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21 fevereiro 2013

Do melodrama, este marginal

William Holden e Kim Novak em Férias de amor (Picnic, 1955), de Joshua Logan

Todos os grandes filmes são melodramáticos! Há um preconceito arraigado contra o melodrama por parte das mentes ditas intelectualizadas que precisa ser desmontado, desfeito. Hitchcock, em "Marnie", elevou o melodrama à condição de obra de arte. Há momentos de melodrama nas cenas entre o protagonista e Susan Alexander em "Cidadão Kane". Os importantes filmes de Vicente Minnelli, o estilista mais sofisticado do cinema, são melodramas, como Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953), "Deus sabe quanto amei" ("Some came running", 1958), "Adeus às ilusões" ("The sandpiper", 1964), entre muitos outros. "Casablanca" e ..."E o vento levou" são momentos sublimes de grande melodrama. Infeliz do filme que não tenha inserido nele elementos melodramáticos! Talvez o cinema brasileiro não tenha se firmado como indústria por causa da virose cinemanovista, que tinha preconceito com o melodrama.
E as novelas atuais, se são melodramáticas, estão longe, entretanto, do dramalhão. Aliás, a partir de "Beto Rockfeller" (1969), a dramaturgia nacional televisiva se afastou do dramalhão, cujo modelo vinha do México. Ainda hoje este país conserva elementos do dramalhão como se pode ver nas novelas importadas e dubladas pela SBT. Um bom realizador sempre evita cair no dramalhão, levando o melodrama para o patético ou o trágico ou, simplesmente, deixando-o apenas no tom exato. Douglas Sirk fez excelentes melodramas: "Palavras ao vento" ("Written on the wind"), "Tudo que o céu permite", "Imitação da vida", etc. E se, em Hithcock, a quintessência melodramática se encontra em "Marnie", quando encontra o sublime, em quase todos os seus filmes sempre há uma, por assim dizer, história de amor com elementos melodramáticos. Há algo mais belo do que a poética de um Jacques Demy? Que, em Os guarda-chuvas do amor alcança a sublimidade, fugindo do dramalhão, para se situar na tragédia do amor e da existência?
Como definir o melodrama: Drama melado? Drama açucarado? E o que é o drama? Todo filme é um drama, considerando que drama é ação, cadeia de acontecimentos. Assim, até a comédia é um drama. Filmes de minha preferência, como "Férias de amor" ("Picnic", 1955), de Joshua Logan, com William Holden e Kim Novak, são melodramas. Adoro, portanto, um melodrama. Já o clichê se instaura quando uma certa mesmice se repete sem haver densidade poética, mas, apenas, repetição de ganchos narrativos. Até mesmo um filme inovador, que traumatizou toda uma geração, como Hiroshima, mon amour, é, também, um melodrama.
Se o cinema de Godard, entre outros, revolucionou a linguagem do cinema na década de 60, também, por um lado, foi contraproducente, pois implantou na mentalidade cinefílica e atávica a mania da desconstrução, que se espraia, como metástase, até mesmos nos estudos acadêmicos da área das humanidades. Hitchccok já dizia que com o melodrama é mais fácil se alcançar o sublime. Sublime que ele alcançou com o citado Marnie e que Chaplin conseguiu chegar em Luzes da cidade (City light, 1930), um trágico-sublime, poderia dizer.
E "Crepúsculo dos deuses" ("Sunset boulevard", 1950), de Billy Wilder, por acaso não contém uma carga melodramática respeitável? Usa-se, no entanto, a expressão melodrama no sentido pejorativo quando em relação ao cinema e ao teatro ou, mesmo, à literatura. As grandes narrativas do cinema são sempre de estrutura simples, linear ou binária ou, ainda, circular. Há, por outro lado, grandes filmes que fogem a este esquema: "Morangos silvestres" ("Smultronstallet", 1957), de Ingmar Bergman, "Oito e meio" ("Otto e mezzo", 1964), de Federico Fellini, entre muitas outros. O importante é o talento do realizador, sua capacidade de pensar cinematograficamente. Assim como faz Clint Eastwood em seus filmes.
O preconceito ao melodrama se acentua nos últimos decênios com a falência múltipla das aspirações idealistas e o estabelecimento de uma estética baseada no realismo tout court ou, mesmo, no naturalismo. O público, diante de uma realidade cada vez mais pragmática e consumista, não aceita mais o intimismo, os filmes que idealizavam e estilizavam a vida e os homens. Um filme é bom, para a maioria dos pseudo-cinéfilos que frequentam as salas alternativas, quando diz coisas nobres e belas, desconhecendo eles que um filme é bom quando sabe dizer e toda a questão se encontra no como e não na coisa em si. A natureza nobre de um tema condiciona o espectador a achar que determinada obra cinematográfica é boa. Ledo e ivo engano!
A nova geração ri de certas sequências com alguma carga melodramática. Assim, quando James Stewart e Kim Novak, frentes ao mar, que bate, furioso, nos rochedos, se beijam apaixonadamente com a ênfase sendo dada pela partitura de Bernard Herrmann, o público ri numa confissão completa de ignorância e ausência de sensibilidade. Em outros casos, como o princípio da autoridade está patente, caso de "Casablanca', a geração fim-de-mundo, esta da estética do vídeo-clip, finge gostar para não ficar "out".
É todo um processo de reeducação que se tem que colocar aliado às mudanças culturais, ao espírito da época, ou, se se quiser, ao "l'esprit du temps".

20 fevereiro 2013

O surrealismo no cinema


O cineasta, quando realiza um filme, traduz o real, e, no cinema, há, basicamente, quatro modos de representação da realidade: (1) o realismo e suas variadas vertentes (neo-realismo, realismo poético, realismo socialista...); (2) o idealismo (também conhecido como intimismo cujo apogeu se dá com a idade de ouro do cinema americano - anos 30 e 40); (3) o expressionismo (Alemanha nos anos 10 e 20); e (4) o surrealismo, que tem em Luis Buñuel a sua maior expressão. O grande público está mais acostumado com o realismo e o intimismo. Um filme surrealista sempre deixa nele uma impressão de confusão, pois habituado a ver tudo mastigado, com uma explicação racional e lógica para as artimanhas do enredo. Vamos ver aqui em rápidas pinceladas o que vem a ser o surrealismo no cinema.
O surrealismo parte de uma atitude revolucionária em filosofia, cujo verdadeiro objetivo não consistiria em interpretar o mundo, mas, sim, em transformá-lo. Na forma exposta por seu principal animador, André Breton, o surrealismo revela forte influência do materialismo dialético, dele retirando sua "lógica da totalidade". Assim como o sistema social constitui um todo e nenhuma de suas partes pode ser compreendida separadamente, a arte não deve ser o reflexo de uma parcela de nossa experiência mental (a parcela consciente), mas uma síntese de todos os aspectos de nossa existência, especialmente daqueles que são mais contraditórios.
O surrealismo tenciona apresentar a realidade interior e a realidade exterior como dois elementos em processo de unificação, e nisto está sua capacidade de passar do estático para o dinâmico, de um sistema de lógica a um modo de ação, o que é uma característica da dialética marxista. O cinema se revelou como o instrumento ideal para a conquista da supra-realidade, pois a câmera é capaz de fundir vida e sonho, o presente e o passado se unificam e deixam de ser contraditórios, as trucagens podem abolir as leis físicas, etc.
Quando Buñuel apresentou, em Paris, O Anjo Exterminador (1961), o exibidor lhe solicitou que escrevesse alguma coisa para colocar na porta da sala de exibição. Buñuel rabiscou o seguinte: "A única explicação racional e lógica que tem este filme é que ele não tem nenhuma". Noutra ocasião, ao ganhar o Leão de Ouro de Veneza por A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1966), lhe perguntaram o significado da caixinha de música que um japonês carrega quando no quarto com Catherine Deneuve. O cineasta respondeu que não sabia. Assim, o espectador não pode racionalizar dentro de determinada lógica nos filmes surrealistas. É claro que os significados existem, amplos, dissonantes e insólitos. E por que os convidados aristocráticos de O Anjo Exterminador, ainda que não haja nenhum obstáculo que lhes impeçam de sair, não conseguem evadir-se da mansão? Um recurso surreal para a análise da condição humana, um laboratório criado para se investigar pessoas numa situação-limite.
Excetuando-se alguns ensaios vanguardistas e sua fugidia presença em comédias de Buster Keaton, Jerry Lewis, Jim Carrey, em filmes de Carlos Saura (Mamãe Faz Cem Anos, etc), Jean Cocteau (O Sangue de um Poeta/Le sang d'un poete), entre poucos outros, o surrealismo cinematográfico está inteiramente contido em Un Chien Andalou (1928) e L'Age D'Or (1930), ambos do espanhol Luis Buñuel, com colaboração de Salvador Dali. A cena inicial do primeiro é famosíssima: o próprio Buñuel, após contemplar uma enorme lua prateada no céu, afia uma navalha e corta pelo meio o globo ocular de uma mulher que está sentada. No segundo, vemos um cão ser arremessado pelos ares, uma vaca deitada sobre a cama, um bispo e uma árvore em chamas sendo despejados por uma janela, situações de delírio erótico, baratas numa mão que toca pianola, etc.
A ambiguidade do termo surrealismo pode sugerir transcendência, predomínio da imaginação sobre a realidade. Seria pura imaginação de Séverine sua ida ao bordel todas as tardes? A rigor, isso não importa, A significação é mais ampla, conecta-se mais ao discurso do modo de tradução do real. O surrealismo pretendia um automatismo psíquico que expressasse o funcionamento real do pensamento. Você, caro leitor, às vezes não tem pensamentos indesejáveis? É o inconsciente. Assim, e isto é muito importante, o domínio do surrealismo é o que acontece na mente humana antes que o raciocínio possa exercer qualquer controle. O papa surreal André Breton dormia com um caderno em cima do criado mudo para anotar os seus sonhos, chamando, tal comportamento, de escrita automática.
O automatismo provocado pelo surrealismo implica numa transfiguração anárquica do mundo objetivo, cujo efeito imediato é o riso. Mas o humor, aqui, é uma nova ética destinada a sacudir o jugo da hipocrisia. E o sonho é encarado como uma revelação do espírito, sendo afirmada a sua riqueza sob o duplo ângulo da psicologia e da metafísica. Para chegar à consciência integral de si próprio, o homem tem de decifrar o mundo do sonho, pois deixá-lo na obscuridade representa uma mutilação do nosso ser.
Un Chien Andalou e L'Âge d'Or procuravam, pois, o homem integral, "buscando a recuperação total de nossa força psíquica por um meio que representa a vertiginosa descida para dentro de nós mesmos, a sistemática iluminação de zonas ocultas", como consta do manifesto de Breton. Neles têm um papel saliente o grotesco, o cruel, o absurdo, tudo com um sentido de revolta e solapamento.
Segundo Breton, qualquer divisão arbitrária da personalidade humana é uma preferência idealista. Se o propósito é o conhecimento da realidade, devemos incluir nela todos os aspectos de nossa experiência, mesmo os elementos da vida subconsciente. Essa é a pretensão do surrealismo, movimento artístico que abrangeu além da pintura, escultura e cinema, também a prosa, a poesia, e até a política e a filosofia.

17 fevereiro 2013

Charles Molina vai ao paraíso

Carnavalesco ad hoc, jornalista cultural (com passagens pela crítica cinematográfica), cineasta bissexto (Dagoberto vai ao paraíso), autor dos excelentes clipes do Na Cena exibidos em alguns eventos, chef de cuisine nas horas vagas (suas pastas servidas na Praia dos Livros foram notadas por grandes mestres da cozinha internacional), Raul Moreira é uma figura sui generis no cenário cultural baiano. O que o caracteriza é a sua visão anarquizante do mundo e das coisas, seu espírito irônico, sua ânsia e gula pela joie de vivre (alegria de viver). Nunca dorme de touca, o Raul Moreira, apesar da foto, mas esta se refere a um programa que realizou para a Tv Educativa da Bahia durante o Carnaval que passou, assumindo o personagem de Charles Molina em parceria com Daniel Lisboa. O desafio feito pela TvE foi plenamente realizado, e Molina saiu a percorrer os camarotes mais prestigiados da folia momesca a entrevistar personalidades da cena soteropolitana, nacional e, mesmo, internacional. Touca vermelha na cabeça, óculos bem escuros, um arremedo de paletó preto a cobrir a camisa de seda vermelha, e, para dar um touch especial, uma fita que não se sabe se é a do Senhor do Bonfim. O fato é que a sua performance como uma espécie de colunista social a andar pelos interiores dos camarotes não deixa de se constituir numa celebração anárquica e cômica sem perder, contudo, o approach de um serventuário das imagens televisivas. Considerando a mesmice das transmissões da folia pelas canais competentes e incompetentes, quem perdeu Charles Molina na TvE tem a chance, agora, de vê-lo em ação clicando, apenas, no link a seguir:

PS: Roteiro e direção: Daniel Lisboa. A montagem, Daiane Santos. A câmera ficou em mãos de Leandro Caldas, auxiliado, no som, por Leonardo Almeida. Produção de Karem Moraes.