira quando era administrada pelo estado, da rua Chile, de tomar cerveja a las cinco de la tarde no Restaurante e Bar Cacique, olhando a estátua do poeta na Praça Castro Alves, de tomar um cafezinho para fumar (antes do maldito enfarte ocorrido há quase um ano, mas nunca a ficar em atitude antitabagista politicamente correta), de barzinhos, de Robert Altman, de rever sempre Cidadão Kane, de Orson Welles, de todos os filmes de Alfred Hitchcock, de toda a grande literatura do século XIX, de paz e sossego, de ouvir trilhas dos mestres Miklos Rosza, Bernard Herrmann, Ennio Morricone, Max Steiner, Victor Young, David Rastkin, Georges Delerue, Michel Legrand, etc, da Bossa Nova, dos anos dourados com fixação em 1958, ano marcante que escolheria para permanecer, do sex-appeal de Melanie Griffith, da doçura de Catherine Spassk, de BB, da sensação inusitada de esperar uma namorada que se atrasa e que, com isso, exerce o seu poder sobre o outro, da atmosfera romântica, da matéria de memória - recordar é viver, dos bondes de antigamente que percorriam a velha cidade de Salvador, de andar a pé, da noite e seus mistérios, de pessoas que vivem nela, de comprar jornais e cheirá-los, de bancas de revistas, de livrarias empoeiradas, de sebos, da abertura mágica de La Dolce Vita com aquele helicóptero sobrevoando a Cidade Eterna levando consigo uma estátua de Cristo, dos pretéritos bate-papos no Café das Meninas da Rua da Ajuda, das Lojas Duas Américas e do Magazine Florenzilva, da Praça da Piedade, quando se podia ficar sentado horas e horas absorto, da imagem de Brigitte Bardot secando ao sol em ...E Deus Criou a Mulher, de Roger Vadim, da maneira de ser de Cary Grant, de churrascarias e carnes mal passadas e sanguinolentas, da insustentável leveza do ser (mas do estado de espírito e não do livro nem do filme), de sentir medo, do teatro de Nelson Rodrigues, de Tartufo e de tudo que Molière escreveu, de Tom Jobim que é, para mim, o maior compositor brasileiro de todos os tempos, dos comentários críticos de Inácio Araújo da Folha de S. Paulo sobre cinema, dos artigos do psicanalista riograndense Rubem Alves, dos arcanos da memória que permitem buscar o tempo perdido, do talento de Merryl Streep, das comédias de Frank Tashlin, da Comédia Humana, de Honoré de Balzac, de beber no Bar Espanha em Itaparica, de viajar ao redor de minha cama e em torno de mim mesmo, de casas coloniais e suas alcovas, de túneis subterrâneos, de mistérios indecifráveis, de frio intenso de rachar os ossos se bem agasalhado e com aquecimento, do non sense, de Bergman e sua profunda compreensão da tragicidade da existência, da cidade (Rio de Janeiro) onde nasci e que a deixei, para vir morar em Salvador, em tenra idade, do prazer proporcionado por um belo filme como Deus Sabe Quanto Amei, de Vincente Minnelli, da atmosfera desenvolvimentista e otimista dos anos JK, quando na Bahia emergiu uma efervescência pujante em todas as artes e, principalmente, no cinema, com o Ciclo Bahiano e filmes como A Grande Feira, Tocaia no Asfalto, ambos de Roberto Pires, e Barravento, de Glauber Rocha, entre outros, dos grandes concertos em tempos idos na Reitoria da UFBA, do Teatro Vila Velha e do Passeio Público na década de 60, do bar Avalanche, que formou, no Canela, à rua João das Botas, uma geração de biriteiros do primeiro time - no qual me incluo, de praticar o saudável exercício de levantar copos, do cinema americano dos anos 40 e 50, a época dos grandes mestres - Hawks, Aldrich, Nicholas Ray, Frank Tashlin, Vincent Minnelli, Stanley Donen, Alfred Hitchcock, George Cukor..., da inesquecível cinematografia italiana desse mesmo período - Visconti, Fellini, Antonioni, Rossellini..., cuja produção atual é um reflexo pálido e anêmico daquela época, da maestria de Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi - seu Contos da Lua Vaga/Ugetsu Monogatari é um dos maiores filmes que já vi, Kaneto Shindo, Masaky Kobayashi, Ozu..., de Ingmar Bergman, um pensador que se utiliza do cinema como veículo de reflexão, de todo o espírito da Nouvelle Vague, do saudoso SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do Brasil), de ficar olhando para os bicos dos meus sapatos, de contemplar a vida, do ócio...


NÃO GOSTO de ficar sentado na praia, excetuando-se quando sentado em barraca a tomar a geladinha, de FHC e do tucanato que deixou o Brasil sem patrimônio, do PT atual e do governo Lula, da farsa do Plano Real, dos governistas do PMDB, de telefone celular, de gente conversando na sala de exibição, pior ainda se atendendo chamadas, de pipocas sendo mastigadas por mandíbulas afoitas, de euforias despropositadas na saída de filmes asiáticos, de pseudo-cinéfilos, da mania do novo pelo novo, do desprezo pelo passado, confundindo o pretérito como nostalgia, do Shopping Iguatemi em dia de sábado, de entrar em lojas para comprar roupas ou sapatos, de livrarias que se transformaram em fast-food, que me perguntem quais são os bons filmes da semana, da erotização criminosa da infância nos programas televisivos, da dança da garrafa, de Xuxa, da exaltação futebolística, de rock da pesada, de Georges W. Bush e seu direitismo raivoso, considerando-o o pior presidente dos Estados unidos desde a sua gloriosa Independência, de comer carangueijo com martelo para ficar com as mãos todas meladas e as impressões digitais no copo da cerveja, de casas noturnas com som alto quando é impossível se manter qualquer interlocução, da estética do videoclipe aplicada à narrativa cinematográfica, de micreiros, dos oportunistas de plantão, dos chatos de galocha - mas quem gosta?, de chuva quando estou saindo, mas a adoro quando em casa ou dormindo, de burburinho, das crônicas do Macaco Simão, de pegar em coisas gordurosas, de naturebas xiitas, de fingimentos e hipocrisias, dos festivos, do industrializado Carnaval baiano, da palavra contemporaneidade, da mania de se transformar tudo em discurso, da proximidade da folia momesca, de calor, de filmes chatos metidos a obras de vanguarda, da estética da sujeira como conditio sine qua non da rebeldia com causa, de conversas no msn, salvo para tratar de algum assunto importante...
Sabem o que é a imagem postada? Um quadro de Renoir. E precisaria dizer?

21 outubro 2007

Minnelli: príncipe da sofisticação e elegância






Já publiquei esta pequena homenagem a um dos meus diretores favoritos, Minnelli, mas o domingo está melancólico, e, além do mais, chuvoso. A beleza dos filmes de Minnelli talvez possa ajudar a dirimir a melancolia.
Em 1903, nasce em Chicago (Illinois) Vincente Minnelli, que vem a morrer em 1986, aos 83 anos de idade, considerado um dos maiores diretores do cinema americano de todos os tempos. Ainda pequeno, apenas a iniciar o seu conhecimento do mundo, aos 3 anos, atua na companhia paterna Minnelli Brothers Dramatic Tent Shows, especializada em espetáculos de vaudeville. Adolescente, o jovem Minnelli estuda decoração e trabalha como fotógrafo em um estúdio de Chicago, revelando, desde já, o gosto pela coreografia e pela composição. O circuito Balaban & Kats lhe contrata como decorador e figurinista, trabalho que desempenha até ser nomeado diretor artístico do Paramount Theatre de New York e do imponente Radio City Music Hall. Distante de sua terra natal, e com residência permanente em New York, dá início ao trabalho de direção de balés e espetáculos musicais na Broadway (At home abroad, Ziegfeld Follies, The show is on, etc). Em 1937, contratado pela Paramount, muda-se para Hollywood e, três anos depois, a MGM, o estúdio de maior envergadura na época, tira-o da empresa onde trabalha para ficar full time a seu serviço. Louis B. Mayer, acompanhando seus projetos na Paramount, vê em Minnelli um futuro promissor em seu estúdio, considerando que este é o que mais investe em musicais.
Na MGM, Minnelli leva a cabo um profundo aprendizado em todos os departamentos de produção. Para assumir a direção, basta, apenas, uma oportunidade, que lhe é chegada com o convite de Arthur Freed (famoso produtor de musicais, entre eles Cantando na chuva) para dirigir, em 1942, Uma cabine no céu (Cabin in the sky), fantasia musical sobre as comunidades negras do sul. Todos os historiadores do filmusical americano não têm dúvida ao afirmar que o gênero se transforma radicalmente com a chegada de Minnelli à Hollywood, pois o seu gênio faz integrar os elementos ficcionais da história com a música e as canções. Estas se tornam o próprio assunto do filme. Grande especialista em espetáculos musicais, Vincente Minnelli, após conceber Agora seremos felizes (Meet me in St. Louis, 1944), O ponteiro da saudade (The clock, 1944), Yolanda e o ladrão (Yolanda and the thief, 1946), e O pirata (The pirate, 1947) ¿ que exerce influência poderosa em Gene Kelly, que, aqui, trabalha ao lado de Judy Garland, a qual se casa com o realizador, encantado que fica Minnelli pelo extraordinário talento dessa cantora e atriz única, revoluciona o gênero, inaugurando, com eles, uma nova escola do musical cinematográfico, que logra seus títulos oficiais de nobreza com Sinfonia de Paris (A american in Paris, 1951), filme pelo qual recebe o Oscar de melhor direção, que voltaria a ganhar em 1958 por Gigi. Martin Scorsese, em sua aula sobre o cinema americano, que saiu completa em três vídeos, destaca, entre as suas seqüências preferidas, a de Meet me in St. Louis, quando a menina, numa noite de Natal, ao saber que vai sair de sua cidade, quebra todos os bonecos de neve que ela constrói no quintal. Há, nesta seqüência admirável, uma conjunção musical e dramática poucas vezes superada. Em Sinfonia de Paris, que tem roteiro assinado por Alan Jay Lerner (My fair lady), com a partitura recheada de George Gershwin, um pintor americano (Gene Kelly), que vive em Paris, é cortejado por bilionária (Nina Foch), mas gosta de uma linda moça (Leslie Caron), que, no entanto, é noiva de seu amigo francês (Georges Guétary). Segundo o historiador francês Georges Sadoul, trata-se de um cine-balé que não é uma revista em estilo de teatro de revista, mas uma ópera cujas danças e músicas fazem parte de uma ação dramática. A coreografia, criada por Gene Kelly, é esplendorosa, principalmente nos 17 minutos finais, quando presta uma homenagem aos grandes mestres franceses: Toulouse-Lautrec, Raoul Dufy, Utrillo, Renoir, etc. Minnelli, porém, não se consolida apenas como um brilhante diretor de filmes musicais.
Em sua extensa filmografia, podem ser distinguidas três vertentes: a do musical, que tem em A roda da fortuna (The band wagon, 1953) sua obra mais perfeita, a que se deve aplicar o termo obra-prima do gênero, a dos dramas ásperos e desesperados, cujos exemplares mais notórios são Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953), Deus sabe quanto amei (Some came running, 1959), A cidade dos desiludidos (Two weeks in another town, 1962), entre outros, e a da comédia agridoce, que se inaugura com O papai da noiva (Father of the bridge, 1950), passando por Chá e simpatia (Tea and sympathy, 1956), Brotinho indócil (The reluctant debutante, 1958) entre outras, até atingir a sua culminância absoluta em Papai precisa casar (The courtship of Eddie's father, 1963) - considerada por muitos minnellianos talvez a sua obra maior, comédias que constituem um dos testemunhos mais lúcidos e agudos da burguesia americana.
Para o colunista ou, melhor, bloguista, os melhores filmes de Minnelli são: Deus sabe quanto amei, Assim estava escrito, Papai precisa casar, A cidade dos desiludidos, e A roda da fortuna. No primeiro, obra-prima absoluta, lancinante radiografia do american way of life em que Minnelli, num drama áspero, tenso, utiliza elementos do filmusical, resultando, com isso, uma mise-en-scène deslumbrante, de pura estesia, principalmente perto do final, quando da perseguição num parque de diversões. Neste momento supremo do cinema minnelliano, que reflete a trágica invasão da realidade num mundo ideal onde os personagens pensam em se refugiar, as cores, os objetos, as pessoas e o espaço são praticamente coreografados; e quase nunca se vê, na estética da arte fílmica, um testemunho tão intenso da eficácia de um autor que se utiliza dos elementos componentes da linguagem cinematográfica de maneira tão marcante. Neste filme, misteriosamente desaparecido de circulação, cujo título em português nada acrescenta a sua excelência, antes ridicularizando-o (o original Some came running quer dizer como uma torrente), um romancista volta à sua cidadezinha natal para reencontrar o irmão rico, Mas, a seu lado, viaja uma prostituta que se apaixona por ele. Com Frank Sinatra, Dean Martin e Shirley McLaine, todos inexcedíveis. Se Billy Wilder, no expressionista Crepúsculo dos deuses (Sunset boulevard, 1950), oferece um retrato crítico de Hollywood, Minnelli, em Assim estava escrito, o consegue superar não somente pelo elo semântico - a força do tema - como pelo elo sintático - a mise-en-scène que, sobre ser a de Wilder impecável, atinge aquilo que alguns estetas chamam de maravilhoso. Não dá, aqui, neste espaço, para falar de The bad and the beautiful, tal a sua riqueza, tal a sua imensa beleza. Em poucas palavras: um escritor (Dick Powell), uma atriz (Lana Turner), e um diretor(Barry Sullivan), recordam em flash-backs como um famoso produtor (Kirk Douglas) os traiu. Partitura de alto nível de David Raksin. Papai precisa casar é um primor de comédia, a maior, sem dúvida, do autor, no gênero.
Encontra-se aqui toda a maturidade de um mestre do cinema, que sabe equilibrar, com uma fluência assustadora, os elementos da linguagem, a utilizar, com engenho e arte, o espaço e o tempo cinematográficos. Realizada em 1963, no apogeu da desconstrução, quando a crítica mais enragé exige dos filmes uma rigorosa falta de linearidade, Minnelli, desprezando as circunstâncias, e, com isso, fazendo valer o seu modo de fazer cinema, recusa-se à abdicação do linear. O resultado é mais que perfeito, ainda que, o filme, alta voltagem como cinema, como arte, como testemunho, como comédia que sabe deliciar o espectador, passe despercebido pelas autoridades que carimbam o atestado de valor. Glenn Ford é um viúvo que se vê às voltas com três lindas mulheres que o cercam. Seu filho, um garoto de 10 anos (o futuro diretor Ron Howard), o ajuda na escolha, O trio é esplendoroso: Shirley Jones, Dina Merrill e Stella Stevens, que vem a trabalhar nesse mesmo ano em O professor aloprado, de Jerry Lewis.
No magistral A roda da fortuna, Tony Hunter (Fred Astaire), no ocaso de sua carreira, regressa a New York, onde é recebido por seus velhos amigos. Minnelli sinaliza, aqui, já em 1953, no ocaso do personagem interpretado por Astaire, num rasgo premonitório, a decadência do filmusical. A roda da fortuna tem alusões e citações, e o autor, avant la lettre, introduz, no cinema, a referência. Os antigos colegas do dançarino projetam montar um grande espetáculo na Broadway, com uma bailarina clássica, Cyd Charisse. A princípio desconfiado, Astaire, no entanto, com o desenrolar das situações, acaba por se apaixonar por ela. Um famoso diretor, Jeffrey Cordova (interpretado por Jack Buchanan) transforma o espetáculo numa pomposa versão musical de Fausto, expressionista e pedante, que redunda em estrondoso fracasso. Astaire, porém, tenta reformula-lo com a ajuda de Charisse e consegue, na remontagem, um êxito surpreendente. Apogeu admirável da primeira etapa das experiências de Minnelli, filme-síntese, portanto, A roda da fortuna oferece uma imagem da vida pública e privada dos artistas que fazem o espetáculo. A sua atração, porém, reside nos pequenos, mas significativos, detalhes do cotidiano dos bastidores, em notações autobiográficas e satíricas. Mas onde o filme alcança sua dimensão mais específica está na singular identificação entre Fred Astaire e seu personagem, talvez a expressão mais acabada do mito pessoal do grande bailarino em números admiráveis como, logo no início, com o engraxate, e a dança de amor no parque - com uma Cyd Charisse na plenitude de suas faculdades. A culminação espetacular do filme se encontra no balé Girl Hunt - brilhante e violenta sátira dos filmes de detetive e do chamado cinema noir, que, sem nenhuma dúvida, é um dos mais completos e inteligentes números musicais da história do cinema.
Na vertente dos dramas ásperos, além de Assim estava escrito, um outro, que lhe parece uma espécie de continuação, e de impacto extraordinário, é A cidade dos desiludidos, de 1962. A história gira em torno de Jack Andrus (interpretado por Kirk Douglas), que, após temporada de descanso numa clínica, é chamado por Kruger (Edward G. Robinson), que está, em Roma, dirigindo um filme. Jack toma o avião e vai se encontrar com o amigo, ainda que amargurado e deprimido pela vida. O contato, no entanto, com a doce beleza de Dahlia Lavi, e a volta à atividade profissional, oferece-lhe a possibilidade de recomeçar de novo, ofertando-lhe um novo ânimo, de libertar-se de suas obsessões e das amargas lembranças de sua mulher (Cyd Charisse). Mas há um acidente de percurso com o ataque cardíaco de Kruger, que fica impossibilitado de trabalhar e Jack se vê obrigado a assumir a direção do filme. A chegada da ex-esposa, no entanto, e o stress do trabalho, levam Jack a uma crise. Contornada, e definitivamente curado, Jack retorna aos Estados Unidos para recomeçar sua carreira de diretor. O título original do filme, traduzido, é Duas semanas em outra cidade, tempo que Jack passa em Roma. Um ator (Douglas) e um diretor (Robinson) vivem encerrados em um mundo de sonhos para escaparem da realidade de seus fracassos. Mas somente o primeiro consegue se libertar, sendo que sua penosa experiência constitui a trama de A cidade dos desiludidos. Continuação espiritual de Assim estava escrito ¿ uma das cenas desse filme serve para precisar a evolução psicológica de Jack, o filme oferece uma visão ácida do mundo cinematográfico de Roma. Pleno de observações incisivas e justas, como o tumulto da Via Veneto - o filme é realizado dois anos depois de La dolce vita - em torno da estrela italiana (Rosanna Schiaffino), as relações entre o produtor e o diretor, o ambiente das filmagens, etc. Minnelli, no entanto, não se limita somente a este aspecto, mas, superando as limitações melodramáticas da intriga, leva a cabo uma reflexão moral sobre a condição do cineasta, que vem a sintetizar o eterno conflito do homem entre a ilusão e a realidade, tema básico de sua obra.
Duas imagens: uma de Minnelli, a outra de Deus sabe quanto amei, que, infelizmente, pegou este título em português.