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20 junho 2009

Morre Perry Salles

Morreu, há dias atrás, o ator e diretor Perry Salles, 70 anos, de câncer, cujo corpo foi cremado no cemitério do Cajú, Rio de Janeiro, mas, antes de seu último suspiro, pediu que suas cinzas fossem jogadas no mar bravio de Trancoso (localidade perto de Porto Seguro, Bahia). Salles, nos anos 90, arrendou o Teatro Gamboa em Salvador e veio morar na Bahia, indo sempre passar longas temporadas em Trancoso. Pessoa anárquica (no bom sentido), demolidor, de visão irônica exemplar, era uma figura sui generis. Uma vez, estando o cineasta José Umberto a fazer um documentário para televisão em Monte Santo, Salles apareceu por lá a espantar as beatas e a dizer que Deus tinha morrido e substituído pela ciência. Monte Santo, como se sabe, é a cidade que serviu para algumas locações de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha - sequência da subida da colina por Geraldo D'El Rey com uma pesadíssima pedra na cabeça, a matança dos beatos por Antonio das Mortes, etc.
Ainda que separado de Vera Fischer, com a qual viveu longos anos, mantinha com ela um forte laço de amizade. Quando de sua agonia final, a atriz o hospedou em seu apartamento no Leblon. No cinema, dirigiu Intimidade (1975) em parceria com o diretor inglês Michael Sarne, filme baseado em história de Carlos Heitor Cony e estrelado por Vera Fischer, além de ter sido o seu produtor. Era um ator, contudo, essencialmente teatral.com forte presença cênica. Em 1982, realizou Dora Doralina também com a bela Fischer ao lado de Cleyde Yáconis.
Trabalhou em algumas novelas da Globo (Os gigantes, Mandala...) e apareceu em diversos filmes nacionais desde a chanchada Os donos da bola, de J. B. Tanko, com Ronald Golias e Grande Otelo, em 1961, Assassinato em Copacabana, de Eurípides Ramos, em 1962, com Maria Pétar e John Herbert, A Super Fêmea (1973), de Anibal Massaini Neto, que lançou Vera Fischer, As delícias da vida (1974), de Maurício Rittner, entre muitos outros.
O blog faz aqui singela homenagem à figura de Perry Salles, que conheci na sua temporada baiana.

18 junho 2009

Tuna Espinheira à guisa de esclarecimento


O realizador cinematográfico baiano Tuna Espinheira, em artigo que publicou neste blog (e também publicado na coluna de Opinião do jornal soteropolitano A Tarde) no dia 2 de março do ano em curso, que tomou o título Para Tuna, a indignação bate mais forte, foi, segundo ele, mal interpretado na designação de uma pessoa do meio cultural baiano. Solicita-me a sua republicação, que é seguida de um desabafo e da nota que confundiu os alhos com os bugalhos de autoria de Samuel Celestino. Faço o que ele pede à guisa de esclarecimento e para que os pontos possam, devidamente, ficar nos seus is. A imagem que ilustra este post é de Cascalho, seu primeiro longa metragem, versão cinematográfica do romance homônimo de Herberto Salles.
Eis o texto republicado:
“La Nave Vá...” Esta seria a doce resposta que daríamos aos que nos perguntam sobre olançamento de Cascalho. Os ditames das circunstâncias nos impedem de retrucar com esta placidez de espírito.É uma situação embaraçosa exercitar explicações suficientes para dirimir que, embora “Lá Nave Vá”, segue enfrentando uma atroz calmaria.
Não seria muito difícil escrevinhar um relatório sobre as mazelas inerentes a uma produção de baixo orçamento, mas isto não passaria de uma tentativa de requentar um assunto velho e indigesto, correndo o sério risco de cair no “Muro das Lamentações”, desaguando em mágoas e outras inúteis perquirições no campo da metafísica.
Mas, em meio a tantas perguntas que me fazem, uma acerta agônicamente e, praticamente, me emudece: “Porque não passou no escurinho do cinema Glauber Rocha?” Decifrar este enigma que o diabo amassou realmente me devora!
O Complexo que trás o nome do luminoso Cineasta, possui quatro salas de exibição, com equipamentos de última geração, contando-se aí, projetores para filmes em película e Mídia Digital (o Código Raien). Coincidentemente, o nosso filme em questão, possui os dois formatos. Ralou para ficar pronto. Hoje está apetrechado, com todos os requisitos técnicos exigidos para toda e qualquer requintada projeção comercial.
O Complexo de Cinemas Iguatemi, brindou o nosso filme com uma luminosa festa de pré-estréia, cedeu uma sala em Salvador e outra em Feira de Santana. Quase um mês depois veio a inauguração deste outro “Complexo”ao qual estamos nos referindo, portanto em pleno lançamento da nossa fita, fizemos o devido contato, reiteramos, por incrível que pareça, nada foi respondido, perpetrou-se o mais completo e abominável “Ouvido de Mercador”.
O filme barrado no baile é um produto genuinamente baiano, 80% dos técnicos e atores são prata da casa, sua produção deve-se a um Edital promovido pelo Governo Estadual. Neste 2009-DC estamos comemorando o cinquentenário do Cinema Baiano (de longa metragem) que se iniciou com o filme, Redenção, de Roberto Pires ( o verdadeiro Borba Gato do cinema baiano), Cascalho completa este período emblemático. É uma mera convenção, mas faz parte das comemorações de cinqüenta em cinqüenta anos, acontece agora com Redenção e Cascalho.
A Bahia sempre teve os seus burocratas da cultura, agora temos um “coronelete” de plantão, uma raça julgada extinta. Censor, porteiro kafkiano, entrincheirado sob os podres poderes, enodoando o nome do libertário Glauber Rocha. Vai chegar o dia em que o personagem, António das Mortes, descerá das telas para prestar contas com este dito cujo. Da nossa parte, sem entrar no mérito do valor, podemos afirmar: Cascalho não é um filme datado. O silencio imposto pela inexplicável e cruel proibição no espaço que resultou da briga do cinema baiano como um todo, não vai ofuscar o direito à vida desta fita, ficará apenas como sendo uma espécie de marca da maldade.
Missiva ao Fundo de Cultura
Sr. Ciro Nunes Sales,
Acabo de receber um comunicado participando a negativa do Fundo de Cultura, ao projeto Produção do DVD do Filme Longa Metragem Cascalho, de Tuna Espinheira. O que causa estranheza é a ausência de explicações do nível baixo de cada votante desta Comissão. Ora, formada por pessoas de alto nível de conhecimento dos assuntos ligados ao cinema, como seria de esperar, seus membros não teriam nenhuma dificuldade em apontar as razões para a não aprovação, sobretudo em caráter de “pré-seleção”, como está dito no comunicado. Temos convicção de que apresentamos um projeto honesto, bem fundamentado, bem justificado com vistas a festejada inovação de aceitamento intitulado “Natureza Espontânea”.

Um filme genuinamente baiano, longa metragem produzido com a agônica circunstancia do baixo orçamento, ser vetado ao legítimo direito de poder ser distribuído/difundido através da comercialização democrática dos DVDs, é algo cruel, fere a combalida cultura, como um todo, da cinematografia baiana.
Paira dúvidas sobre uma efetiva análise técnica do projeto em questão, ou as pessoas que o julgaram são PHD em outros saberes e não nas questões pertinentes ao cinema! Seria de bom alvitre, para dirimir este imbróglio, que a Comissão, através do relator, apresentasse os motivos que embasaram a recusa ao primo-canto da pré-seleção.
Atenciosamente,
Tuna Espinheira
Eis o seu desabafo recente:
Mais realistas que o Rei
"A missiva acima, dirigida ao Fundo de Cultura, foi elaborada no calor da hora, pelo sim e pelo não, não desdigo nada, não movo uma vírgula do lugar. Mas, hoje, um dia depois, resolvi clarear os porquês das minhas dúvidas levantadas (postas na referida missiva) quanto ao julgamento sumário, uma espécie de guerra sem quartel, do meu projeto. Para evitar suspense, também vou sentenciar ( à moda do Fundo...) sumariamente: Meu nome é que foi julgado, não o meu projeto.

O “causo” eu conto, como o “causo” foi. Algum tempo atrás, na labuta agônica do lançamento do meu filme, genuinamente baiano, CASCALHO, o gerente do Complexo UNIBANCO-GLAUBER ROCHA, fazendo ouvido de mercador às tentativas dos produtores para uma negociação para que o filme tivesse sua hora e sua vêz no sagrado espaço que leva o nome do cineasta maior do Brasil. A resposta obtida foi o veto silencioso, com cheiro de desprezo.
Como nunca fui um bom cabrito, (mesmo porque sou de Capricórnio), botei a boca no trombone, veiculando o meu berro no jornal A Tarde, na austera e democrática coluna Opinião. O artigo causou um certo frisson, provocando, ao mesmo tempo alguns mal entendidos, parte pela razão de que me neguei a citar o verdadeiro nome do personagem tristemente principal do meu texto, preferindo na data e hora que escrevi, chamá-lo de “coronelete”. Como o Cão atenta, quem quiser que duvide! Naquele período histórico a bola da vez, ou melhor o Judas da vez, era o Secretário da Cultura, Marcio Meireles. Estorava desintelingencias em vários segmentos da área cultural. Inúmeras pessoas, de níveis diferenciados, (talvez eu tenha pecado por um ato falho de comunicação do meu escrito), entenderam que o dito cujo, “coronelete”, só poderia ser o gestor da Secretária de Cultura.
Como quem avisa amigo é, não me faltou conselhos para tornar público que a bala que lancei certeiramente, não podia fazer às vezes de bala perdida, ou torna-se um legitimo “causo” digno da historieta: “Atirou no que viu e acertou no que não viu”. Para encolher estes dizeres vou xerocar e replicar (abaixo deste) as duas matérias que atraíra, pela lei da gravidade, meu nome para o rol dos morféticos. Trata-se simplesmente do meu já relatado artigo e de uma nota postada pelo mais ilustre cronista político, Samuel Celestino, em seu próprio blog, onde seus escritos costumam ser garimpados à luz de lupas pela classe política.

Este relato espantoso, que poderia ser cordelizado se assemelha aquela máxima do Governador Mangabeira: “Pense no maior o absurdo... Pois na bahia já aconteceu”. A bajulice congênita dos mais realistas do que o Rei, levou meu nome, já na categoria de morfético, Pela incúria, engano, e má fé) a julgamento, o projeto ficou de fora. A morte anunciada do projeto só não do meu conhecimento. “Triste Bahia”.
Em tempo: Para não dizer que não falei de flores, o nome do “coronelete” (gênese deste furdunço) é Claudio Marques, nenhum parentesco com o genial autor de O Capital, muito menos com os irmãos Marx"

Eis a nota que saiu no blog de Samuel Celestino:
Antonio das Mortes contra Márcio Meirelles
"O cineasta Tuna Espinheira, nome de referência nacional e um dos expoentes da intelectualidade baiana, com o artigo "Cascalho, o Filme em Cartaz", que publica hoje na terceira página de A Tarde, reserva um parágrafo devastador contra o secretário Márcio Meireles, da Cultura, corvo que pousou também sobre o filme que realiza. Diz: "A Bahia sempre teve os seus burocratas da cultura, agora temos um "coronelete" de plantão, uma raça julgada extinta. Censor, porteiro kafkiano, entrincheirado sobre os podres poderes, enodoando o nome do libertário Glauber Rocha. Vai chegar o dia em que o personagem Antônio das Mortes descerá das telas para prestar contas com este dito cujo." Bem, de minha parte que Antônio das Mortes seja breve, rápido e certeiro."

16 junho 2009

"O Amigo da Onça", de Péricles: inesquecível

Imagens históricas


A foto superior mostra Marlon Brando a fumar - num tempo em que não havia, ainda, a psicose antitabagista, decorrente de uma obsessão politicamente correta que está a ameaçar a liberdade do homem, e, na de baixo, Rock Hudson, Cary Grant, Brando e Gregory Peck. Atores que fizeram o imaginário de uma geração de cinéfilos que frequentou as salas exibidoras nos anos 50 e 60. Quando jovem, via em Rock Hudson a imagem perfeita do homem viril - e, vejam só, queria ser como ele. Qual não foi a minha surpresa ao vim a saber, décadas depois, que era uma bicha (com todo o respeito por elas) das mais escandalosas. Realizava verdadeiras orgias em sua casa, fantasiado de grego, e, nas horas vagas, seu hobby preferido era fazer tricô para dar de presente aos namorados (o que está dito consta de sua biografia publicada em torno de 1985). Quando esteve no Rio, Assis Chateaubriand, persuadido pela Universal, montou uma farsa para aparecer em O Cruzeiro, com Rock a ser flagrado numa praia deserta com uma mulher belíssima, porque, naquela época, seus fãs não poderiam saber de sua condição de homossexual. Nada contra. Apenas constato fatos.

14 junho 2009

"Viva o palhaço!", de Michael Kidd

Há filmes que, vistos uma vez, desaparecem de circulação para não mais voltar, restando, apenas, nos arcanos da memória. Um deles Viva o palhaço! (Merry Andrew, 1958), dirigido pelo grande coreográfo Michael Kidd (Hello Dolly!, 7 noivas para 7 irmãos...), que vi em tenra idade, mas nunca mais me esqueci. Nunca passou na televisão (nem dublado) e não há cópias em VHS ou DVD. Há números musicais extraordinariamente coreogrados e uma história singela sobre um professor-escola (Danny Kaye) que, em viagem arqueológica, descobre a alegria do amor e da vida circense com uma acrobata (Pier Angeli) pela qual se apaixona. Trata-se de uma deliciosa comédia musical produzida por Sol C. Siegel. Mas, quem se lembra ainda de Danny Kaye (1913/1987)? Recebeu dois Globos de Ouro e um Oscar honorário em 1955 da Academia de Artes e Ciências de Hollywood. Participou de alguns filmes que foram sucessos em sua época, como este, Merry Andrew, A lágrima que faltou, O Inspetor Geral, O homem do Dinner's Club (The Man from the Diners' Club, 1963), de Frank Tashlin, Escândalo na Riviera, entre outros.
Minha homenagem, aqui, a Merry Andrew, jóia desaparecida, e a Danny Kaye.

Basta chover no molhado e/ou Assinar nosso fracasso


Recebi, via internet, de um amigo, este artigo polêmico que deve ser lido. Tomo a ousadia de transcrevê-lo. É ler e refletir. Sem mais. O autor, Valério Bemfica, que o intitula A nova retomada do Cinema Brasileiro: farsa em três atos

VALÉRIO BEMFICA
Vendo o título acima, talvez o leitor ache que estejamos sendo pessimistas. Recentemente uma película, rodada no Brasil, com elenco e diretor brasileiros, rompeu a marca dos seis milhões de espectadores. Pode parecer uma notícia alvissareira, mas não é. É apenas uma exceção, com muitas particularidades, em um cenário trágico. E note-se bem que não dissemos "um filme brasileiro": trata-se, na verdade, daquilo que os modernosos costumam chamar de "produto" ou "conteúdo audiovisual", não um filme. Uma associação escancarada entre os integrantes do cartel da indústria cultural, destinada a fechar um pouco mais o espaço para uma cinematografia nacional, autônoma e criativa. Nosso objetivo não é aqui fazer uma crítica estética ao filme, mas descrever o ponto em que está o cinema brasileiro, prestes a receber o golpe de misericórdia. No final o leitor compreenderá não apenas o título, mas também como o último produto global colabora para o processo de aniquilamento de nosso cinema. Vamos aos atos.

PRIMEIRO ATO - A Redução da Cota de Tela(Ou: a parte que nos cabe no latifúndio)Em qualquer país do mundo são comuns medidas de estímulo à produção local -em todos os setores da economia. E elas são particularmente necessárias em setores estratégicos e nas áreas onde o poder econômico dos concorrentes estrangeiros é muito forte. O cinema se enquadra nos dois casos. É estratégico - como todo o campo cultural - por tratar com o imaginário das pessoas, por ajudar a configurar a identidade nacional. E o poderio econômico da indústria cultural estadunidense é gigantesco. Por conseguinte,inúmeros países adotam medidas para garantir a existência de uma cinematografia nacional. A principal delas é a chamada cota de tela, ou seja, a reserva de um número determinado de dias para a exibição da produção local.No Brasil esse mecanismo começou a ser adotado da década de 30 do século passado. Obviamente surtiu efeito e o cinema brasileiro começou a se desenvolver, revelar novos talentos, ganhar espaço no gosto popular. Nos anos 50 a cota chegou a 42 dias de exibição anual. Na década de 60 alcançou os 112 dias por ano e, no auge da atuação da Embrafilme, na década de 70, atingiu a marca de 140 dias/ano. Se alguém achar exagerado, é nesse patamar(aproximadamente 40% do espaço de exibição) que estão, hoje em dia, países como a França. Mas no Brasil a história foi diferente. A política de arrasa quarteirão de Collor fechou a Embrafilme e deixou à míngua os realizadores do país, que não mais contavam com uma estrutura de distribuição que lhes permitisse concorrer com o produto estrangeiro. Ainda assim, chegamos ao final do século passado com uma cota de tela de 49 dias, ou 13,5% do espaço para exibição de filmes. Era pouco, mas a produção brasileira também estava pequena (28 filmes em 1999). E também seria vã esperança achar que nos anos de ouro do neo-liberalismo o cinema nacional fosse ganhar alguma proteção. O século XXI inicia com a redução da cota para 28 dias, número que permaneceu inalterado até o final do mandato de FH. A chegada de Lula ao poder coincide com a maior bilheteria do cinema nacional nos últimos 15 anos: em 2003 foram 21,5 milhões de espectadores, para uma cota de tela de 35 dias e 29 filmes lançados. Seria de se esperarque a partir de então o governo popular, escolhido para enterrar o entreguismo vigente, tratasse de ampliar o espaço para o nosso cinema,aumentando o tempo de exibição obrigatório e enfrentando os mecanismos dedominação do mercado impostos pelo cartel estrangeiro. Mas, infelizmente, a direção dos órgãos de cultura do país - Ministério da Cultura e Agência Nacional do Cinema em particular - foram entregues a cidadãos que tem mais identidade com a indústria cultural do que com a nação. O monopólio da exibição-distribuição foi tratado como aliado preferencial. Os incentivos àprodução - que em sete anos triplicaram o volume de filmes lançados -revelaram-se uma mera estratégia para acalmar a classe. E a cota de tela, depois de algumas variações, voltou ao patamar da época tucana: 28 dias. Só que, se antes eram produzidos menos de 30 filmes por ano no Brasil, atualmente são produzidos mais de 80. Após seis anos de postura agachada do Minc e da Ancine perante as majors do "entertainment" continuamos confinadosa 10% de nosso próprio mercado.

SEGUNDO ATO: O Artigo Terceiro (Ou: Entregando o ouro ao bandido)
Se a direção dos órgãos de cultura no Brasil permaneceu com a cabeça (e, às vezes chegamos a imaginar, com os bolsos) na época do neoliberalismo e se os apetites dos oligopólios do cinema são insaciáveis, era de se esperar que a coisa piorasse. E piorou mesmo. Eles não podem se conformar nem com uma cota de tela ridícula como a que temos hoje. Como acabar com ela é difícil -seria a confissão cabal da subserviência das autoridades aos seus interesses- resolveram também dominá-la.O caminho para isso tem um nome bastante burocrático: "artigo 3º da lei 8.685/93". É hoje o principal instrumento de dominação da indústriacinematográfica nacional por empresas estrangeiras. Mas vamos a um exemplo concreto, para que o leitor possa ter a dimensão exata do estrago. O filme"Batman - O Cavaleiro das Trevas" arrecadou, em 2008, cerca de 33 milhões dereais no Brasil. Do valor, cerca de 50%, ou R$ 16,5 milhões, são destinados ao distribuidor e ao produtor (a Warner, em ambos os casos). Digamos que tenham sido gastos, com divulgação, cópias, lançamento e manutenção da filial brasileira, R$ 6,5 milhões. O resto - R$ 10 milhões - será remetido para a matriz. Sobre esse valor, a Warner deverá pagar 25% de imposto de renda, a bagatela de R$ 2,5 milhões. Mas, segundo o referido artigo da lei do audiovisual, a empresa pode optar por abater 70% do imposto (no caso, R$1,75 milhões) para investir em produções e co-produções nacionais. Ou seja, usar o dinheiro que seria pago ao governo brasileiro na forma de impostos para se tornarem sócias de filmes nacionais. Algum ingênuo - como estão sendo muitos dos realizadores nacionais - poderá pensar: "Que mal há nisso? É mais dinheiro para o cinema!". O mal é: aassociação entre majors de produção e distribuição estrangeiras detém 80% domercado brasileiro. As cadeias estrangeiras de exibição possuem mais de um quarto de todas as salas de cinema do país. Juntas, determinam o que será visto ou não pelos brasileiros. A única coisa que lhes escapava era a cota de tela, por ser uma obrigação legal. Com o artigo terceiro, passam a poder escolher o que será produzido ou não pelos cineastas brasileiros, passam a determinar quem ocupará a cota de tela - dentre aqueles que se associaram com eles. Veja bem, caro leitor, a completa inversão da lógica capitalista tradicional, em benefício dos setores monopolistas. Em qualquer país domundo, taxa-se o estrangeiro como forma de impedir que ele faça o que quiser com o mercado interno. Aqui estamos isentando o estrangeiro para que ele possa moldar o mercado à sua imagem e semelhança. Vamos a alguns números que comprovam a nossa tese.Entre 2005 e 2007 (últimos dados que a Ancine disponibiliza), foram lançados 192 filmes nacionais. O público desses filmes foi de cerca de 30 milhões de espectadores. Apenas 36 deles levaram mais de 100 mil pessoas ao cinema. Só3 deles não receberam dinheiro via artigo terceiro. Dois são da Globo Filmes que, quando realiza a produção é impedida de captar incentivos fiscais. A única exceção verdadeira (O Cheiro do Ralo, com 172 mil espectadores), só serve para confirmar a regra. São 36 filmes (18,75% do total) que concentram 90% do público. Ou seja, ocupam toda a cota de tela reservada ao cinema brasileiro, apesar de serem filmes produzidos por estrangeiros. Mas façamos a conta de outro modo. Das 9 maiores bilheterias de filmes brasileiros em 2007, 8 foram bancadas pelo artigo terceiro. A única exceção foi um filme da Globo (A GrandeFamília). Concentram 83,36% dos espectadores, enquanto os demais se contentam com o resto. Em 2006 o quadro é o mesmo. A única diferença é que a concentração é ainda maior: 87,75% para os 10 maiores e o resto para os demais 60 filmes lançados. Em 2005 todos os 10 filmes de maior bilheteriasão filhos do artigo terceiro, detendo 93,11% do público. E nem é preciso dizer que, em 27 das 30 maiores bilheterias desses três anos, a distribuidora era uma empresa multinacional. Em resumo: às majors norte-americanas, que antes eram obrigadas a tolerarcerca de 10% de filmes que não eram delas nos cinemas do país, foi dado o direito de utilizar o nosso dinheiro para ficarem sócias de filmes brasileiros. Passaram a ter o direito de decidir quais filmes ocuparão a cota de tela. A pré-condição para isso, claro, é dar-lhes sociedade e serem distribuídos por elas. O resultado é que o espaço para a cinematografia realmente independente reduziu-se ainda mais. Os cineastas nacionais só podem sonhar em chegar de verdade às telas caso se submetam - sabe-se lá aque custo - a um casamento forçado com seu principal inimigo. Se durante muitos anos o cinema nacional careceu de uma estratégia de desenvolvimento, não teve uma verdadeira política, agora tem. O único problema é que ela éestabelecida nos EUA, pela Sony, Fox, Warner, Buena Vista, Paramount eUniversal, em benefício delas mesmas e em detrimento da cultura nacional.

TERCEIRO ATO: O Mercado é que decide (Ou: o tiro de misericórdia)
A vida já estava bastante boa para o cartel do "entertainment": dominavam, sem contestação das autoridades competentes, 90% do mercado cinematográfico.Os restantes 10% também eram ocupados principalmente por eles, co-produzindo filmes com o dinheiro dos outros (ou seja, com o dinheiro do povo brasileiro). O que mais eles poderiam querer? Eliminar os intermediários. Esse pessoal do Minc e da Ancine, apesar de seu capachismo à toda prova, gosta de posar de defensor do cinema nacional. Assim sendo, acaba deixando que se façam filmes sem o aval das majors. É bem verdade que não vão passarem lugar nenhum, que ninguém vai vê-los. Mas depois os diretores ficam reclamando, mendigando uma telinha, fazendo escândalo na imprensa. O jeito seria transferir ao cartel o direito de decidir diretamente o filme que será feito ou não. Inclusive decidindo onde o governo vai colocar o seu próprio dinheiro.O leitor irá concordar que isso já seria demais. Pena que o pessoal do Minc e da Ancine não achou. Gostou da idéia e já começou a colocá-la em prática(em nome, é claro, da transparência e da democracia). Desde 2008 a Ancine passou a contar com o Fundo Setorial do Audiovisual, criado para ser oprincipal mecanismo de financiamento da indústria cinematográfica brasileira. Mas como decidir para onde vai a grana? Vamos a mais um exemplo concreto, para que o leitor não ache que nossa imaginação é fértil demais. No primeiro concurso aberto pelo FSA, inscreveram-se 217 incautos. Desses, 102 foram desclassificados, perdidos nos meandros da burocracia cultural. Sobraram 115, que concorrerão a 30 vagas e R$ 15 milhões. Os felizardos serão escolhidos após uma análise, que determinará o número de pontos do projeto. Vejamos alguns dos critérios. "Interesse e adequação da proposta ao público": ou seja, não interessa se o artista tem algo de interessante a dizer, interessa é se o público quer ouvir. Mas como saber de antemão o que o público quer? "Desempenho comercial das obras produzidas": isto é, já fez sucesso antes? "Valores auferidos em negociações internacionais" /"experiência da distribuidora": quer dizer, já tem contrato de distribuição com alguma multi? "Capacidade dos integrantes da equipe principal e do elenco principal": em outras palavras, tem gente da Globo no meio? É fácilpara o leitor dar-se conta de quem são os maiores interessados em estabelecer critérios bizarros como esses: filmes fáceis, que não façam pensar, com nomes consagrados e contratos de distribuição com as majors. É óbvio que são elas mesmas. Mas, para o monopólio ainda não basta. Desta forma, resolveram também entrar na comissão de seleção. Foram contratados pela Ancine 18 consultores. Uma comissão formada por um consultor da Ancine, um funcionário da Finep(gestora do FSA) e dois consultores decidirá a pontuação dos filmes. Dos 18, sete são exibidores e dois são diretamente ligados às distribuidoras. Só não há distribuidores porque eles não poderiam julgar os filmes dos quais são sócios. O Presidente da Ancine, todo pimpão, afirma que tais mecanismos visam "reintroduzir o compromisso com o risco na atividade". Risco de quê,Mané? Só se for risco de ver o cinema brasileiro afundar de vez, de ter acota de tela invadida por baboseiras, de encher ainda mais as burras do cartel da indústria cultural norte-americana (deixando algumas migalhas para seus asseclas locais). Para as múltis acabou o risco de ter um filme que não seja de seu agrado nas salas brasileiras. Resumo da ópera: não satisfeitos em usar livremente o que deveriam pagar de impostos para ocupar o que restava de mercado ao cinema nacional, ainda garantem que os outros filmes não chegarão nem a ser feitos. Só falta agora ocuparem as comissões de seleção de projetos da Petrobras, da Eletrobrás, doBNDES, pois no Minc e na Ancine já estão mandando.

EPÍLOGO: O sucesso deles é o nosso fracasso(Ou: com o dinheiro dos outros é mais gostoso...)
Bem, perguntará o leitor, ficou comprovado que quem está mandando no cinema brasileiro fala inglês. Mas o que tem a ver com isso o simpático filme de Daniel Filho? Tudo. Dissemos antes que as produções da Globo Filmes eram exceções no uso do artigo terceiro. Mas a turma já deu um jeitinho da se arrumar com o pessoal do Jardim Botânico. O filme não é produção da Globo, apesar de elenco, diretor e equipe trazerem o símbolo da emissora tatuado na testa, mas da Total Entertainment e da empresa do diretor. Assim pode entregar tranqüilamente sua distribuição à Fox Filmes do Brasil e pegar uma graninha do artigo terceiro. A Globo também tira sua casquinha, como co-produtora, fazendo a divulgação e o merchandising. E, para ninguém ter de meter a mão no seu próprio bolso, o filme conta com o generoso patrocínio (público) do BNDES. No final o diretor leva a fama de competente, que leva muita gente ao cinema, os demais são considerados apoiadores do cinema brasileiro, e todos enchem o bolso com o nosso dinheiro. Nessa brincadeira, como a bilheteria do filme já ultrapassouos R$ 50 milhões, a Fox deve ter embolsado mais ou menos R$ 10 milhões, sobre os quais deveria pagar R$ 2,5 milhões de impostos, mas generosamente destinará R$ 1,75 milhões ao cinema nacional... e começa tudo de novo.