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25 março 2014

Em defesa de Claude Lelouch

A visão recente de Esses amores (Ces amours-là, 2010), de Claude Lelouch, filme-síntese desse poeta do cinema, retrospectiva de seu processo de criação cinematográfica ou, talvez (já que o cineasta tem 75 anos), obra de revisão e afirmação de seu poder, imenso, de mise-en-scène, nos dá a medida exata de seu talento. A fascinação do espetáculo e, ao mesmo tempo, a explicação de seu fascínio. Um belíssimo filme, um dos melhores dos últimos anos. Que deve ser visto em genuflexório.

Há, por parte da crítica, uma total indiferença diante dos filmes de Claude Lelouch, um certo preconceito em relação a este brilhante realizador do cinema francês. Convidado para participar da mostra internacional paulista há 3 ou 4 anos, foi evitado pela imprensa, e apenas algumas notas insignificantes deram conta de sua importante presença no exitoso evento coordenado por Leon Cakoff. Em um festival ocorrido em Manaus, também não despertou o entusiasmo que merece por parte da imprensa, que lhe foi completamente indiferente, ainda que homenageado. Talvez a explicação para a marginalização do autor de Um homem, uma mulher esteja no fato dele falar mal da nouvelle vague e, apesar do seu público fiel, a chamada intelligentzia o colocou no index. Os críticos brasileiros, que se pautam muitas vezes pela autoridade crítica internacional, passaram a proceder da mesma maneira, determinado-lhe o desprezo e, pior ainda, a indiferença (e a indiferença também é crime, segundo diz William Shakespeare em Hamlet).

O fato é que são poucos os filmes de Lelouch, nas últimas décadas, que tiveram lançamentos bem colocados, e nunca é citado nos círculos mais intelectualizados do pensamento cinematográfico. Considerado um virtuoso, maneirista, superficial, dotado de uma poética do vazio, Lelouch, no entanto, é um talento, um poeta, que sabe, como poucos, envolver o espectador com sua mise-en-scène única e particular. Os filmes de Claude Lelouch sempre me deram conta de estar diante de um artista criador, que emociona, que, como poucos, tem um método de dirigir os atores, deixando-os espontâneos, verdadeiros, convincentes. Um filme de Claude Lelouch, para mim, é um bálsamo capaz de deixar a impressão de se ter contemplado a beleza em movimento, os pequenos gestos significantes, a emoção surpreendida em seu momento exato. Mas, não se pode negar, o que vem a ser considerada crítica cinematográfica oferece, para ele, as opiniões mais deprimentes. E Lelouch é, antes de tudo, um antidepressivo fundamental, que trata dos seus temas, aparentemente superficiais, com o vigor de uma mise-en-scène que os torna envolventes e perfuratrizes na alma do espectador. Ver um Lelouch é sempre um prazer, uma descoberta da vida e do amor.

Parisiense de nascimento, 77 anos (vai fazer em outubro), (30/10/1937), Claude Lelouch chamou a atenção internacional, quando, em 1966, ganhou a cobiçada Palma de Ouro do Festival de Cannes, derrotando realizadores poderosos. Un homme et une femme, se, por um lado, rendeu a Lelouch uma bilheteria assombrosa pelo mundo todo, não se constituiu, porém, numa unanimidade crítica. Já começou aí a inveja de outros cineastas pretensiosos e menos dotados, que deram início à difamação de Lelouch como cineasta menor. A partitura envolvente de Francis Lai, a técnica de improvisação na direção dos atores, o realizador como seu próprio cameraman com notável segurança, a fotografia deslumbrante, a poesia que emana de sua articulação da linguagem, a mise-en-scène que transforma objetos em novos significantes determinaram a Un homme et une femme um estrondoso sucesso, uma fascinação irresistível. E além da Palma, o diretor também conquistou o Oscar de melhor filme estrangeiro, além de muitos outros prêmios em festivais internacionais.

Vale repetir que, no cinema, assim como na literatura, e em outras artes, o que importa não é o tema em si, mas a maneira com que ele é tratado pelos procedimentos cinematográficos. Em Um homem, uma mulher, Lelouch filma o romance de um piloto de corridas automobilísticas (Jean-Louis Trintgnant) e uma continuísta de cinema (Anouk Aimée). Os dois, viúvos, têm filhos, e o encontro inicial se dá na escola onde estes estudam. O relacionamento amoroso se desenvolve pela perspectiva de uma segunda chance e é marcado por lembranças (vindas em flash-backs). O diretor mistura imagens coloridas com imagens em preto e branco e o roteiro, bastante fragmentado, influenciou uma geração de publicitários. Destaque para a presença de Pierre Barouh, que canta "O samba da benção", de Baden Powell e Vinicius de Morais. Barouh, no filme, é visto nas recordações da mulher (fora o seu primeiro marido e morre num acidente de filmagem). Pode ser visto facilmente em DVD.

Antes de Un homme et une femme, Lelouch já tinha feito dois ou três longas sem expressão e alguns curtas, mas é neste que se inicia, realmente, como cineasta e desponta no cenário internacional. Logo a seguir dirigiu um dos episódios de Loin de Vietnam (1967), ao lado de monstros sagrados do cinema (que dirigiram os outros, a exemplo de Jori Ivens, Jean-Luc Godard, William Klein, Alain Resnais, Chris Marker, e Agnès Varda), que ficou inédito no Brasil. No mesmo ano, tentou reeditar o sucesso de Un homme, une femme com Viver por viver (Vivre pour vivre), com Yves Montand, Annie Girardot, a belíssima Candice Bergen, que representou a França no Festival de Mar Del Prata de 68, onde conquistou o prêmio de melhor atriz para Annie Girardot. Montand, aqui, um ator charmant, é um repórter de televisão cujo casamento com Girardot se encontra estagnado e vem a conhecer, numa viagem a Quênia, Candice Bergen, pela qual se apaixona. Estão presentes a dinâmica característica da mise-em-scène lelouchiana, a espontaneidade dos intérpretes e a poesia flutuante de suas imagens.

A seguir, Lelouch realizou A vida, o amor e a morte (La vie, l'amour, la mort, 1969), drama contra a pena de morte que representou a França no II Festival Internacional do Filme do Rio (organizado por Antonio Moniz Viana, o único evento cinematográfico verdadeiramente internacional que o Brasil já teve em sua história), em 69, conquistando o prêmio de melhor ator para Amidou. Que interpreta François Toledo, acusado de ter assassinado prostitutas. Condenado à pena de morte, ao caminhar para a guilhotina, lembra-se sua vida pregressa. A primeira imagem de La vie, l'amour, la mort é a da morte violenta de um touro, e o último plano é da morte violenta de um homem, sob a lâmina afiada da guilhotina (faz lembrar os excelentes Quero viver! (I want to life), de Robert Wise, e Não matarás, de Kieslowski). Filme arrematado com final agônico e de forte emoção. Será que os detratores contumazes de Claude Lelouch viram este filme?

Depois deste, Lelouch filma O homem que eu amo, com Belmondo e Girardot, Um homem como poucos (Le voyou, 1970), que considero sua obra-prima e uma das obras-primas do cinema francês em todos os tempos, e a deliciosa sátira políticaA aventura é uma aventura. Mas fica para a próxima coluna na terça vindoura estes e o resto da filmografia desse artista singular.

Em 1969, O homem que eu amo (L'homme qui me plait), com Jean-Paul Belmondo e Annie Girardot, procura repetir a fórmula estabelecida em filmes anteriores. Trata-se, evidentemente, de um love story, e Belmondo, numa cena dentro de um jatinho, repete, em mímica, para uma Girardot apaixonada, os tiques de Michel Poiccard, o seu personagem de Acossado (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard, filme que detona a Nouvelle Vague e está a completar, neste ano em curso, o seu cinquentenário.

A obra-prima de Lelouch, contudo, é Um homem como poucos (Le voyou, 1970), filme que se perdeu no esquecimento coletivo e que necessitaria de uma urgente revisão para reavaliá-lo em sua dimensão certa. Thriller que sucede a L'homme qui me plait, Le voyou, desde a apresentação dos créditos, uma sequência musical de delirante movimentação cênica, já desperta o entusiasmo do espectador. Radiografia de certos podres das grandes organizações financeiras, assim como do cultivo do sensacionalismo pela imprensa e pela publicidade, Um homem como poucos é um filme engenhosamente construído. Jean-Louis Trintgnant faz um advogado que trapaceia com o banqueiro interpretado por Charles Denner (em seu melhor papel e numa performance inexcedível) o rapto do filho deste a fim de obterem do banco a recompensa.

Mas Trintgnant, ao invés de repartir a grana conforme a combinação inicial, devolve o menino e esconde o dinheiro. Achando-se traído, Denner o denuncia, e Trintgnant é condenado a doze anos de prisão, mas cinco anos depois consegue se evadir do cárcere e vem a conhecer uma mulher, Danièle Delorme, pela qual se enamora, e, através de seu cúmplice personificado pelo ator Charles Gerard, remete o dinheiro para ficar bem guardado na Suíça. Seu objetivo é se vingar de Denner, que acaba preso pela polícia. Trintgnant e seu sócio partem, então, para Nova York, alegando viagem para Montreal, onde a polícia os aguarda. O mau tempo, porém, desvia a rota do avião para Montreal. Neste final, Trintgnant recebe a notícia pela voz da aeromoça e um close up, mostrando todo a sua apreensão, fecha o filme.

Pierre Uytterhoeven é quem assina todos os roteiros dos filmes de Lelouch, mas se desconfia que se trata de um pseudônimo do próprio diretor. Lelouch sempre pilota a sua câmera e, como de hábito, aqui em Um homem como poucos, a música é de Francis Lai (que ao lado de Michel Legrand e George Delerue é um dos maiores partituristas do cinema francês). O filme como que propõe a questão: comparado a essa gente que vive da exploração da ingenuidade popular culturalmente desamparada, o voyou desta obra de Lelouch não chega a ser umméchant. A seguir, o diretor realizou Smic, smac, smoc, que ficou inédito no Brasil e não foi distribuído comercialmente, e que tem o premiado Amidou (ator lelouchiano por excelência e Catherine Allégret). Em 1971, uma sátira política que se constituiu num de seus maiores sucessos: A aventura é uma aventura(L'aventure c'est l'aventure), co-produção entre a França e a Itália, é uma aventura de humor crítico cuja inspiração o realizador atribui a Os três mosqueteiros e aos Pieds Nickelés - famosa história em quadrinhos francesa. Cinco criminosos (os franceses Lino Ventura, Jacques Brel e Charles Denner, os italianos Charles Gerard presença constante nessa fase lelouchiana, Aldo Maccione), certos e confiantes de que as clássicas fontes de sustento do submundo estão exauridas (os bancos estão vazios, as prostitutas se rebelam - a idéia e o roteiro são do realizador), decidem atualizar-se, adotando a técnica empresarial do neocapitalismo e, sobretudo, dando cobertura ideológica às suas atividades. Começam sequestrando Johnny Halliday e fazem o mesmo com um embaixador suíço e um general latino-americano, obtendo sempre altos resgates. A última de suas vítimas consegue entregá-los à justiça. Processados, condenados e finalmente salvos pelo clamor público - que vê neles paladinos da "contestação", os cinco se recolhem à África, onde são recebidos como heróis. Postos a serviço dos corruptos governantes locais, não renunciam, contudo, à mais sensacional de suas proezas: o sequestro do papa, por cujo resgate exigem e obtêm um franco por cabeça de todos os católicos do mundo.

Comédia dramática de fundo policial, A dama e o gangster (1973) é o filme imediatamente posterior a L'aventure c'est l'aventure. Ainda que não seja um de seus melhores, La bonne année, título original, fascina pela segurança da narração e por um cuidadoso registro de surpresas sem que a partitura entre em ação. A música, que seria a música do filme, é cantada numa boite, mas todo o desenrolar das reviravoltas com suspense a tem ausente. Também, aqui, em La bonne année, o uso das imagens em preto e branco e a cores revela a constante lelouchiano de significar por meio do cromático.

Em dezembro de 1973, o diretor de uma prisão dá liberdade condicional a Lino Ventura, ladrão de jóias, na esperança de, por seu intermédio, apanhar Charles Gerard, seu cúmplice no roubo de uma joalheria Van Cleef seis anos antes. Conseguindo iludir a polícia, Ventura (ator clássico da tradição cinematográfica francesa), se prepara para celebrar o ano novo com a bela Françoise Fabian, sua antiga amante, mas, ao chegar ao apartamento desta só encontra seu atual companheiro. A desilusão toma conta dele. Esgueirando-se sem ser visto, vai-se a lembrar dos lances do roubo (o filme quase todo é em flash-back, excetuando-se o momento presente no princípio e no final), da separação (quando foi preso) e da promessa que Françoise lhe fizera de esperar por ele.

Em 1974, um filme fascinante: Toda uma vida (Toute une vie), afresco sobre o cinema, o tempo que passa, a vida e o amor. E vejam que achado: o começo do filme é em preto e branco e seu estilo vai variando de acordo com a evolução da técnica cinematográfica; nas seqüências finais é em Technicolor. Um interlúdio de 20 minutos em que o casal no avião imagina o nosso mundo no fim do século foi eliminado pelo diretor nas cópias de exportação.

Marthe Keller e André Dussolier (um dos atores preferidos de Alain Resnais) sentam-se lado a lado num avião e apaixonam-se à primeira vista. Cada qual passou por várias situações dramáticas. Keller já tentara o suicídio, casara-se e se divorciara, tentando, depois, revolucionar os métodos de trabalho na indústria do seu falecido pai. Dussolier vivera de expedientes, estivera preso, sofrera um desastre ao sair da cadeia, aprendera a técnica fotográfica, fizera filmes pornográficos e comerciais e planejara realizar um filme que cobriria o espaço de tempo entre 1900 e o ano 2000.

Marriage (1975) parece que não foi lançado no Brasil. O gato e a rainha (Le chat et les souris, 1975), comédia com Jean Pierre Aumont, Serge Reggiani, Michèle Morgan, não foi visto por este comentarista. Mas a filmografia de Lelouch não pára por aqui.

Em meados dos anos 70, o fôlego de Lelouch se arrefece para ressurgir mais forte nos 80 (Retratos da vida/Les uns et les autres, 1981) e nos 90 (com o admirável Os miseráveis, 1993, versão livre, e totalmente lelouchiana do livro homônimo do célebre Victor Hugo), além de Tem dias de lua cheia.

Em 1976, Se tivesse que refazer tudo... (Si c'était à refaire), melodrama que marca o retorno da atriz Anouk Aimée (de Um homem, uma mulher), e assinala o primeiro trabalho de Catherine Deneuve com o diretor, trata, como sempre, do amor ("L'amour toujours l'amour"). O argumento gira em torno de uma presidiária, Deneuve, que, condenada aos 19 anos pelo assassinato de um banqueiro, sai da cadeia aos 35. Que fazer para recomeçar a vida? Ansiosa para encontrar o filho que somente veio a conhecer na prisão, Deneuve une-se, então, a uma antiga companheira de cárcere, Aimée, mas, para sua surpresa, vem a saber que o filho é amante da amiga. E se torna uma estranha entre eles.

Nada a acrescentar de especial a Si c'était à refaire, além da sempre competência formal do autor e do brilho de suas imagens. No elenco, além das citadas, os atores de sempre, como Charles Denner (que teria atuação marcante em O homem que amava as mulheres, de François Truffaut), Francis Hustler, Jean-Pierre Kalfon. A música, como de hábito, quem a assina é Francis Lai, e há uma canção de autoria de Pierre Barouh. Lançado em 1977 no Rio de Janeiro, o filme passou em brancas nuvens com a indiferença habitual da crítica, que sempre gostou de massacrar o cineasta.

Outro homem, outra mulher (Une autre homme, une autre chanche, 1977) é um Lelouch bem menor, um melodrama sentimental em ambiente de western e falado em inglês e francês. A tendência crítica, no entanto, de acusar o cineasta pela repetição não tem correspondência com a verdade do artista, pois todo autor, na verdade, se repete, constituindo-se seus filmes singulares como variações sobre um mesmo tema (Bergman, Fellini...).

Co-produção com capital francês e americano, Un autre homme, une autre chanche tem seu início em 1870, quando a França está em guerra com a Prússia. Os contratempos advindos do conflito bélico forçam Geneviève Bujold a fugir com o namorado (Franços Huster) para os Estados Unidos. Entrementes, na América, o veterinário interpretado por James Caan vê sua mulher violentada por um bandido que rouba seu bracelete índio. Caan, perdida a esposa, embarca, com o filho pequeno, para o sul. Passa-se um tempo e este se matricula no mesmo colégio no qual estuda o filho de Bujold e não se precisa dizer que vai nascer, entre Caan e Bujold (que está viúva), um relacionamento amoroso

Por uma dessas incompreensíveis injunções do mercado exibidor, a maioria dos filmes de Lelouch não foi importada no Brasil, e muitos permanecem inéditos. A considerar, também, sua extensa filmografia, vai-se aqui citar en passant alguns títulos para uma concentração maior naqueles que são considerados os mais brilhantes das duas últimas décadas - e não se quer, também, entrar numa quarta parte sobre o autor.

Robert e Robert (1978), com Charles Denner (sempre ele) e Jacques Villoret, é inédito em território brasileiro, assim como Edith et Marcel (1983), Vive la vie(1984), com Michel Piccoli e Charlotte Rampling, Attention bandits (1987), La belle histoire (1992), Hommes, femmes, mode d'emploi (1996), Hasards et coincidences (1998), entre outros menos notáveis.

Foram mal lançados, quase escondidos: Brindemos a nós dois (À nous deux), com Catherine Deneuve e Jacques Dutroc, Ir, voltar (Partir, revenir, 1983), com Annie Girardot e Jean-Louis Trintgnant, Um homem, uma mulher - vinte anos depois (Un homme, une femme, vingts ans déja, 1986), Itinerário de um aventureiro (L'enfant gâté, 1988), com Jean-Paul Belmondo, Amantes & Infiéis(...And now ladies and gentlement, 2002), com Jeremy Irons, Claudia Cardinale, entre poucos.

Em Les uns et les autres, Lelouch retoma, de certa forma, a idéia - base de outro de seus melhores filmes - Toda uma Vida (1974): uma história que passa por várias gerações e que tem alguns personagens-base. Em Toute une vie é a personagem interpretada por Marthe Keller que conduz os fatos. Aqui, é a sensibilidade artística de quatro famílias de Moscou, Paris, Berlim e Nova Iorque. Elas são unidas por uma linguagem comum - a música. Enfrentam as tragédias da II Guerra Mundial e do após-guerra. E se reúnem, num final apoteótico, em Paris, num concerto de gala aos pés da Torre Eiffel, em benefício da Unicef e da Cruz Vermelha, quando o coreógrafo Maurício Bejart coloca em cena todo seu imenso talento, para uma longa seqüência de verdadeiro delírio visual. Por causa desta sequência apoteótica, quando um dançarino executa o Bolero de Ravel, o filme, nos Estados Unidos, veio a se chamar Bolero. A partitura vem assinada por Francis Lai e Michel Legrand.

A palavra mais certa para definir Tem dias de lua cheia (Il y a des jours...et des lunes, 1992) é que é um filme simplesmente encantador. O dia de mudança no horário de verão altera o comportamento de várias pessoas numa cidade interiorana da França. Situações insólitas e inusitadas passam a acontecer: um crime sem um móvel visível, casais que se desentendem. A narrativa, que compreende um grande número de personagens envolvidos em várias situações, é de natureza polifônica. No elenco, Gerard Lanvin, a grande Annie Girardot (inesquecível como a Nádia de Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti), François Hustler, Philippe Leotard. A poesia reina em todo o seu desenrolar. A poesia e a música que abraçam este filme singular.

Leitura original de Os miseráveis, famosa obra de Victor Hugo, numa versão completamente livre e adaptada a outros tempos, o filme é um delírio na composição de sua estrutura narrativa, de sua mise-en-scène. Belmondo faz um ex-pugilista analfabeto que ajuda uma família de judeus durante a Segunda Guerra Mundial e vem a encontrar paralelos significativos entre a sua vida e a do personagem do escritor francês. A rigor, não se trata propriamente de uma adaptação, mas o livro é tomado como marca referencial. Les miserables apresenta o comportamento dos franceses durante a guerra, a perda de valores morais provocada pela opressão em suas diversas formas, e a idéia de que a História é um ciclo que se repete de tempos em tempos. Além de Belmondo, tem-se novamente Annie Girardot.

Entre seus últimos filmes, um episódio (segmento: França) de uma obra coletiva sobre o 11 de setembro dirigida por vários cineastas, A coragem de amar (Le courage d'aimer, 2005) e Crimes de autor (Roman de gare, 2007). E este deslumbrante Ces amours-là, que sintetiza sua obra.,,

23 março 2014

O genial Jerry Lewis

Ainda que um ótimo comediante em suas primeiras comédias sob as ordens de Georges Marshall, Joseph Pevney, Norman Taurog, Jerry Lewis começa a crescer, no entanto, a partir do seu encontro com Frank Tashlin em 1955, quando fazem Artistas e Modelos (Artists and Models), apesar da companhia já outonal de Dean Martin. Lewis apreende bem o sentido da gag do realizador Tahlin, seu sentido de espetáculo desestabilizador sem a perda, contudo, do touch romântico e encantador, o senso paradoxal do non sense. A evolução do comediante se faz patente em obras como Ou Vai ou Racha (Hollywood or bust, 1956, que se pode considerá-la uma das mais bem sucedidas comédias do cinema americano), O Rei dos Mágicos (The Geisha Boy, 1958, que o cineasta Carlos Reichenbach elegeu como uma das melhores de todos os tempos, onde se verifica um non sense total: um japonês gordo cai numa piscina e inunda totalmente a cidade de Tóquio ou a descida do avião da atriz que é simplesmente posta em frangalhos fisicamente por Lewis), e, principalmente, em Bancando a ama-seca (Rock-a-bye baby, 1958), a primorosa seqüência da mangueira que praticamente destroi o bairro com seus guinchos descontrolados.
Mas mesmo depois que abandona Martin, e já trabalhando com Tashlin, ainda tem que cumprir certos contratos em filmes bem inferiores: O Delinqüente Delicado(The Delicate Delinquent, 1957), de Don McGuire, O Bamba do Regimento (The sad sack, 1957), de Georges Marshall, A Canoa Furou (Don’t give up the ship, 1959), de Norman Taurog, e, ainda deste, em 1960, Rabo de foguete (Visit to small planet), filmes menores de sua carreira e nos quais apenas brilha o seu gênio para a comicidade.
A diferença entre o sentido de cinema de Tahslin e dos outros diretores é abissal, apesar do comediante sustentar o espetáculo e superar o desequilíbrio e o esquematismo das direções anti-tashlianas. A genialidade de Lewis emerge quando começa a dirigir filmes estimulado pelo amigo Tashlin. O primeiro, O Mensageiro Trapalhão (The Bell Boy, 1960) já desarma aqueles que procuram uma história para seguir, uma fábula que possa progredir. Nada disso. O filme não tem nenhumin crescendo, possuindo uma tábua rasa como estrutura narrativa toda centrada em sketches, que mostram as confusões provocadas por um mensageiro de hotel que somente fala no final, quando lhe perguntam o seu nome e, intrigados com a sua mudez, Lewis responde que nada fala durante o filme porque nada lhe perguntam.
A segunda incursão direcional é demolidora: O Terror das Mulheres (The Ladie’s Man, 1961): o desejo quase obsessivo de desvendar o décor para o espectador, uma sátira ao matriarcado americano, as borboletas que voam do quadro fixo e depois voltam, a entrevista na televisão da senhora que rege o pensionato, e, no final, a entrada no quarto proibido que tem uma extensão tão grande que não poderia fazer parte da mansão. A brancura total do cenário, a mulher que surge de cabeça para baixo, um clima dilacerante.
O filme logo a seguir é também um coquetel Molotov na estrutura tradicional da comédia americana: Mocinho Encrenqueiro (The Errand Boy), uma desmistificação do espetáculo cinematográfico capaz de ter surpreendido os exegetas turcos do Cahiers du Cinema, que, nesta época, elevam Lewis às alturas. E como características, marcas essenciais, estilísticas: a crueldade que consiste em fazer rir de si próprio; a magistral utilização do showburn; o gosto do espetáculo e a vontade em revelar ao espectador o décor, o desdobramento de sua personalidade autor-ator, a explosão em personagens múltiplas, etc.
Se, em Tashlin, o clichê da gag audiovisual chega às raias da exasperação, em Lewis a gag provoca uma ingerência na própria mise-en-scène, na manipulação mesmo da linguagem cinematográfica. Basta dizer que em O Professor Aloprado(The Nutty Professor, 1963), na apresentação final, quando todos os atores se reclinam para agradecer como no teatro, na vez de Lewis, este parte literalmente a lente da câmera. Há, neste momento sublime da comediografia da década de 60, uma utilização do áudio de maneira inventiva, quando na cena em que o professor, saído de uma ressaca na noite anterior, em plena aula, ouve, amplificados, o giz que se arrasta no quadro, o assoar do nariz de uma aluna, o estrondo de uma pequena gota no vidro do laboratório químico, etc.
Lewis faz, aqui, uma inversão de O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, aplicando, com mais extensão e mais nonchalance, os ensinamentos tashlianos a ponto destes se configurarem num estilo próprio, lewsiano. Neste particular, após o professor ter tomado a dose no seu gabinete, transforma-se em Buddy Love, mas o espectador não o vê, pois Lewis prefere introduzi-lo em câmera subjetiva. Os transeuntes na porta da boate é que se espantam diante daquela figura carismática. Há muita inventividade na narrativa de O Professor Aloprado, mas sem os radicalismos da mise-en-scène de The Ladie’s Man.
Ao mesmo tempo em que dirige seus filmes, com equipe fiel – Wallace Kelley, iluminador, Walter Scharf, músico, Del Moore, Kathleen Freeman, cast quase permanente, com a introdução, vez por outra, de uma atriz mais conhecida, como o caso de Stella Stevens, Lewis também produz filmes para Tashlin dirigi-lo em comédias antológicas que merecem figurar em qualquer antologia dos grandes momentos do cinema no gênero: Cinderelo sem Sapatos (Cinderfella, 1960), Detetive Mixuruca (It’s only money, 1962), Errado para Cachorro (Who’s minding the store?, 1963), O bagunceiro arrumadinho (The disorderly orderly, 1964), entre poucas outras.
O Otário (The patsy, 1964) é a sua obra mais pessoal, mais radical, com uma desmistificação completa do espetáculo cinematográfico, uma exposição da construção pelos produtores de um ídolo hollywoodiano, um olhar irônico sobre oamerican way of life, mas, acima de tudo, uma mise-en-scène renovadora, um manual de invenções de fórmulas. A partir dos primeiros momentos, quando se vê um avião se espatifando e um pequeno jornaleiro anunciando a morte acidental de um grande astro, Lewis corta para o escritório dos produtores cujo carpete verde de plástico salta à vista.
Aqui, usa o silêncio como fator determinante da construção temporal a ressaltar o conceito de duração. As tomadas são mais demoradas do que o necessário, há um crescendo na preocupação dos produtores em relação ao substituto. E a entrada triunfal de Lewis, como o mensageiro que traz as bebidas numa bandeja com os copos, a derrubar tudo ao saber que ele, o bell boy, é o escolhido. Cada sequência é, de per si,um primor: Lewis experimentando roupas, engraxando sapatos; aprendendo música; o baile escolar relembrado, antológico, numa homenagem explícita a Chaplin; o jantar com Ina Balin no restaurante quando se excede na doação de gorjetas; o show de Ed Sullivan, com o próprio, que diz ter apresentado, ali, Dean Martin e Jerry Lewis; e o próprio numero do comediante que, extasiado com uma estréia de gala em Hollywood, pinta seus andrajos de preto, que se transformam em elegante casaca.
E o final apoteótico, quando cai da varanda de mentirinha, e volta, não mais como o personagem de Stanley Belt mas como o próprio Jerry Lewis, que convida, para jantar, a Ina Balin, descortinando todo o set de The patsy. Esta obra-primíssima é um dos filmes mais importantes dos esfuziantes anos 60, e Jerry Lewis se inscreve, aqui, como um dos maiores realizadores desse período, pois criador, autor completo, inventor de fórmulas.
A seguir, Uma Família Fuleira (The family jewels, 1965), destituído da virulência criativa, do sopro renovador do filme precedente, mas uma simpática comédia recheada de bom humor: o humor único e lewisiano. Em seguida, começa a decadência, com Três num Sofá (Three on a couch, 1966), mas surge uma esperança na iconoclastia de O fofoqueiro (The big mouth, 1967).
Lewis pára nos anos 70 – faz um filme em 1973 sobre um palhaço que diverte crianças num campo de concentração que é engavetado, mas continua, ainda que bissexto, nos anos 80. Mas o essencial de Lewis, como autor, está nos filmes que dirige nos anos 60. A causa da interrupção prematura está numa queda que toma e que lhe provoca terríveis dores, a depressão, etc.
Jerry Lewis, hoje, é visto pelo grande público como mero comediante e, mesmo, para alguns, como um palhaço das sessões da tarde. Mas sua importância está registrada nas centenas de ensaios escritos sobre a sua contribuição para a linguagem cinematográfica. Uma coleção de livros de cinema, Cinema D’Aujourdhui, que apenas publica textos sobre grandes cineastas, dedica a Jerry Lewis um de seus números, que é uma tese de doutorando de um francês na Sorbonne.
E em 1981, quando já não se pensava num retorno lewisiano, surpreende a todos com uma comédia bem a seu gênio: Smosgasboard, que o título idiota em português apenas reafirma o preconceito: As loucuras de Jerry Lewis.

20 março 2014

A nobreza da sensação do medo

Christopher Lee em O vampiro da noite (Horror of Dracula), de Terence Fisher
1) O cinema de terror, passada a sua fase clássica, e de ouro (Drácula, com Bela Lugosi, Frankenstein, com Boris Karloff etc), encontrou, nos anos 50, forte inspiração na produtora inglesa Hammer, que preencheu os adoradores do gênero com filmes de qualidade e certa sofisticação, a exemplo de O vampiro da noite (Horror of Drácula), com o indefectível Christofher Lee. Quando da sua exibição em Salvador, 1961, a estratégia de marketing, quando ainda quase que não existia isso, foi perfeita. Rigorosamente proibido para menores de 18 anos, um cartaz, em cima da bilheteria, advertia os que compravam ingressos que o filme não era indicado "para cardíacos e pessoas nervosas". O mais genial, no entanto, foi a colocação de uma ambulância na porta do cinema com dois enfermeiros ao lado.

2) Os filmes que trilham a linha de Sexta-feira 13 ou, mesmo, A hora do pesadelo não são atraentes, porque se "alimentam" mais de efeitos especiais e sustos intermitentes, a deixar de lado a tensão oriunda das sugestões. É verdade que nos anos 80 tivemos "O exorcista", de William Frieklin, que é uma obra de impressionante vitalidade como 'mise-en-scène.

3) Wes Craven tentou a paródia do terrorífico em seus sucessivos "pânicos", com resultados satisfatórios dentro dos limites do gênero. Mas o terror que põe o espectador de sobressalto é aquele mais movido pelas sugestões, pela tensão psicológica, com completo domínio formal da narrativa, da mise-en-scène, é preciso repetir. Em O exorcista, por exemplo, a maior cena de terror, na minha opinião, vem da montagem do momento em que a menina possuída está fazendo exames, radiografias, a tomar injeções até na veia do pescoço. É uma sucessão de ruídos de chapas batendo, de imagens cruas de um exame invasivo, enfim, a conjunção imagem e som, que estabelece, na cena, uma impressionante, vá lá o termo de novo, 'mise-en-scène'.

4) Não se pode deixar de falar, em se tratando do gênero terror, dos clássicos do expressionismo alemão, principalmente, Nosferatu, o vampiro (1922), de Friedrich Wilhelm Murnau, com a estupenda performance de Max Schenk, insuperável como o personagem título. Murnau, um dos maiores cineastas de todos os tempos, teve morte prematura no alvorecer dos anos 30. Um acidente de automóvel lhe tirou a vida. É autor de A última gargalhada, entre muitos outros filmes excepcionais, como Aurora (Sunrise, 1927), que realizou nos Estados Unidos com a estética expressionista e que François Truffaut considera o mais belo filme de todos os tempos.

5) Werner Herzog realizou uma belíssima versão do clássico Nosferatu, de Murnau, com Klaus Kinsky no papel do vampiro, e Bruno Ganz (excepcional ator alemão que trabalhou em "O amigo americano", o melhor filme de Wim Wenders, e A queda, no qual faz Hitler em interpretação assombrosa).

6) Vi, no disquinho, Giallo, de Dario Argento, um dos mestres contemporâneos do filme de terror. Giallo é uma expressão italiana para designar livrinhos de bolso de terror e suspense baratos e editados em papel de má qualidade. Uma espécie de pulp-ficcion. Argento, tal o seu domínio formal da narrativa, é um mestre e "purifica" seus filmes com um derramamento estético de sangue. É um diretor respeitado, ainda que mal compreendido - os ignorantes pensam que é um diretor sensacionalista e barato sem atentar para a sua grande capacidade de usar brilhantemente os elementos da linguagem cinematográfica.

7) Dario Argento, além de ter em sua filmografia alguns cults do suspense e terror – o cineasta Carlos Reichenbach (de saudosa memória) foi um apaixonado por sua obra, foi um dos roteiristas do admirável Era uma vez no oeste (C’era uma volta in West, 1968, de Sergio Leone.). Entre seus filmes mais aclamados, encontram-se O pássaro das plumas de cristal (L'uccello dalle piume di cristallo, 1970, obra de estréia no longa), O gato das nove caudas (Il gatto a nove code, 1971), Suspiria, entre outros notáveis.

8) Em Giallo, Argento procede de maneira a não dar ao espectador aquela sensação de “quem foi”, a mostrar, já no primeiro terço do filme, o serial killer. O que Argento procura, na verdade, é a angústia do homem perseguido e o acompanhamento, por parte do público, da angústia do casal que o caça. Uma constante de Argento, os traumas da infância, está presente em GialloA modelo americana, Celine, é sequestrada, em Milão, durante uma semana na qual participa de um desfile de moda, pelo serial killer conhecido como Giallo, que faz, com extremado sadismo, suas vitimas passarem por um verdadeiro calvário. Linda (Emmanuelle Seigner, linda, apesar do tempo no seu rosto), irmã de Celine, deixa o assunto nas mãos do inspetor Enzo Lavia (Adrien Brody, o “pianista” de Polanski, e, também, um dos produtores do filme), que deverá encontrar a garota antes que ela sofra o terrível final das vitimas anteriores.

19 março 2014

As críticas de Inácio Araújo


Editada pela Coleção Aplauso (Imprensa Oficial, SP), Críticas de Inácio Araújo (Cinema de Boca em Boca), livro organizado por Juliano Tosi, contém as exegeses de Inácio Araújo, sempre precisas e exatas, em ordem cronológica, desde o ano de 1983. Ainda pelo começo dessa importante obra, a sua leitura tem me fascinado, ainda que já conheça os escritos do autor de há muito tempo pelos jornais e, agora, pelo seu blog. Inácio tem, o que poucos têm, que é o poder da síntese, a capacidade de apreender o sentido da obra cinematográfica e deixar no leitor a vontade de ver o filme, lendo a sua crítica.

Os textos iniciais são extensos e parece que todos foram publicados na Folha de S.Paulo, jornal do qual Inácio Araújo é o crítico oficial. Atualmente, porém, com a política de redução textual verificado na imprensa, o grande crítico fica restrito a linhas mais enxutas (o que é uma pena), mas nem por isso impossibilitado de dar o seu recado direto e objetivo e, ouso dizer, poético, ainda que pareça estranha a expressão em se tratando de crítica de cinema.

Uma característica marcante nos escritos de cinema de Inácio Araújo é a fluência de seu texto, que proporciona o prazer da leitura, e uma compreensão profunda de que o cinema é mise-en-scène. Sabe ver as qualidades de um Howard Hawks, de um Douglas Sirk, de um Fritz Lang, entre tantos outros, realizadores que não eram contemplados pelos críticos de nomeada do pretérito, mais aguerridos ao tema nobre da obra cinematográfica do que à sua condição de linguagem autônoma, de que o cinema, antes de tudo, é uma estrutura audiovisual, havendo, nele, a confluência de um elo sintático (a linguagem) e um elo semântico. Inácio Araújo, se José Lino Grünewald não a tivesse inaugurado, seria o fundador da nova crítica brasileira. Mas como Grünewald já se foi, pode-se dizer, e sem medo de errar, que Araújo dá prosseguimento à compreensão do cinema nos moldes de seu entendimento como uma estrutura audiovisual. Com o advento de suas críticas no jornal Folha de S. Paulo, uma crítica arejada, bem escrita, com marca pessoal, surge no Brasil, com caráter de ineditismo, que pode ser verificada no recente lançamento delas pela Coleção Aplauso.

A clareza é um elemento essencial quando alguém se arvora a escrever crítica de cinema. Mas o que se constata, nos diversos blogs e sites espalhados pelo espaço virtual, é uma procura de obscuridade, para, com isso, dar ideia de profundidade. O crítico atual não tem mais uma visão de mundo, uma cultura estabelecida numa cultura humanista, mas, na maioria das vezes, conhece em profundidade a filmografia de diretores importantes, faltando-lhe, porém, um lastro mais amplo. O crítico, com as honradas exceções de praxe, é um "cdf" em cinema, e tem neste a sua ideia fixa, a sua obsessão. Não é o caso, lógico, de Inácio Aráujo. A leitura de seus textos demonstra a sua competência e a largueza de sua visão. Um homem de seu tempo. Um crítico do essencial dotado de um background fundamental.

Inácio Araújo tem um livro particularmente importante para a compreensão da mise-en-scène hitchcockiana: Alfred Hitchcock – O Mestre do Medo, editado nos anos 80 pela editora Brasiliense na coleção Encanto Radical. Sintético, como de hábito, mas conclusivo. Poucos os livros editados no Brasil sobre o mestre, sobre o autor de Um corpo que cai (Vertigo). Há um, que me lembre, de Noel Simsolo, uma tradução do francês, editado pela Record (se não há engano memorialístico) numa coleção que morreu no segundo volume, o dedicado ao precioso Joseph Losey. Existem obras dedicadas a Hitch em Portugal, e o maravilhoso livro de entrevistas entre François Truffaut e Hitchcock, cuja leitura se faz obrigatória por todos aqueles que gostam de cinema. Este livro, sobre ser uma obra rica para a compreensão do processo de criação de Hitchcock, é também uma aula de cinema. Nunca foi traduzido Le cinema selon Hitchcock, de Erich Rohmer e Claude Chabrol, assim como o do americano Robin Hood. Alfred Hitchcock – O Mestre do Medo está entre as hermenêuticas mais extraordinárias sobre o itinerário de Hitch.

Aqui, uma amostra grátis da escrita de Inácio Araújo:

"Terra Bruta" é visto com frequência, e um pouco injustamente, como um subproduto de "Rastros de Ódio", que hoje é considerado a obra-prima de John Ford.

Com todo o respeito pelos "Rastros", "Terra Bruta" é uma variação no mínimo interessantíssima do mesmo tema. James Stewart é o xerife; Richard Widmark, o oficial. Em dado momento, eles devem entrar em território comanche para resgatar prisioneiros brancos.

O confronto entre brancos e índios é isento aqui da paixão que caracterizava o personagem de John Wayne em "Rastros de Ódio". São, antes, dois profissionais que cumprem uma missão. Profissionais bem diferentes, a rigor: Widmark é um militar íntegro, enquanto Stewart é um corrompido.

Mas o olhar cínico que Stewart lança sobre as coisas — essa espécie de descompromisso com a ordem que caracteriza seus atos — é também o que lhe permitirá ver a realidade que terá diante de si com maior elasticidade.

À parte um diálogo de minutos e minutos entre os dois homens (um longo plano à beira de um rio), momento antológico do qual se perde muito na versão dublada, "Terra Bruta" é sintomático do último John Ford.

Em sua trajetória, mostra-se cada vez mais compreensivo em relação aos índios e mais irascível quanto aos brancos (cuja intolerância, aqui, é encarnada pelo oficial). Ao mesmo tempo, o papel da mulher é cada vez menos decorativo, adquire uma essencialidade que já prefacia sua última proeza: "Sete Mulheres", de 1966.” (texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 15 de março de 1995)

18 março 2014

A liberação de "Dona Flor' durante a ditadura miliitar

1) Luiz Carlos Barreto, numa longa entrevista ao TV Senado, conta a sua trajetória de homem de cinema e, lá pelas tantas, fala de Dona Flor e seus dois maridos, o maior sucesso de bilheteria de todos os tempos baseado em romance homônimo de Jorge Amado e dirigido por seu filho, Bruno Barreto. O ano, 1976, a ditadura militar exercia poderosa censura sobre todos os filmes. E implicou com Dona Flor. Queria proibi-lo. Barreto foi à Brasília tentar convencer os censores, mas tudo em vão.

2) De repente, ao sair de um ministério, encontra, por acaso, Amália Lucy, filha de Ernesto Geisel, o general de plantão, a quem se atribui o dito de Chico Buarque de Holanda ("você não gosta de mim, mas sua filha gosta”). Barreto já conhecia Amália, e ela, surpresa, perguntou o que ele estava a fazer em Brasília. O produtor disse a ela que Dona Flor e seus dois maridos" tinha sido proibido pela censura. Mas por que? indagou a filha do general, que manifestou desejo de ver o filme.

3) Barreto marcou um encontro numa sala de exibição brasiliense e projetou Dona Flor" para Amália Lucy. No final, ela revelou a ele ter gostado muito do filme e não via razão para ser proibido. E disse a Barreto: "Quem gostaria muito de ver seria meu pai, pois ele gosta dos romances de Jorge Amado" O célebre produtor, surpreso, ia dizer alguma coisa, quando ela o interrompeu: "Você não conhece meu pai. Vamos marcar uma sessão no Palácio do Planalto. Marcada a exibição, Barreto entrou meio constrangido para projetá-lo para Geisel e encontrou uma sala toda equipada para a sessão especial, com farta distribuição de 'scotch’ e salgadinhos.

4) Barreto conta que Ernesto Geisel, durante o transcorrer da projeção, riu muito e, no final, congratulou-o por ter feito um filme ágil e engraçado. Disse que entraria imediatamente em contato com o Ministério da Justiça para a liberação de "Dona Flor".

5) Dona Flor e seus dois maridos foi filmado em Salvador em 1975 e me lembro de ter acompanhado a filmagem de uma cena no Largo da Palma. Terceiro filme do jovem Bruno Barreto, que tinha em torno de 20 anos (o primeiro, Tati, a garota, baseado em Anibal Machado, o segundo, "A estrela sobe", segundo Marques Rabelo), Dona Flor foi lançado no Brasil inteiro e na Bahia em mais de seis salas simultaneamente. Sucesso imenso, filas quilométricas. Mas aconteceu um fato peculiar. .

6) Programado para ser exibido em seis salas, na segunda (dia em que os lançamentos entravam em cartaz), o distribuidor da Embrafilme somente tinha recebido em seu escritório apenas cinco cópias e não haveria tempo hábil para mandar buscar a que faltava. Mas, de repente, surgiu uma idéia. A cópia do cinema Bahia poderia ser exibida também no Tamoio, sala perto daquela. Para funcionar, no entanto, era preciso que os horários fossem diferentes. Naquela época, um filme de longa-metragem tinha, a depender de sua duração, cinco, seis latas, contendo, cada uma, um rolo ou carretel. Exibido o primeiro rolo no Bahia, um funcionário da Embrafilme corria para levá-lo ao Tamoio. E assim sucessivamente.

7) Apesar de Barreto ter contado que Geisel tinha ordenado a liberação do filme, o que, realmente, aconteceu, a minha memória me diz que houve o corte de uma cena, quando há um coito anal entre José Wilder e Sonia Braga. Mais de 20 anos depois, quando o filme foi relançado em cópias novas, a cena cortada foi reposta. Se, em 1976, "Dona Flor e seus dois maridos" foi um êxito sem precedentes, quando do seu relançamento, duas décadas passadas, revelou-se um fracasso retumbante no mercado exibidor.

8) Sonia Braga tinha feito uma Gabriela maravilhosa para uma novela da  Globo e o seu aproveitamento como outra personagem amadiana, a Dona Flor, deu muito certo, a ponto do próprio escritor ficar encantado com ela. Poucos anos depois, 1982/83, Barreto a dirige numa produção internacional no papel de Gabriela, mas o filme não soube captar, com a desenvoltura necessária, a crônica de uma cidade de interior que é Gabriela, cravo e canela. No elenco, Marcello Mastroianni. Mas nem mesmo assim conseguiu as graças do público.

9) Em Dona Flor e seus dois maridos, além da de Wilker e Braga, destaca-se a primorosa interpretação de Mauro Mendonça, como o segundo marido de Flor. O primeiro, Vadinho/Wilker, farrista, boêmio, morre de repente num domingo de Carnaval, mas o seu espírito reaparece a tentar a bela Dona Flor. Um triângulo amoroso com acentos espíritas, um "ménage-a-trois" atípico, portanto.

10) A trilha musical é funcional e eficiente a cargo de Francis Hime. E há, ainda, a letra e música de Chico Buarque de Holanda na interpretação de Simone (O que será, o que será...). Murilo Salles, antes de se tornar realizador, é o diretor de fotografia e, no elenco, vários atores baianos como Nilda Spencer, Mário Gusmão, Dinorah Brillanti, Haydil Linhares, João Gama, Wilson Mello, entre outros. Nesta época, meados dos anos 70, a Bahia virou “décor” de alguns filmes, entre os quais Tenda dos milagres, de Nelson Pereira dos Santos, também baseado em romance homônimo de Jorge Amado. Nelson, porém, o grão-duque do cinema brasileiro, se tem resultados excelentes quando faz adaptação de Graciliano Ramos (Vidas secas, Memórias do cárcere) não consegue transferir os romances do escritor baiano para um resultado cinematográfico convincente (Tenda dos milagres “é melhor, mas” Jubiabá “decepcionante, ainda que com a ajuda de capital internacional).



16 março 2014

"Moscou contra 007" está cinquentão

Moscou contra 007, quando lançado (e, vejo no Imdb, que a sua estréia se deu primeiro no Brasil em 27 de abril de 1964) se transformou num fenômeno de bilheteria. Ninguém ficava indiferente a sua ação frenética, ao compasso da partitura eletrizante de John Barry, às tiradas humorísticas, ao dínamo propulsor de sua estrutura narrativa, envolvente.

Seus produtores Albert R. Broccoli e Harry Saltzman não tinham ideia, quando lançaram Dr. No que o filme faria um sucesso sem precedentes capaz de lhes estimular uma continuação, que foi este From Russia with love. Mas não esperavam, mesmo cônscios do êxito deste, que o filme fosse além dos prognósticos. Como aconteceu e a série se desdobrou em outras películas a seguir. James Bond virou uma coqueluche.

Na época, a ideologia, porém, imperava entre os estudantes. E Bond, agente secreto à serviço de sua Majestade, não agradava à esquerda, que lhe fazia vista grossa. Recordo-me que, na sala de espera do cinema onde estava sendo exibido, deparei-me, de repente, com um militante que, ao me ver, desceu escada abaixo para se esconder no banheiro. O que iriam dizer seus companheiros quando tomassem conhecimento que ele estava a ver filme reacionário de James Bond?

Creio que o fascínio de James Bond supera e está acima das ideologias. Devo fazer uma confissão agostiniana: adoro os filmes de James Bond – pelo menos aqueles interpretados por Sean Connery e alguns com Roger Moore, ainda que tenha visto com muito prazer o penúltimo Cassino Royale, com Daniel Craig.

A apresentação, quando Bond, ereto, pistola na mão, surge na tela do lado direito e caminha a seu meio e, de repente, posta-se de frente e atira, caindo, na tela, uma tinta vermelha, é espetacular e emocionante, com a música tema de John Barry.

Em From Russia with love, inaugura-se o prólogo antes dos créditos. Steven Spielberg confessou, há algum tempo, que sua grande frustração era a de nunca ter feito um filme de James Bond. A séria Indiana Jones, guardadas as suas diferenças, é uma tentativa de dar ao filme o ritmo frenético das aventuras bondianas. Tanto é que Spielberg, assim como nos filmes do agente secreto, também estabelece um prólogo antes da apresentação dos créditos.

Em Moscou contra 007, o que se passa antes dos letreiros iniciais embalados com a música From Russia with love, é um fake. Bond (Sean Connery) persegue Robert Shaw (Red Grant), mas é derrotado com um fio de aço por este. Morto, diante de um castelo exuberante, as luzes se acendem com estrépito e vemos um homem tirar a máscara do derrotado que se pensa ser James Bond. Em seguida, a emergência dos créditos, dando já ao filme um impacto.

A Spectre planeja decodificar os segredos nucleares da União Soviética e, para isso, conta com a ajuda de uma mulher irascível e violenta (Lotte Lenya, que foi esposa de Kurt Weil, autor, com Bertold Brecht, de A ópera dos três vinténs) e seu fiel escudeiro Red Grant (Robert Shaw), homem treinado para matar e destituído de qualquer sentimento de humanidade ou compaixão. Precisa, no entanto, também, da ajuda de uma mulher (Daniela Bianchi), disciplinada soviética que trabalha na embaixada de seu país sediada na Turquia. Porque os ingleses também estão interessados nos segredos da União Soviética, a Spectre pensa contar com a colaboração involuntária deles, mas James Bond, convocado, entra em ação, desarma todo o esquema e, como é de praxe, leva a bela Daniela Bianchi para a sua alcova íntima.

A luta final, entre Lotte Lenya e Sean Connery é muito estimulante para aqueles que gostam do bom filme de ação (atualmente os filmes de ação, honradas as exceções de praxe, são rápidos e dentro da estética do videoclip,que resultam pobres e ruins).

François Truffaut escreveu, em seu extraordinário livro de entrevistas com Alfred Hitchcock, sobre a influência imensa de Intriga internacional (North by northwest, 1959) sobre todo o cinema do gênero thriller a partir dos anos 60, inclusive, disse ele, toda a série de James Bond, cuja estrutura narrativa é bastante influenciada pelo filme hitchcockiano. O que é verdadeiro.

Terence Young, o diretor, inspira-se em Intriga internacional. Vejam a luta no trem, por exemplo, entre Shaw e Connery. E mais: a textura da mise-en-scène advém da estrutura hitchcockiana de North by northwest.

Baseado em Ian Fleming, assim como todos Bonds-movies, Moscou contra 007 é, segundo penso, o melhor de toda a série, porque um thriller bem ajustado sem as novidades que viriam adornar os filmes posteriores.


14 março 2014

"Matar ou morrer": western emblemático

Muito mais que um western, Matar ou morrer, segundo Claude Beylie, ensaísta francês, pretende ser uma parábola sobre a coragem individual diante da covardia coletiva. Faroeste com rosto humano, pode ser considerado, também, uma paráfrase do horror macartista na sociedade americana da época, quando o senador Joseph McCarthy tenta caçar todos os " comunistas" de Hollywood. Fred Zinnemann, diretor austríaco instalado nos Estados Unidos, aproveitando um roteiro de Carl Foreman, faz do western um veículo para a sua visão da sociedade americana.

O xerife de uma localidade do oeste, Will Kane (Gary Cooper no auge de sua carreira), procura ajuda entre a população para combater uns marginais que se preparam para atacá-la. Todos, no entanto, lhe negam o apoio e ainda aconselham a se retirar da luta a fim de evitar um derramamento de sangue. Contra a opinião de sua esposa (Grace Kelly), Kane não desiste e, só contra todos, espera, angustiado, a chegada dos assassinos.

Zinnemann (A um Passo da Eternidade' Julia...) estrutura a sua narrativa com absoluto respeito à unidade de tempo - que serve para potencializar o suspense à medida que a hora fatal vai chegando. Matar ou Morrer é um western sólido, sóbrio e bem construído, que, contrariando os cânones tradicionais do gênero, não se apóia na ação física - uma constante do western tradicional. A dimensão psicológica dos personagens adquire, aqui, capital importância: a descrição minuciosa da conduta de cada um, a crescente angústia do xerife situado entre a obrigação moral e o instinto de conservação. Foreman e Zinnemann pretendem refletir uma época na qual muitos setores do país ficam paralisados pelo medo ao contrário de uns poucos que assumem sozinhos suas graves responsabilidades morais.

Desde No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford, western paradigma e emblemático, o gênero, sempre baseado mais na ação física, evolui para sobreviver aos tempos , rompendo, com a ajuda de cineastas como William A. Wellman, Samuel Fuller, Delmer Daves (Flechas de Fogo), Howard Hawks, John Sturges, Nicholas Ray, John Ford e Anthony Mann, os estereótipos de outrora. O western humaniza-se, torna-se poético, adulto, adquire status como veículo para a análise de comportamentos e da condição humana (Rastros de Ódio, de John Ford, Winchester 73, de Anthony Mann, Johnny Guitar, de Nicholas Ray, Conspiração do Silêncio, de John Sturges, Onde Começa o Inferno/Rio Bravo, de Howard Hawks...).

Matar ou Morrer representa um divisor de águas no western, gênero (entende-se por gênero um conjunto de filmes que possuem o mesmo conteúdo narrativo e seguem o mesmo esquema para explicitá-lo) que se intelectualiza a partir deste filme de Zinnemann. Há cada vez mais psicologia e drama de consciência nos personagens, como neste 'High Noon', e em 'Um Homem Solitário', de Ray Milland, 1954, não faltando mesmo a nota freudiana, como no insuperável 'Rastros de Ódio', de Ford, e 'Gatilho Relâmpago', de Robert Rouse, 1957. Mas a alegoria do bem e do mal ressurge com força de tragédia grega em duas obras-primas: 'Madrugada da Traição', de Edgar Ulmer, 1956, e ‘Crimes vingados’, de Charles Haas, 1957 E a legenda do herói romântico que chega ao povoado, distribui a justiça e vai-se embora como um desconhecido, é retomada em 'Os Brutos Também Amam' ('Shane', 1953), de Georges Stevens.

Em Matar ou Morrer, Zinnemann respeita a unidade de tempo, isto quer dizer: o tempo físico é igual ao tempo dramático. Com uma duração de 89 minutos, tempo tomado pela projeção do filme, High Noon tem sua ação dramática compreendida neste mesmo tempo, ou seja: a compreensão do tempo levado pelos acontecimentos narrados. Assim, Gary Cooper espera os malfeitores durante um tempo igual ao da projeção do filme. Para sinalizar o avanço temporal, é mostrado sempre um plano de detalhe de algum relógio onde se encontre o personagem. Procedimento igual, entre muitos outros, fazem Robert Wise em Punhos de Campeão (The Set Up) e Alfred Hitchcock em Festim Diabólico/Rope, 1948).


High Noon tem uma iluminação bastante funcional de Floyd Crosby, inserida nas solicitações dramáticas, assim como a partitura de Dimitri Tiomkin, cujo tema principal se torna um clássico da música para cinema.

13 março 2014

Cinema: arte ou divertimento?

Falconetti em La passion de Jeanne D'Arc (1928), de Carl Theodor Dreyer

No seu excelente Ponto de Encontro, coluna que saia todo domingo no Mais! (que acabou) da Folha de S.Paulo, o Professor Jorge Coli, que sempre escrevia coisas pontuais e interessantes, tocou num assunto fundamental, qual seja o do "cinema de arte". Não resisto à transcrição. Saiu no dia 21 de setembro de 2008. O tempo decorrido não desatualiza o que está dito.

"Inácio Araujo, com seu sentido certeiro das formulações, escreveu outro dia em uma de suas críticas na Ilustrada: "Mas, ainda assim, não mais que um "filme de arte'".

É uma frase que abala convenções. Se fosse "não mais que um blockbuster" ou "não mais que um filme de shopping", tudo pareceria coerente. Do jeito que ficou, tem o aspecto de uma contradição: a noção "filme de arte", em princípio, elevada, foi percebida como pejorativa.

É que o chamado filme de arte deixou de ser o campo da invenção e da ousadia, como era percebido até algumas décadas atrás. Existe agora uma concepção preestabelecida que enquadra "filme de arte", com algumas receitas mais ou menos explícitas. Passou a existir o academismo do "filme de arte". Ele cumpre parâmetros e se submete a convenções implícitas, que restringem o espírito criador em benefício de um trabalhinho bem feito.

A razão principal não é cinematográfica.
Ela formou-se a partir de um pacto entre público e diretores culturalmente sofisticados, pacto que se estabelece por meio de sinais exteriores de reconhecimento, espécie de feromônios sem cheiro. Tudo isso substitui a criação cinematográfica mais autêntica.

Sim, perfeito, digo eu, passou a existir o academismo do "filme de arte". Os pseudo-cinéfilos que se deliciam com tudo que passa em sala alternativa da cidade, a pensarem, eles, que se trata de "filmes de arte", estão a trocar bolas, a misturar alhos com bugalhos. É interessante observar o comportamento dos pseudo-cinéfilos quando nas citadas salas alternativas. O Professor Coli foi preciso e tocou no ponto certo, quando diz da existência de um pacto entre público e certos diretores sofisticados, da "moda". Mas, por outro lado, pode advir do chamado cinemão (da indústria cultural hollywoodiana) filmes de grande expressão cinematográfica (Sangue negro, de Paul Thomas Anderson, A árvore da vida, de Terrence Mallick, entre tantos). Já vi gente a torcer o nariz para os filmes de Clint Eastwood, o que é revelador de uma grande, profunda, imensa, ignorância. O grande cinema pode existir em qualquer lugar, quer seja pela obra autoral, quer seja pela obra oriunda de um esquema industrial. O resto é besteira. Cinema de arte não existe!

Os filmes resultam cheios de bons sentimentos, os temas são definidos de antemão como profundos; têm boa iluminação, boa filmagem, boa montagem. Os espectadores se encantam com algumas metáforas fáceis ou alusões que se querem densas. No fim, sai do cinema levemente entediado, mas com a satisfação de um dever cultural cumprido. Tudo isso é bastante simbólico e meio cerimonial. Cinema é uma arte, e a noção "cinema de arte" não é um título de nobreza, mas um pleonasmo. Ninguém consegue dizer de onde vai brotar a criação artística.

Mas voltando às palavras do Professor Jorge Coli: “Clint Eastwood, que nasceu de um cruzamento entre filmes baratos de Hollywood e o western spaghetti, tornou-se um artista maior na história do cinema. As sequências dos "Alien", dos "Batman", para além da discussão sobre cada filme, formam magníficas sagas. É bobagem multiplicar os exemplos: um filme não é bom apenas porque é "de arte" ou ruim porque blockbuster.

A sensação de tédio, nada boa em princípio, pode, curiosamente, ter um papel valorizador no campo da arte. É um fenômeno perverso. Espera-se das obras que elas ofereçam prazeres superiores, mas não muito bem definidos, que elas tragam revelações preciosas, que agucem a sensibilidade. Em nome deles, suporta-se estoicamente o tédio, imaginando-se que, de algum modo, a recompensa virá mais tarde. Muita gente faz uma distinção nítida entre arte e divertimento, como se divertir com arte fosse quase um pecado.

Existe, por sinal, uma história filosófica desse pecado, que Hans Robert Jauss retraçou em sua "Pequena Apologia da Experiência Estética". A cultura norte-americana, com sua forte pregnância classificatória, insiste muito na separação entre "art" e "entertainment". Simplificando: se é arte, é chato, se é gostoso, não é arte. Esse jogo preconceituoso é péssimo: ele faz engolir gato por lebre e recusar lebre por gato. Há certas obras que são apaixonantes, mas consideradas difíceis. É que o espectador não encontrou as boas chaves para elas. Procurá-las é um desafio: dificuldade não quer dizer tédio, mas estímulo. As artes foram feitas para oferecer prazeres dos tipos e gêneros diversos. “Se eu me aborreço, é que alguma coisa está errada”.