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20 julho 2006

O dia em que conheci RUBEM BIÁFORA


Dezembro de 1979. Nesta época, estava no Rio de Janeiro e precisei ir a São Paulo resolver um negócio. Hospedei-me no Hotel Central, que fica na Avenida São João. Mas não pude solucionar a questão que me levou a SP pelo fato de a pessoa, com a qual deveria me encontrar, ainda que combinado o encontro, teve de viajar de repente. Assim, restei-me sozinho, e sem fazer nada, no citado hotel. Comentarista cinematográfico diário do jornal Tribuna da Bahia, lembrei-me de ter recebido uma carta do cineasta Juan Bajon (que não conhecia) sobre o lançamento de seu filme, O estrangulador de mulheres, em Salvador. Visto o filme, e considerando a gentil missiva, recortei a página, na qual estava estampada minha crítica, e a mandei ao realizador, pois tinha gostado do filme, principalmente pelo seu lado bizarro e insólito (enterro de baratas, etc). E, vale ressaltar, nunca mandei nada para ninguém. Nunca tive o hábito de recortar artigos para enviá-los. Mas, surpreendentemente, talvez pela carta pessoal - o que não é também hábito dos realizadores, bastando aos críticos os releases das distribuidoras, resolvi isto fazer. Bajon me respondeu em várias folhas datilografadas (naquele tempo computador era peça de Millor Fernandes).

Assim, no quarto do Hotel Central, vi, no criado-mudo, um grosso catálogo de telefone, e resolvi procurar o nome de Juan Bajon. Qual não foi a minha surpresa quando, achando-o, telefonei e ele, muito receptivo, disse-me que o esperasse em cinco minutos. Menos do que isso, o telefone toca me anunciado que, na portaria, tinha uma pessoa como o nome de Juan Bajon a me esperar. Desci e o encontrei. Um rapaz em torno de trinta anos, chinês, que me recebeu com bastante efusividade. Fomos a um bar na Avenida São João, e tomei algumas cervejas, ainda que Bajon não bebesse. Convidou-me, então, para almoçar no bairro da Liberdade, onde mora quase toda a colonia de nipônicos. Conversamos bastante e, de tarde, levou-me à rua do Triunpho, lugar do nascimento e estabelecimento da famosa Boca do Lixo, quando ele me apresentou a vários cineastas. Resolvi me sentar num daqueles bares, e, totalmente em ócio, continuei a tomar minhas cervejas, desfrutando do ambiente. A las cinco de la tarde, Juan Bajon se despediu, convidando para me levar ao hotel. Fiquei, no entanto, a continuar o processo etílico começado. Mas disse, taxativo, que iria, no outro dia, me apanhar às dez horas no hotel para irmos ao apartamento de Rubem Biáfora, que disse ser seu amigo. Gostei da idéia, pois Biáfora, para mim, aos 29 anos, era um mito.

Durante a rolagem de pensamentos que ocorre sempre quando se bebe sozinho, achei que Bajon, apesar de simpático, tinha um anti-comunismo feroz. Esquerdista que era, não gostei muito disso. Contou-me que sua família, por burguesa, tinha sido massacrada pelas tropas de Mao-Tsé Tung. Estava, no entanto, mais preocupado em conhecer o famoso Biáfora. Fui para o hotel e ainda, neste, tomei, no quarto, mais cervejas, compradas em latas grossas na avenida - ainda não havia as latinhas leves e práticas. Acordei de ressaca pelo telefone, cujo recepcionista me informava da chegada de um tal de Juan Bajon. Falei com ele e pedi, desculpando-me, para que esperasse dez minutos, pois tinha, ainda, que tomar banho.

Fomos andando para o apartamento do severo crítico. Antes de entrar, Bajon se dirigiu a um telefone público, comunicando a nossa subida. E ao sairmos do elevador, já estava Biáfora a nos esperar. Não podia acreditar: Gervásio Rubem Biáfora em pessoa. Entramos e ficamos a conversar. Biáfora me recebeu com muita gentileza e disse ter gostado de meu comentário sobre O estripador de mulheres. Percebi, então, que Bajon realmente tinha amizade com o crítico. Irônico, lembro-me que falou mal da frase de Paulo Emílio Salles Gomes, quando afirmou que o pior filme brasileiro era melhor do que qualquer filme estrangeiro, achando-a uma bobajada (sic). Não estou, aqui, fazendo juízo de valor nem concordando com o crítico, mas constatando fatos. Recordo-me que contou que dias atrás tinha ido a um cinema ver Procura insaciável (Taking off), de Milos Forman, com sua colega do Estado de São Paulo, Pola Vartuk - que já morreu, e ficou estupefato quando esta, na seqüência em que todos fumam maconha, engoliu as orelhas de tanto rir. Achou que uma senhora daquela idade não deveria ficar tão efusiva. Mas sempre rindo. Muita conversa rolou até que falei de Walter Hugo Khoury. Biáfora, então, disse que era seu vizinho e telefonou para ele a perguntar se poderia dar um pulo acompanhado de um jornalista baiano. Khoury concordou e pediu, apenas, meia hora, pois estava na banheira. Biáfora me disse que quando o realizador de Noite vazia acordava tinha o hábito de ficar na banheira por um bom período de tempo.

Subindo o elevador , a porta deste se abre diretamente no apartamento de Khoury, não havendo , portanto, hall. Khoury nos recebeu no seu imenso espaço, e eu, Biáfora, Bajon, conversamos bastante, apesar de um certo acanhamento característico de minha personalidade, que se poderia traduzir por timidez. De repente, de um dos quartos, aparece Sandra Bréa, que estava trabalhando com ele em O convite ao prazer. Finda a visita, estávamos já na rua, quando Biáfora nos convida para almoçar num restaurante italiano ali perto. Fomos. Iria viajar à meia-noite de ônibus para voltar ao Rio de Janeiro e já tinha fechado a conta no Hotel Central. Depois do almoço, resolvi me despedir para andar pelas ruas de São Paulo até o anoitecer, quando iria para a rodoviária esperar o ônibus. Ciente do fato, Biáfora, terminada a refeição, convidou-me para descansar um pouco em seu apartamento. Bajon, lembro-me, não nos acompanhou porque estava com um parente muito doente. Na entrada do prédio, o porteiro disse que tinha ali uma encomenda para ele. Era um álbum de fotografias americano, fotografias de atrizes famosas, as divas do cinema, como Greta Garbo, em imagens ricamente iluminadas. Já no apartamento, não tive vontade de descansar, e Biáfora me mostrou os cadernos manuscritos onde anotava os filmes que via, com fichas completíssimas, comentários, etc. Quando falei de minha admiração por Moniz Vianna, Biáfora, incontinenti, pegou do telefone e ligou para ele, que concordou em me receber quando estivesse no Rio. Perguntei como, antigamente, conseguia as fichas técnicas já que as distribuidoras não as forneciam assim tão completas. Disse-me que anotava tudo dentro do cinema. Via o filme e, depois, na outra sessão, ficava a anotar.

Bem, para quem não sabe, Gervásio Rubem Biáfora foi um dos grandes críticos de cinema dos anos 50, 60 e 70. Também realizador, dirigiu, entre outros, dois filmes que merecem, porque muito bons, uma revisão: Ravina e O quarto, este último, para mim, o seu melhor trabalho, que foi injustamente desprezado pela crítica ideológica.

17 julho 2006

Será o Benedito?


Para os que nasceram na era do vídeo, e, agora, do disquinho mágico, nada muito surpreendente. Mas para aqueles, como eu, que nasceram em priscas eras, em meados do século passado (1950, para ser mais preciso), com o tempo passando rápido - ó tempo suspende o teu vôo!, implacável, o advento do VHS foi uma surprêsa, e a do DVD, com tantos dreyers e bergmans, minnelis e langs, hawks e fellinis, espalhados por aí, quase um assombro. Alguém já disse que foi pelo assombro que o homem começou a filosofar, mas, isto, outra história. Acontece que, antigamente, as imagens em movimento somente eram possíveis de ser contempladas no escurinho das salas exibidoras, havendo, para isso, de se pagar um ingresso. A televisão, naquela época, era muito ruim em termos de imagem. Assim, havia duas características no que diz respeito à psicologia da recepção: a inacessibilidade e a impossibilidade de o espectador intervir na temporalidade. Na primeira, quando dentro do cinema, e sala enorme, com quase dois mil lugares, verdadeiros palácios, a imagem que se via na tela era algo mágico, inacessível. Lembro-me que havia um senhor que vendia fotogramas de filmes na Praça da Piedade (aqui em Salvador), e que também oferecia para compra uma lata que, devidamente furada, continha, em uma de suas extremidades, uma lente de óculos que permitia ver os fotogramas com mais nitidez do que a ôlho nu.

Se um determinado filme era exibido e, por acaso, estivesse doente ou viajando, retirado de cartaz, podia perdê-lo para sempre, excetuando-se os grandes sucessos que sempre eram recolocados. E, na segunda característica, a impossibilidade de intervenção na temporalidade. Projetado o filme, este se desenrolava na tela - ou no écran, como se dizia então, e ninguém podia pará-lo, retrocedê-lo, avançá-lo, salvo se entrasse na cabine de projeção e, revólver em punho, ameaçasse o operador. Mas a inacessibilidade e a temporalidade se tornaram favas contadas com o surgimento do VHS e do DVD. Há, inclusive, creio, uma perda da aura cinematográfica. Se os disquinhos funcionam como o resgate do cinema, por outro lado, no entanto, perdeu-se a magia do espetáculo, visto em comunhão numa platéia. O indivíduo hoje já nasce vendo imagens em movimento e, por isso, elas se tornaram vulgares.

Quando me contaram que, nos Estados Unidos, inventaram um aparelho pelo qual se podia ver filmes, que ficavam dentro de uma caixinha, não acreditei. Era o vídeo que então estava inventado e restrito ao território de Tio Sam. Precisei, como São Thomé, ver para crer, o que aconteceu em torno da metade dos anos 80, quando comprei o meu primeiro aparelho de VHS, um Sharp, que me deu muito trabalho de sintonizar. E as cópias eram péssimas. Precisou-se esperar que o DVD surgisse para que o cinema recebesse uma punhalada nas costas (na região pulmonar). Mas vou contar uma história.

Corria o ano de 1973. Estava no Rio de Janeiro a passar as férias de julho. O jornal da época era o Jornal do Brasil, com seu excelente Caderno B. Neste, tomei conhecimento que Ladrões de bicicleta ia ser exibido na Cinemateca do Museu de Arte Moderna numa única sessão pela tarde. Conhecia muitos filmes, nesta ocasião pré-vídeo, de ouvi dizer e de leitura, alguns importantes com muitas informações. Era o caso de Ladri di biciclette, de Vittorio De Sica, que nunca tinha visto por falta de oportunidade e, também, porque nunca foi exibido em Salvador durante o meu itinerário existencial (depois passou algumas vezes). Assim, fiquei a postos, esperando o horário, com certa expectativa, expectativa, aliás, que não tenho mais para quase nada. Chovia fino. Entrei na sala da saudosa Cinemateca. Mas, quando saí, um toró se abateu sobre a cidade, que ficou completamente engarrafada. Difícil pegar um táxi. Depois de algum padecimento embaixo da marquise do museu, resolvi ir andando do Flamengo, onde fica este, até Laranjeiras, onde estava hospedado. Cheguei encharcado e, no outro dia, com febre alta, ameaçado de pneumonia. Mas estava feliz por ter visto Ladri di biciclette. Atualmente, tenho-o em VHS, que fica guardado, parado.

Não seria mais possível um sacrifício tal para ver um filme. Tenho um amigo, por exemplo, que ia sempre à Paris para se meter na Cinematheque Française e ficar o dia todo vendo obras clássicas. Hoje tem um home theater chez toi e há anos que não viaja. Viajava somente para ver filmes.

Poesia e sensibilidade



Ainda insisto em me inquietar com o tempo que passa, pois parece que vi Beijos roubaods (Baisers volés, 1968), de François Truffaut, no máximo há uma década. Ontem, domingo, o revi no Cult - que está melhorando sua programação, dos canais Telecine (Net/Sky). Passados 38 anos de sua realização, o filme tem uma fluência narrativa que parece ter sido feito hoje, principalmente na utilização das elipses, dos cortes, das transições. Exibe um frescor, uma espontaneidade, e uma necessidade de pegar o instante para que o amor se perpetue, ainda que na ilusão desse mesmo instante captado. Realizado nos turbulentos meses de 1968, François Truffaut faz uma comédia romântica que ficou preservada das circunstancialidades, das contingências do momento. Mas não deixa de se referir às turbulências em alusões passageiras. A seqüência do escritório dos detetives, já no final, é elucidativa do método do realizador em apanhar uma série de situações num plano geral com discretos movimentos de câmera. Assim, vê-se o escritório com Antoine Doinel sendo chamado pelo chefe da agência e, quando sai, fala com o velho detetive, que fica fora de campo. Num movimento de câmera, estando, ainda, na mesma tomada, toma-se conhecimento da morte deste, que é fulminado por um ataque e cai, desfalecido, no chão. Ou seja: o velho e simpático detetive morre fora de campo.

Jean-Pierre Léaud está perfeito como Doinel - excelente quando, diante do espelho, fica repetindo o nome da personagem de Delphine Seyrig e de Claude Jade e dele próprio. Baisers volés respira um frescor, como foi dito acima, que responde como a renovação detonada pela Nouvelle Vague. Um cinema menos rígido, menos literário, feito de pequenas situações, e que procura a expressão dos sentimentos dos personagens, que não deixam de ser a vox do autor. A belíssima canção de Charles Tranet abre e fecha o filme. O primeiro plano de Beijos roubados aponta em direção da entrada da Cinemateca Francesa, cujo presidente, Henri Langlois, fora deposto por André Mauraux, provocando protestos unânimes dos maiores cineastas. Episódio que Bernardo Bertoluci retrata no início de Os sonhadores.

Sai-se do filme, depois de tê-lo visto, flutuando.

16 julho 2006

RIO VERMELHO


Se existe um clássico perfeito para caracterizar o western, o cinema americano por excelência na definição de André Bazin, Rio Vermelho (Red River, 1948), de Howard Hawks, é o exemplar mais autêntico e paradigma de outros filmes do gênero. É verdade que No Tempo dasDiligências (Stagecoah, 1939), do mestre John Ford, lança as bases do arquétipico westerniano, mas a fita de Hawks representa, nove anos depois, uma espécie de cristalização e amadurecimento do western na sua mais pura tradução e pureza antes que o gênero seja contaminado pelo psicologismo.

Obra-prima incontestável, faz parte de um quarteto junto com Onde Começa o inferno (Rio Bravo, 1959), que o crítico da Folha de São Paulo, Inácio Araújo, considera o melhor filme jamais realizado, Eldorado (idem, 1965), uma espécie de remake deste último, e, por fim, Rio Lobo (1972), realizado já no ocaso de carreira desse genial diretor, que, aqui, despede-se do cinema.

As fontes míticas do gênero estão na anexação do estado independente do Texas (1845) e a conseqüente guerra dos Estados Unidos contra o México (1846-1848), na descoberta do ouro na Califórnia (1848), na construção da via-férrea transcontinental "Union Pacific" (1864) e na guerra civil entre sulistas e nortistas, a chamada Guerra de Secessão, retratada em inúmeros filmes de "O nascimento de uma nação" (1914-15), de David Wark Griffifh a ...E o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939), de Victor Fleming e David Selznick.

Sobre a base da realidade histórica, o western, de fato, construiu uma mitologia e o crítico André Bazin pôde dizer que o gênero nasceu do encontro de uma mitologia com um meio de expressão. Nele, o cowboy (vaqueiro) é elevado à dignidade de mito: o mito do homem livre, próximo de suas raízes telúricas e captado num estado nascente da sociedade, à qual tem de impor, pela força, a ordem e a prosperidade.

Howard Hawks é um exemplo raro de cineasta que é autor sem se prender a um gênero específico. Se faz westerns primorosos como Rio Vermelho, é capaz, também, de incursionar pelo musical (Os homens preferem as louras), pela comédia (Levada de Breca, O Inventor da Mocidade...), pela aventura (Hatari!...), pelo thriller (À Beira do Abismo/The Big Knife...), etc. Em todos os gêneros, entretanto, sua marca está presente, o comportamento de seus personagens é sempre igual, o estilo do cineasta nunca muda, chegando, mesmo, a se dizer da existência de um homus hawksiano.

Rio Vermelho se concentra na história da transferência de um rebanho de Rio Rojo a Abilene, onde os bois e vacas devem ser vendidos no mercado de gado. John Wayne é Thomas Dunson, o chefe, um déspota, que, com seus métodos brutais, provoca uma rebelião entre os vaqueiros.Um destes, Montgomery Clift (Matthew Garth) toma o comando e abandona Wayne, com um cavalo, em pleno deserto.Uma vez vendido o gado em Abilene, Wayne, que com muito esforço consegue chegar à cidade, desafia Clift, mas este, recusa-se a duelar e luta com Wayne com os punhos cerrados. Os dois parecem que não se compreendem, mas a astúcia de uma mulher (Joanne Dru), que Clift salva dos índios, consegue, por fim, a reconciliação entre os dois homens.

Além das interpretações excelentes de Montgomery Clift e John Wayne (talvez em seu melhor papel no cinema), assim como a do elenco secundário (Walter Brennan, John Ireland, Noah Beery Jr...), o mais importante em Rio Vermelho é que este filme funciona como um excepcional documento da vida dos cowboys, seus costumes, seu folclore, o ambiente e a paisagem daquele período da colonização norteamericana. E mais ainda: o sentido perfeito de cinema de Hawks, o alento épico, a paisagem, a simplicidade e força das personalidades individuais.

Rio Vermelho é a história de uma amizade – um dos temas fundamentais da obra de Hawks. Clift, órfão, depois que seus pais são mortos pelos índios, é recolhido por Wayne que, na travessia de Rio Rojo a Abilene, se desentende com aquele que é quase um filho. O western mais telúrico de Hawks, ainda que Rio Bravo seja mais cortejado, Red River mostra o eterno conflito de seus personagens, que se resolve através de um itinerário físico, captado pela câmera com a força do imediatismo. A música de Dimitri Tiokim fica nos ouvidos.

Audrey Hepburn, um encanto de mulher, pode ser vista, neste mês de julho, no Telecine Cult, que programou quatro filmes da bela dama: Sabrina, Quando Pàris alucina, Bonequinha de luxo, e Cinderela em Paris.