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27 fevereiro 2013

O passado não perdoa

Jon Voight em Perdidos na noite (Midnight cowboy, de John Schlesinger
Nos idos dos 60, os filmes não eram lançados simultaneamente como acontece nos dias de hoje, quando um lançamento de ponta tem centenas de cópias espalhadas em todo território nacional. As estreias se davam primeiro no eixo Rio-São Paulo, circulavam pelo sul e depois vinham para o norte-nordeste, demorando, para chegar aqui, em Salvador, às vezes, um ano. Se, atualmente, alguém vai ao Rio, por exemplo, ou, mesmo, à Argentina ou qualquer país da América Latina, encontra os mesmos lançamentos. Há algumas décadas, ir ao sul significava ter o privilégio de ver filmes em primeira mão e esperar, na volta, um ano para que estes chegassem nestas plagas (falo da Bahia). Lembro-me de "Perdidos na Noite", de John Schlesinger. Vi-o no Rio, e esta película somente chegou a Salvador nove meses depois. A província vivia a sua condição de paróquia! O soteropolitano sempre, portanto, atrasado em relação ao eixo sulino, o que "acontecia" por aqui era relacionado a "fatos", por assim dizer, exclusivamente baianos e, por consequência, a "baianidade" aflorava com mais força dentro de um conceito mais de expressão do que de consumo puro e imediato (como ocorre atualmente).
O cinéfilo tinha no Clube de Cinema da Bahia o seu único ponto de referência para ver filmes expressivos, marginalizados do circuito comercial. Mas é importante ressaltar que o controle exercido pelo cinema industrial americano não era tão absoluto como hoje, quando já atingiu e dominou a terceira "perna" do tripé produção-distribuição-exibição. Nesta época na qual me encontro (meados do decurso dos 60) existiam algumas empresas distribuidoras não americanas que jogavam no circuito muitos filmes franceses, italianos, alemães, espanhóis e até japoneses: A França Filmes do Brasil, a Companhia Cinematográfica Franco-Brasileira (que distribuiu toda a nouvelle vague), a Toho (japonesa), a Art (que importava fitas estrangeiras) etc. O cine Art (que virou Astor) da Rua da Ajuda só passava películas européias. Assim, o massacre' não era tão grande. Vi muitos filmes italianos e franceses no Art, "O Grito", de Michelangelo Antonioni, sua famosa trilogia "A aventura" - "A noite" - "O eclipse", comédias sensacionais de Mario Monicelli ("O Médico e o Charlatão", "Pais e Filhos", "Guardas e Ladrões", etc), os de Pietro Germi, "Yojimbo", de Akira Kurosawa, com Toshiro Mifune et caterva... Embora a predominância fosse, realmente, de filmes oriundos da indústria cultural hollywoodiana.
E o cinema americano era muito superior ao atual. Vi filmes inesquecíveis desta cinematografia dirigidos pelos grandes mestres, portadores, segundo François Truffaut, do "grande segredo". É também importante ressaltar que as reprises de filmes antigos eram frequentes (foi a televisão que matou as recolocações na tela do cinema). Assim, Alfred Hitchcock, Nicholas Ray, Vincente Minnelli (um dos melhores filmes que já assisti foi dele e se chama "Deus Sabe Quanto Amei"/"Some Came Running", com Frank Sinatra, Dean Martin e Shirley Mac Laine), Raoul Walsh, John Ford, Leo McCarey, Sidney Lumet, Frank Tashlin, Robert Aldrich, entre tantos e tantos outros, contribuíram sobremaneira na minha formação do cinéfilo. Mesmo os espetáculos mais comerciais, como as superproduções, tinham um encanto e um fascínio imperceptíveis nos "blockbusters" destes tempos. Se, por um lado, o cinéfilo se abastecia de bons filmes no circuito comercial, completando e refinando este abastecimento no Clube de Cinema das Bahia dirigido por Walter da Silveira, por outro, embasava seus conhecimentos com a leitura. Havia uma cultura literária que se esfumaçou com o império do áudio-visual. Lembro-me que, ainda estudante secundário, tinha como hábito a leitura de grandes clássicos. O estudante, para mostrar que não era "alienado", levava, debaixo do braço, três ou quatro volumes, que iam desde o romance do século XIX (Dostoievsky, Balzac, Flaubert, Dickens...) aos autores nacionais (Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos), passando pela poesia de Drummond, Bandeira, até chegar às obras de análises perfuratrizes da realidade brasileira como os livros de Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado, Caio Prado Jr, Euclides da Cunha etc.
Quem lê hoje "Crime e Castigo" ou "Os Irmãos Karamazov", de Dostoievsky? Quem conhece "As Ilusões Perdidas", de Balzac ou, de cabo a rabo, "Servidão Humana", de Somerset Maugham? A substituição da cultura literária pela cultura do áudio-visual determinou, creio eu, muito da perda de substância do cinema atual. A necessidade de sobrevivência nesta perversa era do neoliberalismo afastou a possibilidade de contemplação. Se há muitas informações, estas, no entanto, não estão sendo devidamente reprocessadas. É necessária a contemplação desinteressada. O próprio jornalismo se transformou, ficando mais superficial, mais imediatista. Desapareceram os grandes suplementos culturais, as criticas de rodapé, não se vê mais um David Nasser, um Joel Silveira, um Otto Lara Rezende... José Carlos Paz, crítico paulista, pouco antes de morrer desabafou; "Agora quero ter o direito de me desinformar e voltar aos meus clássicos," Concorde-se ou não com Paz, a verdade é que neste mundo atribulado o homem precisa do oásis do ócio produtivo.
Mas voltando ao meu itinerário como cinéfilo, a vida nos anos 60 era muito prazerosa. Terminada a sessão do Clube de Cinema, no Guarany, sábado de manhã, ia tomar umas cervejas no Cacique com os colegas, a discutir, a falar, sobre o cinema e o filme visto. No Rio, nas calçadas da Rua Senador Vergueiro, no Paissandu, a juventude se reunia nos bares após a sessão de um cinema do mesmo nome no que ficou conhecido como a "Geração Paissandu". A procura, a ânsia do novo, incessante, levava os cinéfilos a delirar com as experiências fragmentárias de Jean-Luc Godard, com um determinado travelling de Resnais, com o discurso moral de Eric Rohmer ou, também, com o espaço aberto de Ford, com o sentido rigoroso da mise-en-scène de Hitchcock e Lang, com as opiniões do "Cahiers du Cinema" ou, pela via brasileira, com as diatribes de Moniz Vianna e Rubem Biáfora, com a necessidade de se fazer, no Brasil, um cinema de identidade própria, com as propostas do Cinema Novo. "Deus e o diabo na terra do sol", de Glauber Rocha, um ponto de referência que se insinuava como "leitmotiv" das conversações etílicas, utópicas e sonhadoras. Anos depois veio John Lennon e pontificou: o sonho acabou. E não era que tinha acabado mesmo?

24 fevereiro 2013

Como nasce o cinema baiano


Tudo começa com Redenção. Iniciado em 1956, o filme, que vem a ser o primeiro longa baiano, leva três anos para ser concluído e exibido em noite de gala no cinema Guarany, em abril de 1959. (como mostra um trecho do documentário de Petrus e Hermida, O artesão de sonhos, com todos os presentes em traje a rigor, como era costume na época). Roberto Pires já tinha feito algumas experimentações amadorísticas em curtas como O calcanhar de Aquiles e Sonho. Seu pai tem uma ótica, a Mozart, e nela Roberto, fascinado com o cinemascope de O manto sagrado (The robe), que vê no mesmo Guarany no qual seria apresentado o seu primeiro longa, resolve investigar, na ótica do pai, para fazer uma lente anamórfica igual à lente do cinemascope. Desde já, além de um pioneiro, um inventor.
Mas Roberto Pires trabalha com alguns amigos (Oscar Santana, entre eles), mas não está vinculado às pessoas que discutem cinema no clube de Walter da Silveira, como Glauber Rocha, Luis Paulino dos Santos (autor de Um dia na rampa), entre outros. É somente a partir da estréia de Redenção que as pessoas começam a se aproximar dele. Porque ficam impressionadas com a concretização de um sonho: a realidade de um filme baiano de longa metragem projetado na tela de um cinema de escol como o Guarany.
Há, nesta época, pessoas que se interessam pelo cinema. Rex Schindler é um deles e se encontra, numa tarde, no escritório de Leão Rozemberg, com Glauber Rocha, então crítico de cinema do Jornal da Bahia, mas que não o conhecia pessoalmente. Este encontro ocasional entre Rex Schindler e Glauber Rocha dá início ao que mais tarde seria chamado de Ciclo Baiano de Cinema. Glauber, que já tem prontos dois curtas, O pátio e Cruz na Praça (desaparecido), não tem experiência prática e chama Roberto Pires para fazer parte do grupo. Schindler e Rocha, a ver o exemplo de Redenção, sonham na viabilidade e exequibilidade de se implantar, na Bahia, uma infra-estrutura cinematográfica. E surge a Escola Baiana de Cinema, que se estabelece com propostas e um cronograma mais ou menos definitivo. Schindler, associado a outros produtores, produz Barravento, que, incialmente é dirigido por Luis Paulino dos Santos e depois, por força de um golpe (segundo se propaga), a direção é dada a Glauber e o roteiro completamente reescrito em parceira com o esquecido José Telles de Magalhães. Segundo Schindler, Paulino quer uma mudança mística enquanto a idéia de Glauber é no sentido de, como diz o próprio título, uma mudança social. O fato é que Barravento demora quase três anos para ser lançado, o que ocorre em 1962, depois do lançamento de A grande feira. Glauber leva ao Rio o copião debaixo do braço para ver se Nelson Pereira dos Santos consegue montá-lo.
Estabelecidos os postulados da Escola Baiana de Cinema, entre os quais a procura de um cinema com raízes na cultura local sem a perda, contudo, do caráter universalista, o projeto se centraliza na criação de uma infra-estrutura capaz de que fossem realizados filmes de forma continuada e sistemática. O lucro de um seria investido no seguinte, e assim por diante. Num esquema de rodízio entre os diretores. Glauber Rocha assume Barravento e, assim, a seguir o cronograma, A grande feira, com argumento de Rex Schindler, é roteirizado e dirigido por Roberto Pires. O próximo, Tocaia no asfalto, tem programado Glauber Rocha na direção, mas este vai ao Rio montar Barravento e já cogita, no sul do país, a produção de Deus e o diabo na terra do sol, que seria realizado em 1963, com recursos oriundos da produtora de Jarbas Barbosa, a Copacabana Filmes. Além do mais, Glauber lança, por esta época, o manifesto do Cinema Novo no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil editado por Reynaldo Jardim.
A Bahia se torna uma Meca do Cinema, como diz o historiador renomado Georges Sadoul no jornal Les Lettres Françaises. E se torna um pólo aglutinador para cineastas do sul que aqui aportam na esperança de explorar o seu décor deslumbrante. Um dos pioneiros nesse sentido é Trigueirinho Neto, que faz Bahia de Todos os Santos, mas com intenções sérias, de análise dos conflitos sociais de uma sociedade. Não pretende Trigueirinho a exploração do décor, mas, ao contrário, a sua desmistificação. Outros, porém, gananciosos, possuem outros propósitos como a busca do exotismo tropical como faz o francês Robert Mazoyer que, baseado num argumento de Jacques Viot, realiza aqui O santo módico, sobre um jovem pescador desiludido que, apaixonado por uma bela mulher, é abandonado por esta que o troca por outro. Em torno da população, uma imagem sacra que parece solucionar problemas de toda ordem. Viot pretende focalizar a superstição de um povo subdesenvolvido que é manejado por forças ocultas. No elenco, atores baianos entre outros estrangeiros e brasileiros: Irene Boriski, Edgard Carvalho, Heitor Dias, Jorge dos Santos, Gessy Gesse, Zezé Macedo, Leny Eversong, Maria Lígia, Oscar Santana, Léa Garcia, Breno Mello, Jurema Penna, José Teles de Magalhães, Lídio Silva etc. Ruy Guerra funciona como assistente de direção e a iluminação está a cargo de dois profissionais de alta competência: Roger Blanché e Andréas Winding. Com assistência de Hélio Silva. O filme, porém, está desaparecido.
Assim, Glauber não tem condições geográficas de dirigir Tocaia no asfalto, como está planejado, que é entregue a Roberto Pires em 1961, ano do lançamento deA grande feira em Salvador, a alcançar uma bilheteria sem precedentes, superando, inclusive, o grande êxito do cinema mundial: Ben-Hur, de William Wyler, com Charlton Heston. Os baianos vão em massa ver A grande feira, lançado, com festa, em duas salas: uma de primeira linha, o Capri, e outra mais popular, o Jandaia.
Por que Rex Schindler não produz Deus e o diabo na terra do sol, a precisar Glauber ir ao Rio buscar recursos? Segundo se conta, porque Schindler, ao invés de patrocinar a obra glauberiana, prefere investir numa co-produção de Portugal e Brasil: A montanha dos sete ecos, todo filmado em Cachoeira, cidade histórica, importante na consolidação do 2 de Julho de 1823, quando se dá, realmente, a completa independência brasileira iniciada em 7 de setembro de 1822 (independência, vírgula, bem entendido, pois apenas a dívida portuguesa com a Inglaterra, a dona do mundo naquele momento, passou para o Brasil). A montanha dos sete ecos, de um tal de Armando de Miranda, chega a ser exibido em algumas capitais. Um filme de aventuras com atores baianos como João Di Sordi, Roberto Ferreira (o Zé Coió, o Zazá de A grande feira), João Gama, Milton Gaúcho, Jota Luna, José Telles de Magalhães (que funciona também como diretor de produção). O principal não é da Bahia: Milton Morais.
A Escola Baiana de Cinema, que tem Schindler como principal produtor, ao lado de David Singer e Braga Neto, tem, a rigor, os seguintes filmes: BarraventoA grande feira, e Tocaia no asfalto. Outros filmes considerados genuinamente baianos, no entanto, aqui são feitos, como O caipora (1963), de Oscar Santana, produzido por Winston Carvalho, sobre um azarento (Carlos Petrovich), um caipora (como se denomina no interior), que se apaixona pela filha do coronel local (Milton Gaúcho), mas sofre o preconceito e a discriminação da população local. Ainda no elenco, Maria Adélia (em impressionante caracterização), Iva Di Carla, João Di Sordi, Garibaldo Matos (que depois se tornaria juiz de futebol), Leonel Nunes, Jurema Penna, Conceição Senna, Lídio Silva (o beato Sebastião do filme de Glauber), José Telles de Magalhães (este está em todas). A fotografia (em excelente preto e branco) é de Giorgio Attili, montagem de Roberto Pires (amigo de Oscar desde os primórdios) e como diretor de produção um futuro cineasta: Agnaldo Siri Azevedo.
Outro filme genuinamente baiano é Sol sobre a lama (1964), uma produção de João Palma Neto, que, antigo feirante e sindicalista, considera que A grande feira trata superficialmente a questão do drama da feira de Água de Meninos. Decide, então, com dinheiro do próprio bolso, dar uma espécie de resposta a A grande feira. O filme tem roteiro escrito por Miguel Torres (que falece em acidente logo depois), e, para dirigi-lo, Palma chama Alex Viany. O resultado final não agrada ao produtor e a questão acaba na justiça. Há, desse filme, uma versão de Viany, a que passa no lançamento no Guarany, e uma versão de Palma Neto. Sol sobre a lama, na versão do crítico carioca Viany, é muito influenciado pelo cinema japonês pelo qual o cineasta está apaixonado e contraria o sentido de timing querido pelo produtor. Mas se constitui um sucesso, uma produção mais ambiciosa. A fotografia (em deslumbrante colorido) é do consagrado Ruy Santos. Vinicius de Moraes coloca a letra no Lamento de Pixinguinha especialmente para este filme, que tem no elenco Othon Bastos, Geraldo D'El Rey, Jurema Penna, Dilma Cunha, Roberto Ferreira, Milton Gaúcho, Gessy Gesse (que se tornaria a sexta ou sétima mulher do poetinha), Maria Lígia, Garibaldo Matos, Glauce Rocha, Lídio Silva, Carlos Petrovich, Antonio Pitanga, Doris Monteiro...
Em Feira de Santana, Olney São Paulo deseja filmar a novela Caatinga, do fazendeiro Cyro de Carvalho Leite, e encontra neste o apoio para realizar O grito da terra (1964), canto de cisne do Ciclo Baiano de Cinema. Filme sobre o drama de homens e mulheres que vivem a violência e a fome do sertão agreste, O grito da terra tem, no seu cast, Helena Ignez, João Di Sordi, Eládio de Freitas, Augusta São Paulo, Lídio Silva, Orlando Senna, entre outros. Fotografia de Leonardo Bartucci. E partitura musical do maestro Remo Usai, que faz também a música de A grande feira e Tocaia no Asfalto. Aluno de Miklos Rosza, Usai é um partiturista de alto nível que vem a valorizar muito os filmes baianos.