A mãe do cineasta José Umberto Dias, que faleceu na semana passada, Dona Marizete Freire Dias, trabalhou em um filme de seu filho, Voo interrompido, realizado em 1969, e que é considerado por Álvaro Guimarães (o diretor de Caveira, my friend) o primeiro filme marginal baiano. Ela faz a mãe de Sonia Goulart, a personagem principal, uma moça do interior que vai para a cidade grande em busca de melhores oportunidades de vida e acaba como empregada doméstica e, a seguir, torna-se prostituta num processo de decadência vertiginosa. O filme, no entanto, transcende esta sinopse por causa de sua estrutura audiovisual preenchida através de uma linguagem cinematográfica promotora de uma desordem na ordem cronológica para se assemelhar mais a um cinema-poesia em oposição ao cinema-prosa. Esta desordem narrativa é que promove o filme a conter, nele, uma produção de sentidos que transcende o mero relato. Voo interrompido, por sua importância no panorama do cinema baiano, precisa urgente de uma revisão. Transcrevo aqui o que a neta de Dona Marizete, Maíra Vergne Dias, escreveu sobre a sua querida avó, que o tempo, sempre implacável, a levou. Com esta publicação, faço também a minha homenagem a Dona Marizete, que conheci quando das filmagens de Voo interrompido, pois fui um dos assistentes de direção e também figurante nos seus fotogramas.
Maíra
Vergne Dias [neta]
escreve sobre a avó Marizete Freire Dias:
marizete nasceu em um
feriado nacional. não deve ter sido por acaso.
só conheci marizete após
os seus 50 anos. na verdade, ela que me conheceu de imediato, porque eu a fui
desvendando enquanto eu crescia. interessante saber
que já havia tanta vida nela antes que pudéssemos compartilhar nossas
experiências.
com o passar do tempo, fui
me acostumando a ser mal acostumada por ela, que sempre me fazia todas as
vontades, como é costume dos avós fazerem. principalmente avó com neta única
(até então) de filho único.
minha infância
é carregada de memórias de vó marizete, com quem eu sempre passava as férias
escolares. e era com esses encontros que nos aproximávamos, cada vez mais. era
tanto apego que, quando eu ia embora, ela sempre chorava, aos
soluços.
depois de deixar a infância pra
trás, como é da vida, minha frequência de visitas diminuiu. obviamente, ela
sentia muito mais minha falta, e sempre deixava isso claro, por ela mesma, por
toda a vizinhança e pelos parentes, cujo primeiro comentário ao me ver era
frequente: 'sua vó te adora, não para de falar em você'.
a vida foi um pouco injusta com minha vó, que adorava a
ideia de ter uma família grande, mas que foi duas vezes viúva e teve apenas um
filho. ela apreciava todas as tradições familiares, mas teve o azar de ter filho
e netos que não ligam muito pra isso. adorava preparar muitos doces - e comê-los
-, mas arrumou uma neta que não é muito fã deles, e que fazia careta quando ela
oferecia a sobremesa.
mas ela
complementava as faltas familiares com sua popularidade. sim, marizete era pop.
conhecida de toda a vizinhança, a casa dela nunca passava um dia sem visita.
independente, gostava de ter suas coisas, mandar nelas, fazer o que quisesse
quando tivesse vontade. mas, no seu discurso manhoso de saudade de vó, sempre
fazia um apelo dramático de solidão.
a
energia de minha vó foi sendo diminuída com a velhice, como é natural. no
hospital, onde esteve nesses últimos dias para se despedir da vida, era evidente
a tristeza do seu olhar. e eu, que pude vê-la nesse cenário, apesar de momentos
de forte esperança egoísta de tê-la sempre viva, sempre minha, fui sendo surrada
pela razão que insistia em me convencer de que estava próximo o fim de uma vida
de deliciosa convivência. o meu até breve, com carinho nos seus cabelos de
cachos brancos, era, na verdade, um adeus. eu não sabia, mas ela sim. na longa
viagem de volta para a vida que escolhi ter, a razão venceu minha esperança. e,
desde então, anestesiada, espero esse momento passar, certa de que essa sensação
de que um pedaço que agora me falta, na verdade nunca saiu de
mim.
te amo para sempre,
vó.
descanse em paz.
*7/9/1926 +15/10/2013
Foto: "Vôo
Interrompido", filme de José Umberto, 1970. Marizete Freire Dias,
atrás, toda de preto, Sonia Goulart e o grande Carlos Alberto Vaz de Athayde.
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