Falconetti em La passion de Jeanne D'Arc (1928), de Carl Theodor Dreyer
No seu excelente Ponto
de Encontro, coluna que saia todo domingo no Mais! (que acabou) da Folha de S.Paulo, o Professor
Jorge Coli, que sempre escrevia coisas pontuais e interessantes, tocou num
assunto fundamental, qual seja o do "cinema de arte". Não resisto à
transcrição. Saiu no dia 21 de setembro de 2008. O tempo decorrido não
desatualiza o que está dito.
"Inácio
Araujo, com seu sentido certeiro das formulações, escreveu outro dia em uma de
suas críticas na Ilustrada: "Mas, ainda assim, não mais que um "filme
de arte'".
É uma frase
que abala convenções. Se fosse "não mais que um blockbuster" ou
"não mais que um filme de shopping", tudo pareceria coerente. Do
jeito que ficou, tem o aspecto de uma contradição: a noção "filme de
arte", em princípio, elevada, foi percebida como pejorativa.
É que o
chamado filme de arte deixou de ser o campo da invenção e da ousadia, como era
percebido até algumas décadas atrás. Existe agora uma concepção preestabelecida
que enquadra "filme de arte", com algumas receitas mais ou menos
explícitas. Passou a existir o academismo do "filme de arte". Ele
cumpre parâmetros e se submete a convenções implícitas, que restringem o
espírito criador em benefício de um trabalhinho bem feito.
A razão
principal não é cinematográfica.
Ela formou-se
a partir de um pacto entre público e diretores culturalmente sofisticados,
pacto que se estabelece por meio de sinais exteriores de reconhecimento,
espécie de feromônios sem cheiro. Tudo isso substitui a criação cinematográfica
mais autêntica.
Sim, perfeito, digo eu, passou a existir o academismo
do "filme de arte". Os pseudo-cinéfilos que se deliciam com tudo que
passa em sala alternativa da cidade, a pensarem, eles, que se trata de
"filmes de arte", estão a trocar bolas, a misturar alhos com
bugalhos. É interessante observar o comportamento dos pseudo-cinéfilos quando
nas citadas salas alternativas. O Professor Coli foi preciso e tocou no ponto
certo, quando diz da existência de um pacto entre público e certos diretores
sofisticados, da "moda". Mas, por outro lado, pode advir do chamado
cinemão (da indústria cultural hollywoodiana) filmes de grande expressão
cinematográfica (Sangue negro, de Paul Thomas Anderson, A árvore da
vida, de Terrence Mallick, entre tantos). Já vi gente a torcer o nariz para os
filmes de Clint Eastwood, o que é revelador de uma grande, profunda, imensa,
ignorância. O grande cinema pode existir em qualquer lugar, quer seja pela obra
autoral, quer seja pela obra oriunda de um esquema industrial. O resto é besteira.
Cinema de arte não existe!
Os filmes resultam cheios de bons sentimentos, os
temas são definidos de antemão como profundos; têm boa iluminação, boa
filmagem, boa montagem. Os espectadores se encantam com algumas metáforas
fáceis ou alusões que se querem densas. No fim, sai do cinema levemente
entediado, mas com a satisfação de um dever cultural cumprido. Tudo isso é
bastante simbólico e meio cerimonial. Cinema é uma arte, e a noção "cinema
de arte" não é um título de nobreza, mas um pleonasmo. Ninguém consegue
dizer de onde vai brotar a criação artística.
Mas voltando às palavras do Professor Jorge Coli: “Clint Eastwood, que nasceu de um cruzamento
entre filmes baratos de Hollywood e o western spaghetti, tornou-se um artista
maior na história do cinema. As sequências dos "Alien", dos
"Batman", para além da discussão sobre cada filme, formam magníficas
sagas. É bobagem multiplicar os exemplos: um filme não é bom apenas porque é
"de arte" ou ruim porque blockbuster.
A sensação de
tédio, nada boa em princípio, pode, curiosamente, ter um papel valorizador no
campo da arte. É um fenômeno perverso. Espera-se das obras que elas ofereçam
prazeres superiores, mas não muito bem definidos, que elas tragam revelações
preciosas, que agucem a sensibilidade. Em nome deles, suporta-se estoicamente o
tédio, imaginando-se que, de algum modo, a recompensa virá mais tarde. Muita
gente faz uma distinção nítida entre arte e divertimento, como se divertir com
arte fosse quase um pecado.
Existe, por
sinal, uma história filosófica desse pecado, que Hans Robert Jauss retraçou em
sua "Pequena Apologia da Experiência Estética". A cultura
norte-americana, com sua forte pregnância classificatória, insiste muito na
separação entre "art" e "entertainment". Simplificando: se
é arte, é chato, se é gostoso, não é arte. Esse jogo preconceituoso é péssimo:
ele faz engolir gato por lebre e recusar lebre por gato. Há certas obras que
são apaixonantes, mas consideradas difíceis. É que o espectador não encontrou as
boas chaves para elas. Procurá-las é um desafio: dificuldade não quer dizer
tédio, mas estímulo. As artes foram feitas para oferecer prazeres dos tipos e
gêneros diversos. “Se eu me aborreço, é que alguma coisa está errada”.
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