Seguidores

06 maio 2010

"Eva" (1962), de Joseph Losey: obra de mestre

Je t'aime Jeanne Moreau

O poder de fascinação do cinema de Joseph Losey é impressionante, e Eva (1962), com Jeanne Moreau, é um exemplo da força de suas imagens. O procedimento de sua mise-en-scène é o procedimento de uma apurada valorização dos elementos plásticos-dramáticos da linguagem cinematográfica. Assim, este brilhante exercício trágico sobre a servidão humana, que é Eva, é um cinema da imagem, com influência da plástica arquitetônica. É a tragédia de um pobre-diabo (Stanley Baker) que se deixa dominar até a degradação absoluta por uma mulher (e ninguém menos do que Jeanne Moreau). A narrativa, porém, domina a fábula, e o discurso cinematográfico se sobrepõe ao elemento fabulatório. Eva está em cópia esplendorosa à disposição de quem a quiser nas melhores locadoras ou nos sites de compra de DVDs na internet, com a fotografia luminosa de Gianni Di Venanzo (as partes do Festival de Veneza foram filmadas por Henri Decae). É a Lume, nova distribuidora, que colocou o filme no mercado. Vale a pena uma visita ao seu site para tomar conhecimento de seu catálogo de lançamentos.
Ver Eva é ver um cinema de altíssima voltagem na sua expressão como arte autônoma.

05 maio 2010

"São uns porretas esses pernambucanos!"

O polêmico jornalista e cineasta Raul Moreira (vejam uma foto de seu Dagoberto vai ao paraíso (a primeira obra não prima do cinema baiano) publicou o texto que se segue no jornal soteropolitano A Tarde sábado, dia 1, causando sérias controvérsias. O artigo fala da superioridade do cinema pernambucano e, com isso, feriu suscetibilidades. Com a postura de magistrado, embora tenha opinião formada sobre o assunto, publico ipsis literis o escrito raulmoreiraniano.
"Afirmou um jovem cineclubista, que atende pela alcunha de Gê Carvalho, em pleno Cine PE, no Recife: “Só aqui em Pernambuco você senta numa mesa de bar e discute as dores da existência e até especula se talvez não sejamos o projeto mais equivocado de Deus”.
Do outro lado, nós, baianos, morrendo de inveja, somos obrigados a fazer coro e afirmar que realmente são uns por porretas esses pernambucanos cabras da peste. Para tripudiar, o mesmo sujeito completou: “No programa do Serginho Groisman estavam Cláudia Leite e Nação Zumbi, que foram instigados a falar de suas respectivas influências: enquanto a Nação Zumbi discorreu sobre a questão da raiz e do senso crítico de cada um dos componentes da banda, ela disse que na Bahia não tem nada disso, pois tudo é alegria”.

Sim, ainda que a comparação entre Leite e a Zumbi tenha sido covardia, os pernambucanos não levam a sério a Bahia, com toda razão. Assim, sabendo que perdemos o bonde e nos fizemos apenas sujeitos alegres, só nos resta tentar compreender as razões pelas quais os nossos “primos” se diferenciaram, para, quem sabe, aplicarmos o mesmo modelo, não?

A forma com a qual os daqui lidam com o cinema poderia muito bem fazer parte da nossa cartilha. Curioso é que até pouco tempo não havia escolas de cinema e as salas de exibição para os ditos filmes de arte eram raras. Portanto, difícil é não se perguntar: como fizeram os pernambucanos para afirmarem-se como criativos e tenazes, a ponto de possuírem, também, o festival de cinema mais frequentado do Brasil?
Há quem diga que o mundo se transforme a partir do caos e do mangue. E no Pernambuco foi assim, pois, foi paralelamente ao movimento Mangue Beat, liderado pelo saudoso Chico Science, que o cinema local floresceu, depois dos ciclos dos anos 20 e 70 do século passado. E o fez por obra de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, diretores do premiado Baile Perfumado, longa de 1996 e que de certa forma serviu de farol para que talentos como Cláudio Assis, Marcelo Gomes, João Falção e dezenas de curtametragistas se afirmassem na cena.
Mas a explosão do cinema pernambucano não é fruto apenas dos movimentos culturais e da associação do talento dos realizadores com a vontade de fazer. É comum ouvir, pelo menos entre boa parte dos pensadores daqui, que por uma série de razões maturou-se durante século um modelo de desenvolvimento diferente daquele que deu-se na Bahia, por exemplo, algo que Gilberto Freyre captou muito bem e traduziu em clássicos como Casa Grande & Senzala e Sobrados e Mocambos.
Sim, a herança holandesa, a tradicional faculdade de direito do Recife e uma certa vocação para o cosmopolitismo, talvez por influência da tradição judaica, fizeram com que o Pernambuco sempre estivesse mais para a Europa do que para o Brasil, a ponto de se falar em um “espírito aristocrático”. Mesmo sendo uma sociedade classista e repleta de desigualdade, formada com o caldo da miscigenação, a verdade é que a miséria por aqui não é tão feia como na Bahia, pois há traços de dignidade nos grandes coletivos que muitas vezes nos faz lembrar Cuba.
Talvez aí resida a diferença do Pernambuco e a qual se reflete em “orgulho da tradição miscigenada”, ainda que feita por sujeitos de classe média – ironia da sorte o cinema pernambucano é macho – que buscam afirmar o popular do grande Recife, da Zona da Mata e do semiárido, como se o sonho das ligas camponeses de Miguel Arraes e de sociedade mais justa de Dom Hélder Camera fosse possível.
De cima para baixo, os cineastas brancos pernambucanos seguem em frente, surpreendendo pela volúpia, ainda que, com a periferia residindo ao lado, a plateia do Cine PE seja formada quase que exclusivamente pelos abastados de Boa Viagem.
Raul Moreira é jornalista e cineasta.
PS: Caros e caras,
Durante o Cine PE, o Na Cena, veiculado na TVE da Bahia, da rede TV Brasil, e também na internet, esteve a retratar, em pílulas diárias de três minutos, o melhor e o pior do evento pernambucano. Sei que muitos filmes e diretores acabaram não tendo espaço, pois era impossível. No entanto, fica a mensagem: onde houver festival feito com dinheiro público, cinema brasileiro e injustiça lá estaremos com os nossos intrépidos enviados e editores, no estilo livre e sem jamais ser chapa branca.
http://www.youtube.com/user/PgmNaCena

03 maio 2010

"Nosferatu" e duas palavrinhas

1) Revi ontem, para assombro de meu repertório, Nosferatu (Nosferatu, eine symphonie des grauens, 1922), de Friedrich Wilhelm Murnau, filme dos bons tempos do expressionismo alemão, obra de referência, prima, como se gosta de dizer. O ator que interpreta o papel título, Max Schenck, é simplesmente, e repetindo a palavra já dita, um assombro. A versão que Herzog fez nos anos 70 é também de alta qualidade e tem Bruno Ganz como o viajante - o mesmo Ganz de O amigo americano, de Wim Wenders e Hitler, entre outros momentos de um cinema superior. E Klaus Kinski como Nosferatu. Murnau adaptou o livro de Bram Stocker, Dracula, mas os herdeiros do escritor impediram que fosse colocado o mesmo título, ficando Nosferatu. Murnau pode ser considerado um dos maiores diretores de cinema de todos os tempos, ainda que sua morte prematura no alvorecer da década de 30, quando realizava Tabu em parceria com Robert Flaherty. Era um homem estranho e temperamental, segundo seus contemporâneos. Hitchcock o conheceu quando foi fazer um filme no estúdio da UFA e sofreu severa influência do expressionsimo. Além de Nosferatu, Tartufo, Fausto, O último dos homens ou A última gargalhada. Neste último, que tem dois títulos, mas cujo original é Der letzte mann, 1924, os letreiros são mínimos, há expressivos movimentos de câmera e câmera subjetiva, demonstrando um apurado sentido da linguagem cinematográfica e uma estruturação narrativa avant la lettre. Realizou nos Estados Unidos a sua obra-prima: Aurora (Sunrise, 1927), obra ápice da estética da arte muda, assim como La passion de Jeanne D'Arc (1928), de Carl Theodor Dreyer. Neste, embora ainda mudo, é como se já pedisse a palavra. E a palavra em Dreyer é substância pura.
2) Fiz uma viagem na década de 70 a São Paulo somente para ver, na cinemateca paulista, filmes do expressionismo alemão. As sessões se davam pela manhã e pela tarde durante uma semana. Meu propósito era ver mesmo tudo. Resultado: entrava no começo da tarde na cinemateca e somente saia perto da meia-noite. Pela manhã, descansava um pouco no hotel. Queria investigar o expressionismo, mas, em alguns momentos, durante as projeções, me senti aporrinhado com certos filmes. Mas, investido da vontade de saber a importância desses filmes, fiz mitigar o meu sofrimento. Outros, no entanto, me fascinaram. Para compreender o cinema, portanto, é preciso investigação, prazer, mas, também, sofrimento e aporrinhação.

02 maio 2010

Antonioni e o silêncio autofalante



Geômetra cartesiano dos sentimentos humanos, Michelangelo Antonioni é um realizador que, com seus filmes, principalmente a trilogia A aventura, A noite, e O eclipse, renovou a linguagem cinematográfica, e introduziu, nela, o domínio da antinarrativa, o silêncio como elemento de produção de sentidos, os tempos mortos como estabelecimentos rítmicos da mise-en-scène. O cinema moderno tem em Michelangelo Antonioni o seu grande impulsionador, principalmente porque instaurou a desdramatização. Se o cinema americano pasteurizou, por assim dizer, a linguagem do filme, privilegiando, na narrativa, somente os tempos fortes, Antonioni introduziu, como peça de estilo, mas, também, de significação, os tempos mortos, quando as expectativas do espectador são frustradas, porque sempre espera que, dada uma determinada situação, aconteça alguma coisa no processo narrativo. Mas o grande realizador, que saiu da cena da vida com idade provecta, 94 anos, deixou uma fortuna crítica considerável e sua influência foi imensa, bastando dizer que todo o Wim Wenders dos anos 70 é puro Antonioni, além das influências exercidas em cineastas de diversos países, a exemplo, no Brasil, de Walter Hugo Khoury, autor do definitivo Noite vazia (1964). Antonioni soube, como poucos, captar o mal-estar do mundo, e se revelou um tratadista da incomunicabilidade entre os homens. Egresso do neo-realismo italiano, na década de 50, assim como Fellini, abandonou a tônica social do movimento para focalizar a angústia do homem do pós guerra, principalmente daquele pertencente à sociedade burguesa italiana. Há, portanto, em Michelangelo Antonioni, uma importância dupla para o cinema, a do ponto de vista do elo sintático (da linguagem), e aquela do elo semântico (do tema). Inovou na sintaxe e inovou, também, na maneira de fazer emergir seus temas recorrentes: a análise perfuratriz da incomunicabilidade na burguesia italiana, o silêncio que se estabelece nas relações humanas, o vazio, e a ausência de perspectivas.


Nasceu em Ferrara (Itália), em 1912. Adolescente, viveu em Bolonha, onde começou seus estudos de economia e letras, que depois seriam substituídos pela arquitetura. Nesta época, já se inicia na crítica cinematográfica, escrevendo alguns ensaios sobre a arte do filme para o jornal IL Corrière Padano. Aficionado pelo tênis, competiu em vários torneios dessa categoria, e, na juventude, ganhou muitos troféus, que, até morrer, guardava-os com especial apreço. O desabrochar do futuro realizador, porém, precisaria esperar a sua transferência para a capital da Itália, Roma, que se deu quando tinha 27 anos, em 1939. Nesta cidade, centro cultural, ainda que sob regime fascista e às vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial, fez parte da entourage da revista Cinema, publicação oficial que congregava os nomes do futuro neo-realismo: Luchino Visconti, Giuseppe De Sanctis, Vittorio De Sica, Pietro Germi, entre outros. Passou por um período de dificuldades financeiras, mas conseguiu se matricular no Centro Sperimentale di Cinematografia, abrindo-se, então, a oportunidade de escrever vários roteiros e, entre eles, uma colaboração com aquele que viria a detonar o neo-realismo italiano com Roma, cidade aberta: Roberto Rossellini. O jovem Michelangelo se estabelece com maior desenvoltura no meio cinematográfico, colaborando com traduções e críticas para Itália Libera, Film d’Oggi e Film Revista. Trabalhou, nesta ocasião, como assistente de um ícone do cinema clássico francês: Marcel Carné e, por isso, foi enviado à França como representante de Os visitantes da noite (Lês visiteurs du soir), deste diretor. Na volta, vê-se considerado a experimentar a realização de alguns documentários, sendo que, o primeiro deles, Gente Del Pó, tem suas locações nos mesmos lugares aos quais voltaria quando fez, muitos anos mais tarde, O grito.


Logo no seu primeiro longa metragem, Cronaca di um amore (1950), já se pode encontrar os temas que seriam característicos deste que é um dos mais importantes e pessoais realizadores do cinema moderno, as suas constantes temáticas, como a do vazio que se estabelece na relação humana. Dois anos depois, 1952, um filme em três episódios, um na Inglaterra, um na França, e um na Itália, abordando, nestes países, o problema da juventude que privilegia o crime como forma de sobrevivência: Os vencidos/I vinti. A seguir, La signora senza camelie, em que se preocupa de novo por estudar um personagem feminino, outra das características de seu cinema.


Autor de filmes, nunca um mero estilística, ou um artesão, Michelangelo Antonioni já revela sua marca e seu estilo inconfundível nos filmes que se seguem: As amigas (Le amiche, 1955), O grito (Il grido, 1957). Mas é com A aventura (L’avventura, 1959), filme que dá início à sua famosa trilogia da incomunicabilidade, que se consagra, definitivamente, entre a crítica internacional, constituindo-se uma síntese de sua obra anterior e uma espécie de prelúdio dos outros filmes que viriam a seguir, como A noite (1960) e O eclipse (L’eclisse, 1961). A idéia de ficção que, mediante um processo de descascamento narrativo, vai desaguar na água documental, foi uma das grandes constantes do cinema de Antonioni. As imagens finais de O eclipse, por exemplo, já eram documentário. José Lino Grünewald, inclusive, constatou que Antonioni terminava por onde Alain Resnais começava. Ele se referia, sem dúvida, ao processo de descascamento narrativo que, uma vez concluído, só poderia dar lugar ao espetáculo puro – ou seja, O ano passado em Marienbad.


A primeira experiência de Antonioni em cores se deu em O dilema de uma vida (Il deserto rosso, 1964), a retomar, aqui, o tema da incomunicabilidade, que se estabelece dentro de uma mise-en-scène na qual a cor exerce função dramática e de produção de sentidos. A pesquisa da cor no tecido dramático seria exacerbada no filme que fez, em seguida, na Inglaterra: Blow up, que no Brasil tomou o título de Depois daquele beijo. Antonioni exigiu que alguns quarteirões de Londres fossem todos pintados com cores berrantes. Blow up traumatizou duramente os devotos (que não se chame aqui de cinéfilos) do bom cinema nos anos 60. Um filme que expressa o niilismo da juventude de sua época através do personagem de David Hemmings, fotógrafo da moda e de moda, que, bem nutrido, com vida confortável, sente, porém, profundo vazio em sua existência até que, fotografando, por acaso, um casal que se beija num parque, descobre, com a ampliação das fotografias, um crime. Antonioni deixa, porém, a resposta vaga, e a significação que pode de tudo advir é aquela da seqüência final, quando pessoas jogam tênis sem a bola. A influência de Janela indiscreta (Rear window), de Alfred Hitchcock, é evidente, mas, aqui, relida em outro ângulo e em outro prisma.


Não se pode falar em Michelangelo Antonioni sem ressaltar a seqüência derradeira de O passageiro: profissão repórter (The passenger, 1975) e do seu emblemático plano-seqüência no qual a câmera sai do quarto onde está deitado Jack Nicholson, atravessa a janela, circula pelo pátio e volta ao quarto. Quando ela, a câmera, está fora, é que se ouve um tiro com o qual é morto o personagem. Até hoje não se sabe como Antonioni conseguiu realizar este plano, tal o seu virtuosismo, tal a sua habilidade. E em O mistério de Oberwald, como numa premonição, antecipa a estética do vídeo.


Num ensaio escrito para a extinta revista Filme/Cultura (setembro de 1967, número 6 e que renasce, agora, das cinzas, em seu número 50)), o crítico Jaime Rodrigues, discípulo de Moniz Vianna, estabeleceu com rara felicidade as características do cinema de Michelangelo Antonioni. Um estilo que se define mais por determinadas linhas de ação que por variações em torno de um mesmo tema. Cineasta amargo, mas que procura reencontrar uma linguagem comum aos seres humanos. Em seus filmes, patente, a integração do indivíduo e ambiente: os objetos, as coisas – o mundo industrializado, enfim, fazendo parte do millieu humano. Antonioni constata a caducidade dos valores do nosso tempo numa pesquisa intensa para chegar a novas formas de compreensão.


Rodrigues vê nos filmes de Antonioni o último eco do expressionismo pelas construções, com os objetos dominando o ambiente. E, neste particular, vale lembrar que, sendo Antonioni um arquiteto, seus enquadramentos são estudados, perfeitos, primorosos, E, no frigir dos ovos, é o neo-realismo passado a limpo: as implicações dos desajustes sociais sobre a estrutura psicológica do homem. E a certeza de que os problemas da consciência são, sobretudo, problemas de reflexão diante do mundo.
Imagem: Maria Schneider e Jack Nicholson em Passageiro: profissão repórter.