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26 fevereiro 2014

Antonio Moniz Vianna

Este artigo foi publicado quando do lançamento de Um filme por dia, coletânea de críticas do célebre crítico Antonio Moniz Vianna organizada por Ruy Castro. O texto vai como saiu. Sou do tempo dele, quando ia comprar, aqui em Salvador, oCorreio da Manhã que somente era vendido na Praça Municipal. Província tranquila, saia de meu bairro, Nazaré, e ia a pé – uma distância considerável – à citada praça para adquirir jornais do Rio e de São Paulo. No Correio da Manhã, pontificava a figura grave de Moniz Vianna, que foi quem me ensinou a apreciar um travelling em Robert Aldrich. Aliás, a bem dizer, o pouco que sei sobre cinema – e sei muito pouco – aprendi indo ao cinema e lendo críticas como as de Moniz Vianna. Sou um autodidata, portanto. E também comprando livros sobre a arte do filme, a procurar, neles, o conhecimento necessário à apreciação estética de uma obra cinematográfica. Mas vamos deixar de delongas para ir direto ao texto.
“A aparição em livro da reunião das críticas de Antonio Moniz Vianna se torna, desde já, o acontecimento editorial, em relação às obras que tratam do cinema, mais importante do ano, pois se trata de uma coletânea que contém a quintessência do maior crítico cinematográfico de todos os tempos, que pontificou, diariamente, no Correio da Manhã, de 1946 e 1973. Abandonou a crítica neste ano, quando da morte de John Ford, seu cineasta favorito, quando escreve um texto de página inteira e se despede dos leitores. Antonio Moniz Vianna, no entanto, acaba de completar 80 anos, dotado de lucidez e consciência inabaláveis. Mas há três décadas preferiu o exílio voluntário no seu apartamento em Copacabana.
Na época de sua saída, decepcionado com a crise criativa do cinema contemporâneo, não viu mais razão de continuar na labuta diária da crítica. Para ele, o apogeu do cinema se deu entre 1912 e 1962, acontecendo, a partir daí, o seu perigeu. Pertenceu à geração dos grandes críticos, homens cultos, preparados, dedicados, com profundo amor pelo cinema, a exemplo de Walter da Silveira, aqui na Bahia, Francisco Luiz de Almeida Salles, Rubem Biáfora e Paulo Emílio Salles Gomes, em São Paulo, Alex Viany, Salvyano Cavalcanti de Paiva, entre muitos outros. Moniz, no entanto, ao contrário de Walter, que se poderia chamar de ensaísta – e um grande ensaísta de cinema, diga-se de passagem, era um verdadeiro crítico. O título do livro editado pela Companhia das Letras não poderia ser mais exato e significativo: Um filme por dia, porque Moniz Vianna, antes de tudo, era um crítico do batente diuturno, que copiava as fichas técnicas dos filmes – completíssimas – no escuro da sala de projeção com uma caneta na mão.
Antonio Moniz Vianna nasce em Salvador em 1924, mas desde os 11 anos se transfere para o Rio de Janeiro, e, mais tarde, antes do jornalismo, ingressa na Faculdade Nacional de Medicina. A partir de 1946 começa a assinar críticas de cinema no Correio da Manhã, vindo, nos anos 60, a ocupar, neste prestigioso matutino carioca, o cargo importante de redator-chefe. Entre 1956 e 1965, diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, quando organiza importantes e inéditas mostras (para a época) dos cinemas americano, francês, italiano, e russo, que, até hoje, para aqueles que tiveram a sorte de vê-las, ainda se encontram guardadas na memória. Moniz, por exemplo, trouxe, pela primeira vez, em 1958, uma cópia de Cidadão Kane ao Brasil, apesar dessa obra-prima de Orson Welles ser de 1941. Vieram também cópias de obras essenciais, como as de Griffith (O nascimento de uma nação, Intolerância), os primeiros filmes de Méliès e Lumière, as obras fundamentais do neo-realismo italiano e do realismo poético francês, além dos filmes da escola soviética (Eisenstein, Pudovkhin, Dovjenko, Dziga Vertov, etc). Em 1965, organizou o maior festival de cinema que o Brasil já conheceu: o Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro, cujo júri, para se ter uma idéia, entre outros, era composto por monstros sagrados como Fritz Lang, Joseph Von Stenberg, Vincente Minnelli. Nunca, em momento algum de nossa história, houve, no país, festival de tal envergadura.
Das seis mil e tantas colunas que, segundo o crítico Paulo Perdigão, foram escritas pelo mestre, apenas setenta e poucas, após processo de seleção rigoroso efetuado por Ruy Castro e pelo neto do autor, Eduardo Moniz Vianna, constam de Um filme por dia, obra imprescindível e obrigatória que nenhuma pessoa que se queira cinéfila pode deixar de adquirir. Crítico de choque, de estilo admirável – somente comparável aos grandes escritores, Moniz Vianna, apesar dos insistentes apelos dos amigos e de editoras, sempre se recusou a publicar seus escritos. Uma de suas filhas, Isadora, chegou, há alguns anos atrás, a lhe pedir, mas o pai não lhe atendeu. Quem conseguiu o grande feito foi seu neto, Eduardo, que, afinal, entrando no arquivo secreto do crítico, e ajudado pelo especialista Ruy Castro, selecionou o material. Pena que a publicação abarque apenas um por cento do que Moniz escreveu por toda a vida. Mas o que se encontra em Um filme por dia é caviar, delicatessen em matéria de crítica cinematográfica.
Em plena adolescência, em 1964, aos 14 anos, conheci Antonio Moniz Vianna através das páginas do Correio da Manhã. Os jornais do eixo Rio-São Paulo, naquela época, somente eram vendidos na Praça Municipal na Banca do Careca e, aos domingos, religiosamente, comprava o Correio da Manhã para ler Moniz Vianna, principalmente as suas completas filmografias que eram publicadas no Quarto Caderno – o maior suplemento cultural do Brasil, batendo, mesmo, o do Estado de São Paulo e o afamado SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do Brasil). Ficava estupefato (esta, a palavra) como um filme podia ser dissecado com tanta erudição por um crítico. Admirava, em Moniz Vianna, o seu imenso conhecimento do assunto e, principalmente, a maneira dele escrever, o seu estilo, admirável. Moniz, como disse um amigo, e discípulo, Paulo Perdigão, era um crítico de choque.
Moniz Vianna, respeitadíssimo em sua época, era, por outro lado, marginalizado pelos cinemanovistas. Glauber Rocha tinha por ele grande admiração, mas se aborreceu com a sua crítica demolidora a Terra em transe, que Moniz espinafrou – aliás sem razão, pois se trata do melhor filme brasileiro de todos os tempos. O grande crítico, porém, tinha lá suas idiossincrasias, predileções, manias. Adorava John Ford a ponto de deixar a coluna diária no Correio da Manhã assim que soube de seu falecimento. “O cinema acabou”, disse, na época, o polêmico articulista que além de crítico era, também, redator-chefe do jornal por longos anos.
A crítica de cinema, hoje, como praticada por Moniz Vianna, Rubem Biáfora Paulo Emílio Salles Gomes, Cyro Siqueira, Walter da Silveira, José Lino Grunewald, Paulo Perdigão, entre muitos outros, não mais se exercita nos tempos que correm. Atualmente reinam as resenhas e comentários de aficionados, a maioria delas vinculada à propaganda dos últimos lançamentos da indústria cultural cinematográfica made in Hollywood. Os estudos mais aprofundados sobre a arte do filme se encontram nos calhamaços das dissertações e teses de mestrados e doutorados. Mais recentemente, no espaço virtual. Os jornais, decadentes, não se interessam a dar espaço para reflexões sobre o cinema, a preferir textos que funcionem como guias de consumo. Mas, neste particular, a internet tem oferecido a oportunidade para o aparecimento de sites comprometidos com a reflexão teórica.
De qualquer maneira e de qualquer forma, o fato é que, com a decadência da cultura humanística, os acadêmicos-críticos, ou os críticos acadêmicos, não possuem mais um estilo atraente na exposição da matéria, condicionados que ficam pelos grilhões da linguagem da academia, uma verdadeira camisa-de-força que impede o livre exercício do pensamento livre de amarras. Vale transcrever, aqui, o que escreveu o jornalista Getúlio Bittencourt sobre Antonio Moniz Vianna: “Em quantidade, apenas o americano Bosley Crowther, do The New York Times, se apresenta com tamanho similar (ambos somam 28 anos de ofício cada). Em termos de qualidade, será preciso buscar nomes na França para encontrar, dispersos, predicados comuns em Moniz Vianna: André Bazin pela profundidade de análise, Georges Sadoul pelo conhecimento enciclopédico. Já na elegância do texto, só se pode comparar Moniz Vianna com grandes escritores que se dedicaram ocasionalmente à crítica de cinema, como o argentino Jorge Luis Borges na revista Sur, o inglês Graham Greene no The Spectator de Londres, o americano James Agee na revista Time, o colombiano Gabriel García Márquez noEl Espectador de Cartagena“.
Com o desaparecimento dos suplementos culturais, a crítica de cinema foi substituída pelos comentários e resenhas, assim como a literária, de rodapé, também já não mais existe. O jornalismo, dito cultural, hoje, está muito atrelado ao mercado, perdendo, com isso, a independência. Na Bahia, por exemplo, não existe crítica de arte. Os artistas querem ser badalados, elogiados, tietados, e quando alguém, por acaso, os critica há, sempre, uma indisposição, uma vontade de nomear aquele que diz que o rei está nu como um maledicente. Moniz Vianna foi um bravo guerreiro e um crítico como ele já não mais existe na sociedade contemporânea ou, como se quer agora, na contemporaneidade. Os escritos de sua autoria reunidos em Um filme por dia revelam não apenas um imenso estilista e um erudito nas coisas do cinema, mas refletem, também, o espírito de uma época. Que o vento, já saturado, levou-a para sempre. Resta, agora, a recusa à banalidade ululante da cultura ou a aceitação passiva, mascarada de uma alegria debilóide, a justificar que os tempos pós-modernos abrigam um contingente maciço da dementia precox“.

25 fevereiro 2014

Gervásio Rubem Biáfora



Dezembro de 1979. Nesta época, estava no Rio de Janeiro e precisei ir a São Paulo resolver um negócio. Hospedei-me no Hotel Central, que fica na Avenida São João. Mas não pude solucionar a questão que me levou a SP pelo fato de a pessoa, com a qual deveria me encontrar, ainda que combinado o encontro, teve de viajar de repente. Assim, restei-me sozinho, e sem fazer nada, no citado hotel. Comentarista cinematográfico diário do jornal Tribuna da Bahia, lembrei-me de ter recebido uma carta do cineasta Juan Bajon (que não conhecia) sobre o lançamento de seu filme, O estrangulador de mulheres, em Salvador. Visto o filme, e considerando a gentil missiva, recortei a página, na qual estava estampada minha crítica, e a mandei ao realizador, pois tinha gostado do filme, principalmente pelo seu lado bizarro e insólito (enterro de baratas etc). E, vale ressaltar, nunca enviei nada para ninguém. Nunca tive o hábito de recortar artigos para enviá-los. Mas, surpreendentemente, talvez pela carta pessoal - o que não é também hábito dos realizadores, bastando aos críticos os releases das distribuidoras. Bajon me respondeu em várias folhas datilografadas (naquele tempo computador era peça de Millor Fernandes).

Assim, no quarto do Hotel Central, vi, no criado-mudo, um grosso catálogo de telefone, e resolvi procurar o nome de Juan Bajon. Qual não foi a minha surpresa quando, achando-o, telefonei e ele, muito receptivo, disse-me que o esperasse em cinco minutos. Menos do que isso, o telefone toca me anunciado que, na portaria, tinha uma pessoa como o nome de Juan Bajon a me esperar. Desci e o encontrei. Um rapaz em torno de trinta anos, chinês, que me recebeu e maneira efusiva. Fomos a um bar na Avenida São João, e tomei algumas cervejas, ainda que Bajon não bebesse. Convidou-me, então, para almoçar no bairro da Liberdade, onde mora quase toda a colônia de nipônicos. Conversamos bastante e, de tarde, levou-me à rua do Triunpho, lugar do nascimento e estabelecimento da famosa Boca do Lixo, quando ele me apresentou a vários cineastas. Resolvi me sentar num daqueles bares, e, totalmente em ócio, continuei a tomar minhas cervejas, desfrutando do ambiente. A las cinco de la tarde, Juan Bajon se despediu, convidando para me levar ao hotel. Fiquei, no entanto, a continuar o processo etílico começado. Mas disse, taxativo, que iria, no outro dia, me apanhar às dez horas no hotel para irmos ao apartamento de Rubem Biáfora, que disse ser seu amigo. Gostei da idéia, pois Biáfora, para mim, aos 29 anos, era um mito.

Durante a rolagem de pensamentos que ocorre sempre quando se bebe sozinho, achei que Bajon, apesar de simpático, era um anticomunista feroz. Esquerdista que era, não gostei muito disso. Contou-me que sua família, por burguesa, tinha sido massacrada pelas tropas de Mao-Tsé-tung. Estava, no entanto, mais preocupado em conhecer o famoso Biáfora. Fui para o hotel e ainda, neste, tomei, no quarto, mais cervejas, compradas em latas grossas na avenida - ainda não havia as latinhas leves e práticas. Acordei de ressaca pelo telefone, cujo recepcionista me informava da chegada de um tal de Juan Bajon. Falei com ele e pedi, desculpando-me, para que esperasse dez minutos, pois tinha, ainda, que tomar banho.

Fomos andando para o apartamento do severo crítico. Antes de entrar, Bajon se dirigiu a um telefone público, comunicando a nossa subida. E ao sairmos do elevador, já estava Biáfora a nos esperar. Não podia acreditar: Gervásio Rubem Biáfora em pessoa. Entramos e ficamos a conversar. Biáfora me recebeu com muita gentileza e disse ter gostado de meu comentário sobre O estripador de mulheres. Percebi, então, que Bajon realmente tinha amizade com o crítico. Irônico, lembro-me que falou mal da frase de Paulo Emílio Salles Gomes, quando afirmou que o pior filme brasileiro era melhor do que qualquer filme estrangeiro, achando-a uma bobajada (sic). Não estou, aqui, fazendo juízo de valor nem concordando com o crítico, mas constatando fatos. Recordo-me que contou que dias atrás tinha ido a um cinema ver Procura insaciável (Taking off), de Milos Forman, com sua colega do Estado de São Paulo, Póla Vartuk - que já morreu, e ficou estupefato quando esta, na sequência em que todos fumam maconha, engoliu as orelhas de tanto rir. Achou que uma senhora daquela idade não deveria ficar tão efusiva. Mas sempre rindo. Muita conversa rolou até que falei de Walter Hugo Khoury. Biáfora, então, disse que era seu vizinho e telefonou para ele a perguntar se poderia dar um pulo acompanhado de um jornalista baiano. Khoury concordou e pediu, apenas, meia hora, pois estava na banheira. Biáfora me disse que, quando o realizador de Noite vazia acordava, tinha o hábito de ficar na banheira por um bom período de tempo.

Subindo o elevador, a porta deste se abre diretamente no apartamento de Khoury, não havendo, portanto, hall. Khoury nos recebeu no seu imenso espaço, e eu, Biáfora, Bajon, conversamos bastante, apesar de certo acanhamento característico de minha personalidade, que se poderia traduzir por timidez. De repente, de um dos quartos, aparece Sandra Bréa, que estava trabalhando com ele em O convite ao prazer. Finda a visita, estávamos já na rua, quando Biáfora nos convida para almoçar num restaurante italiano ali perto. Fomos. Iria viajar à meia-noite de ônibus para voltar ao Rio de Janeiro e já tinha fechado a conta no Hotel Central. Depois do almoço, resolvi me despedir para andar pelas ruas de São Paulo até o anoitecer, quando iria para a rodoviária esperar o ônibus. Ciente do fato, Biáfora, terminada a refeição, convidou-me para descansar um pouco em seu apartamento. Bajon, lembro-me, não nos acompanhou porque estava com um parente muito doente. Na entrada do prédio, o porteiro disse que tinha ali uma encomenda para ele. Era um álbum de fotografias americano, fotografias de atrizes famosas, as divas do cinema, como Greta Garbo, em imagens ricamente iluminadas. Já no apartamento, não tive vontade de descansar, e Biáfora me mostrou os cadernos manuscritos onde anotava os filmes que via, com fichas completíssimas, comentários, etc. Quando falei de minha admiração por Moniz Vianna, Biáfora, incontinenti, pegou do telefone e ligou para ele, que concordou em me receber quando estivesse no Rio. Perguntei como, antigamente, conseguia as fichas técnicas já que as distribuidoras não as forneciam assim tão completas. Disse-me que anotava tudo dentro do cinema. Via o filme e, depois, na outra sessão, ficava a anotar.

Bem, para quem não sabe, Gervásio Rubem Biáfora foi um dos grandes críticos de cinema dos anos 50, 60 e 70. Também realizador, dirigiu, entre outros, dois filmes que merecem, porque muito bons, uma revisão: Ravina e O quarto, este último, para mim, o seu melhor trabalho, que foi injustamente desprezado pela crítica ideológica.

P.S: Gustavo Dahl traça um excelente perfil de Rubem Biáfora nos dois últimos números da revista Filme/Cultura. Aqui:http://filmecultura.org.br/categoria/edicoes/

23 fevereiro 2014

Vincente Minnelli: estesia e sofistificação


Agora seremos felizes (Meet me in St.Louis, 1944), de Vincente Minnelli, um dos mais belos filmes da história do cinema, com a encantadora Judy Garland

Em 1903, nasce em Chicago (Illinois) Vincente Minnelli, que vem a morrer em 1986, aos 83 anos de idade, considerado um dos maiores diretores do cinema americano de todos os tempos. Ainda pequeno, apenas a iniciar o seu conhecimento do mundo, aos 3 anos, atua na companhia paterna Minnelli Brothers Dramatic Tent Shows, especializada em espetáculos de vaudeville. Adolescente, o jovem Minnelli estuda decoração e trabalha como fotógrafo em um estúdio de Chicago, revelando, desde já, o gosto pela coreografia e pela composição. O circuito Balaban & Kats lhe contrata como decorador e figurinista, trabalho que desempenha até ser nomeado diretor artístico do Paramount Theatre de New York e do imponente Radio City Music Hall. Distante de sua terra natal, e com residência permanente em New York, dá início ao trabalho de direção de balés e espetáculos musicais na Broadway (At home abroad, Ziegfeld Follies, The show is on, etc). Em 1937, contratado pela Paramount, muda-se para Hollywood e, três anos depois, a MGM, o estúdio de maior envergadura na época, tira-o da empresa onde trabalha para ficar full time a seu serviço. Louis B. Mayer, acompanhando seus projetos na Paramount, vê em Minnelli um futuro promissor em seu estúdio, considerando que este é o que mais investe em musicais. Na MGM, Minnelli leva a cabo um profundo aprendizado em todos os departamentos de produção. Para assumir a direção, basta, apenas, uma oportunidade, que lhe é chegada com o convite de Arthur Freed (famoso produtor de musicais, entre elesCantando na chuva) para dirigir, em 1942, Uma cabine no céu (Cabin in the sky), fantasia musical sobre as comunidades negras do sul.
Todos os historiadores do filmusical americano não têm dúvida ao afirmar que o gênero se transforma radicalmente com a chegada de Minnelli à Hollywood, pois o seu gênio faz integrar os elementos ficcionais da história com a música e as canções. Estas se tornam o próprio assunto do filme. Grande especialista em espetáculos musicais, Vincente Minnelli, após conceber Agora seremos felizes(O ponteiro da saudade (The clock, 1944),Yolanda e o ladrão (Yolanda and the thief, 1946), e O pirata (The pirate, 1947) – que exerce influência poderosa em Gene Kelly, que, aqui, trabalha ao lado de Judy Garland, a qual se casa com o realizador, encantado que fica Minnelli pelo extraordinário talento dessa cantora e atriz única, revoluciona o gênero, inaugurando, com eles, uma nova escola do musical cinematográfico, que logra seus títulos oficiais de nobreza com Sinfonia de Paris (A american in Paris, 1951), filme pelo qual recebe o Oscar de melhor direção, que voltaria a ganhar em 1958 por Gigi.
Martin Scorsese, em sua aula sobre o cinema americano, que saiu completa em três vídeos, destaca, entre as suas sequências preferidas, a de Meet me in St. Louis, quando a menina, numa noite de Natal, ao saber que vai sair de sua cidade, quebra todos os bonecos de neve que ela constrói no quintal. Há, nesta seqüência admirável, uma conjunção musical e dramática poucas vezes superada. EmSinfonia de Paris, que tem roteiro assinado por Alan Jay Lerner (My fair lady), com a partitura recheada de George Gershwin, um pintor americano (Gene Kelly), que vive em Paris, é cortejado por bilionária (Nina Foch), mas gosta de uma linda moça (Leslie Caron), que, no entanto, é noiva de seu amigo francês (Georges Guétary).
Segundo o historiador francês Georges Sadoul, este cine-balé não é uma revista em estilo de teatro de revista, mas uma ópera cujas danças e músicas fazem parte de uma ação dramática. A coreografia, criada por Gene Kelly, é esplendorosa, principalmente nos 17 minutos finais, quando presta uma homenagem aos grandes mestres franceses: Toulouse-Lautrec, Raoul Dufy, Utrillo, Renoir, etc. Minnelli, porém, não se consolida apenas como um brilhante diretor de filmes musicais. Em sua extensa filmografia, podem ser distinguidas três vertentes: a do musical, que tem em A roda da fortuna (The band wagon, 1953) sua obra mais perfeita, a que se deve aplicar o termo obra-prima do gênero, a dos dramas ásperos e desesperados, cujos exemplares mais notórios são Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953), Deus sabe quanto amei (Some came running, 1959), A cidade dos desiludidos (Two weeks in another town, 1962), entre outros, e a da comédia agridoce, que se inaugura com O papai da noiva (Father of the bridge, 1950), passando por Chá e simpatia (Tea and sympathy, 1956), Brotinho indócil(The reluctant debutante, 1958) entre outras, até atingir a sua culminância absoluta em Papai precisa casar (The courtship of Eddie’s father, 1963) – considerada por muitos minnellianos talvez a sua obra maior no gênero, comédias que constituem um dos testemunhos mais lúcidos e agudos da burguesia americana. Para o colunista, os melhores filmes de Minnelli são: Deus sabe quanto amei, Assim estava escrito, Papai precisa casar, A cidade dos desiludidos, e A roda da fortuna.
No primeiro, obra-prima absoluta, lancinante radiografia do american way of lifeem que Minnelli, num drama áspero, tenso, utiliza elementos do filmusical, resultando, com isso, uma mise-en-scène deslumbrante, de pura estesia, principalmente perto do final, quando da perseguição num parque de diversões. Neste momento supremo do cinema minnelliano, que reflete a trágica invasão da realidade num mundo ideal onde os personagens pensam em se refugiar, as cores, os objetos, as pessoas e o espaço são praticamente coreografados; e quase nunca se vê, na estética da arte fílmica, um testemunho tão intenso da eficácia de um autor que se utiliza dos elementos componentes da linguagem cinematográfica de maneira tão marcante. Neste filme, cujo título em português nada acrescenta a sua excelência, antes ridicularizando-o (o original Some came running quer dizercomo uma torrente), um romancista volta à sua cidadezinha natal para reencontrar o irmão rico, Mas, a seu lado, viaja uma prostituta que se apaixona por ele. Com Frank Sinatra, Dean Martin e Shirley McLaine, todos inexcedíveis.
Se Billy Wilder, no expressionista Crepúsculo dos deuses (Sunset boulevard, 1950), oferece um retrato crítico de Hollywood, Minnelli, em Assim estava escrito, o consegue superar não somente pelo elo semântico – a força do tema – como pelo elo sintático – a mise-en-scène que, sobre ser a de Wilder impecável, atinge aquilo que alguns estetas chamam de maravilhoso. Não dá, aqui, neste espaço, para falar de The bad and the beautiful, tal a sua riqueza, tal a sua imensa beleza. Em poucas palavras: um escritor (Dick Powell), uma atriz (Lana Turner), e um diretor (Barry Sullivan), recordam em flash-backs como um famoso produtor (Kirk Douglas) os traiu. Partitura de alto nível de David Raksin. Papai precisa casar é um primor de comédia, a maior, sem dúvida, do autor, no gênero. Encontra-se aqui toda a maturidade de um mestre do cinema, que sabe equilibrar, com uma fluência assustadora, os elementos da linguagem, a utilizar, com engenho e arte, o espaço e o tempo cinematográficos.
Realizado em 1963, Papai precisa casar, no apogeu da desconstrução, quando a crítica mais enragé exige dos filmes uma rigorosa falta de linearidade, Minnelli, desprezando as circunstâncias, e, com isso, fazendo valer o seu modo de fazer cinema, recusa-se à abdicação do linear. O resultado é mais que perfeito, ainda que, o filme, alta voltagem como cinema, como arte, como testemunho, como comédia que sabe deliciar o espectador, passe despercebido pelas autoridades que carimbam o atestado de valor. Glenn Ford é um viúvo que se vê às voltas com três lindas mulheres que o cercam. Seu filho, um garoto de 10 anos (o futuro diretor Ron Howard), o ajuda na escolha, O trio é esplendoroso: Shirley Jones, Dina Merrill e Stella Stevens, que vem a trabalhar nesse mesmo ano em O professor aloprado, de Jerry Lewis.
No magistral A roda da fortuna, Tony Hunter (Fred Astaire), no ocaso de sua carreira, regressa a New York, onde é recebido por seus velhos amigos. Minnelli sinaliza, aqui, já em 1953, no ocaso do personagem interpretado por Astaire, num rasgo premonitório, a decadência do filmusical. A roda da fortuna tem alusões e citações, e o autor, avant la lettre, introduz, no cinema, a referência. Os antigos colegas do dançarino projetam montar um grande espetáculo na Broadway, com uma bailarina clássica, Cyd Charisse. A princípio desconfiado, Astaire, no entanto, com o desenrolar das situações, acaba por se apaixonar por ela. Um famoso diretor, Jeffrey Cordova (interpretado por Jack Buchanan) transforma o espetáculo numa pomposa versão musical de Fausto, expressionista e pedante, que redunda em estrondoso fracasso. Astaire, porém, tenta reformula-lo com a ajuda de Charisse e consegue, na remontagem, um êxito surpreendente. Apogeu admirável da primeira etapa das experiências de Minnelli, filme-síntese, portanto, A roda da fortuna oferece uma imagem da vida pública e privada dos artistas que fazem o espetáculo. A sua atração, porém, reside nos pequenos, mas significativos, detalhes do cotidiano dos bastidores, em notações autobiográficas e satíricas. Mas onde o filme alcança sua dimensão mais específica está na singular identificação entre Fred Astaire e seu personagem, talvez a expressão mais acabada do mito pessoal do grande bailarino em números admiráveis como, logo no início, com o engraxate, e a dança de amor no parque – com uma Cyd Charisse na plenitude de suas faculdades. A culminação espetacular do filme se encontra no balé Girl Hunt– brilhante e violenta sátira dos filmes de detetive e do chamado cinema noir, que, sem nenhuma dúvida, é um dos mais completos e inteligentes números musicais da história do cinema.
Na vertente dos dramas ásperos, além de Assim estava escrito, um outro, que lhe parece uma espécie de continuação, e de impacto extraordinário, é A cidade dos desiludidos, de 1962. A história gira em torno de Jack Andrus (interpretado por Kirk Douglas), que, após temporada de descanso numa clínica, é chamado por Kruger (Edward G. Robinson), que está, em Roma, dirigindo um filme. Jack toma o avião e vai se encontrar com o amigo, ainda que amargurado e deprimido pela vida. O contato, no entanto, com a doce beleza de Dahlia Lavi, e a volta à atividade profissional, oferece-lhe a possibilidade de recomeçar de novo, ofertando-lhe um novo ânimo, de libertar-se de suas obsessões e das amargas lembranças de sua mulher (Cyd Charisse). Mas há um acidente de percurso com o ataque cardíaco de Kruger, que fica impossibilitado de trabalhar e Jack se vê obrigado a assumir a direção do filme. A chegada da ex-esposa, no entanto, e o stress do trabalho, levam Jack a uma crise. Contornada, e definitivamente curado, Jack retorna aos Estados Unidos para recomeçar sua carreira de diretor. O título original do filme, traduzido, é Duas semanas em outra cidade, tempo que Jack passa em Roma. Um ator (Douglas) e um diretor (Robinson) vivem encerrados em um mundo de sonhos para escaparem da realidade de seus fracassos. Mas somente o primeiro consegue se libertar, sendo que sua penosa experiência constitui a trama de A cidade dos desiludidos. Continuação espiritual de Assim estava escrito – uma das cenas desse filme serve para precisar a evolução psicológica de Jack, o filme oferece uma visão ácida do mundo cinematográfico de Roma. Pleno de observações incisivas e justas, como o tumulto da Via Veneto – o filme é realizado dois anos depois de La dolce vita – em torno da estrela italiana (Rosanna Schiaffino), as relações entre o produtor e o diretor, o ambiente das filmagens, etc. Minnelli, no entanto, não se limita somente a este aspecto, mas, superando as limitações melodramáticas da intriga, leva a cabo uma reflexão moral sobre a condição do cineasta, que vem a sintetizar o eterno conflito do homem entre a ilusão e a realidade, tema básico de sua obra.

20 fevereiro 2014

Em defesa do melodrama


Todos os grandes filmes são melodramáticos! Há um preconceito arraigado contra o melodrama por parte das mentes ditas intelectualizadas que precisa ser desmontado, desfeito. Hitchcock, em Marnie, elevou o melodrama à condição de obra de arte. Há momentos de melodrama nas cenas entre o protagonista e Susan Alexander em Cidadão Kane. Os importantes filmes de Vicente Minnelli, o estilista mais sofisticado do cinema, são melodramas, como Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953), Deus sabe quanto amei (Some came running, 1958), Adeus às ilusões (The sandpiper, 1964), entre muitos outros. Casablanca e ...E o vento levou são momentos sublimes de grande melodrama. Infeliz do filme que não tenha inserido nele elementos melodramáticos! Talvez o cinema brasileiro não tenha se firmado como indústria por causa da virose cinemanovista, que tinha preconceito com o melodrama.

E as novelas atuais, se são melodramáticas, estão longe, entretanto, do dramalhão. Aliás, a partir de Beto Rockfeller (1969), a dramaturgia nacional televisiva se afastou do dramalhão, cujo modelo vinha do México. Ainda hoje este país conserva elementos do dramalhão como se pode ver nas novelas importadas e dubladas pela SBT. Um bom realizador sempre evita cair no dramalhão, levando o melodrama para o patético ou o trágico ou, simplesmente, deixando-o apenas no tom exato. Douglas Sirk fez excelentes melodramas: Palavras ao vento (Written on the wind), Tudo que o céu permite, Imitação da vida, etc. E se, em Hithcock, a quintessência melodramática se encontra em Marnie, quando encontra o sublime, em quase todos os seus filmes sempre há uma, por assim dizer, história de amor com elementos melodramáticos. Há algo mais belo do que a poética de um Jacques Demy? Que, em Os guarda-chuvas do amor alcança a sublimidade, fugindo do dramalhão, para se situar na tragédia do amor e da existência?

Como definir o melodrama: Drama melado? Drama açucarado? E o que é o drama? Todo filme é um drama, considerando que drama é ação, cadeia de acontecimentos. Assim, até a comédia é um drama. Filmes de minha preferência, como Férias de amor (Picnic, 1955), de Joshua Logan, com William Holden e Kim Novak, são melodramas. Adoro, portanto, um melodrama. Já o clichê se instaura quando uma certa mesmice se repete sem haver densidade poética, mas, apenas, repetição de ganchos narrativos. Até mesmo um filme inovador, que traumatizou toda uma geração, como Hiroshima, mon amour, é, também, um melodrama.

Se o cinema de Godard, entre outros, revolucionou a linguagem do cinema na década de 60, também, por um lado, foi contraproducente, pois implantou na mentalidade cinefílica e atávica a mania da desconstrução, que se espraia, como metástase, até mesmos nos estudos acadêmicos da área das humanidades. Hitchccok já dizia que com o melodrama é mais fácil se alcançar o sublime. Sublime que ele alcançou com o citado Marnie e que Chaplin conseguiu chegar em Luzes da cidade (City light, 1930), um trágico-sublime, poderia dizer.

E Crepúsculo dos deuses (Sunset boulevard, 1950), de Billy Wilder, por acaso não contém uma carga melodramática respeitável? Usa-se, no entanto, a expressão melodrama no sentido pejorativo quando em relação ao cinema e ao teatro ou, mesmo, à literatura.  As grandes narrativas do cinema são sempre de estrutura simples, linear ou binária ou, ainda, circular. Há, por outro lado, grandes filmes que fogem a este esquema: Morangos silvestres (Smultronstallet, 1957), de Ingmar Bergman, Oito e meio (Otto e mezzo, 1964), de Federico Fellini, entre muitas outros. O importante é o talento do realizador, sua capacidade de pensar cinematograficamente. Assim como faz Clint Eastwood em seus filmes.

O preconceito ao melodrama se acentua nos últimos decênios com a falência múltipla das aspirações idealistas e o estabelecimento de uma estética baseada no realismo tout court ou, mesmo, no naturalismo. O público, diante de uma realidade cada vez mais pragmática e consumista, não aceita mais o intimismo, os filmes que idealizavam e estilizavam a vida e os homens. Um filme é bom, para a maioria dos pseudo-cinéfilos que frequenta as salas alternativas, quando diz coisas nobres e belas, desconhecendo eles que um filme é bom quando sabe dizer e toda a questão se encontra no como e não na coisa em si. A natureza nobre de um tema condiciona o espectador a achar que determinada obra cinematográfica é boa. Ledo e ivo engano!

A nova geração ri de certas sequências com alguma carga melodramática. Assim, quando James Stewart e Kim Novak, frentes ao mar, que bate, furioso, nos rochedos, se beijam apaixonadamente com a ênfase sendo dada pela partitura de Bernard Herrmann, o público ri numa confissão completa de ignorância e ausência de sensibilidade. Em outros casos, como o princípio da autoridade está patente, caso de Casablanca, a geração fim-de-mundo, esta da estética do vídeo-clip, finge gostar para não ficar out.

É todo um processo de reeducação que se tem que colocar aliado às mudanças culturais, ao espírito da época, ou, se se quiser, ao l'esprit du temps.


19 fevereiro 2014

Desimportância dos cineclubes

Mel Ferrer e Ingrid Bergman em As estranhas coisas de Paris (Elena et les homme), de Jean Tenoir
Com o advento do VHS, do laser-disc, do DVD, e, agora, com a possibilidade de se baixar quase tudo da internet, a pergunta que se quer fazer é a seguinte: ainda haveria condições de ser ter um clube de cinema nos moldes do de Walter da Silveira nas décadas de 50 e 60?

Naquela época, difícil era ver certos filmes, que ficavam restritos às cinematecas. O mercado exibidor se restringia aos lançamentos e as constantes reprises de filmes de sucesso. Como, no período que antecedeu o surgimento dos novos suportes, assistir aos filmes neo-realistas, aos do expressionismo alemão, às obras mais independentes de cinematografias desconhecidas, às obras do realismo poético francês, à vanguarda da estética da arte muda? O único jeito era a viagem e, assim mesmo, o mais certo seria ao exterior, às cinematecas de Nova York ou a de Paris, além de outras importantes da Europa. Aqui no Brasil, existiam, mas ainda incipientes, as cinematecas do Rio e de São Paulo (esta com um acervo mais versátil). Salvador não tinha nenhuma possibilidade de constituir uma cinemateca.

A importância de Walter da Silveira (que boa parte da nova geração não sabe de quem se trata, apesar de nome de sala alternativa nos Barris) foi justamente a de, com a fundação do Clube de Cinema da Bahia, trazer filmes especiais, essenciais na evolução da linguagem e da estética cinematográficas. Walter da Silveira fez ver, aos baianos de província (mas uma província muito agradável bem diferente da cidade engarrafada de hoje), que o cinema, além de um bom divertimento, era, também, a expressão de uma arte. O próprio Glauber Rocha, quando de sua morte, em novembro de 1970, em artigo para o Jornal da Bahia, confessa que o ensaísta fora seu grande mestre, que aprendeu a ver cinema através das palavras de Walter da Silveira. E conta, num artigo, o esporo que este lhe deu, quando, numa exibição de "O encouraçado Potemkin", numa sessão matutina no cinema Liceu, conversava durante a exibição com um amigo. Walter, percebendo o "arruído", deu-lhe tremendo esporo, segundo palavras do próprio Glauber que, conta, nunca mais falou durante a projeção de um filme, tal a indignação do mestre diante do jovem tagarela.

Atualmente, no entanto, com a facilidade existente, pode-se ver um raro filme antigo, a exemplo de "Ordet" (1941), de Carl Theodor Dreyer, famoso cineasta dinamarquês, em boa cópia em DVD. Este filme, há poucos anos, somente seria possível ser contemplado na cinemateca de Henry Langlois, em Paris. Outro dia, vim saber, que um conhecido baixou da internet, em cópia decente e legendada, 
As estranhas coisas de Paris (Elena et les hommes, 1956), com a bela Ingrid Bergman e Jean Marais, filme difícil de se ver (nunca passa na televisão e não tem no disquinho).

Há dois anos, tentou-se implantar um cineclube na Faculdade de Comunicação. Com excelente programação. Retrospectivas de Kubrick, Buñuel, etc. Mas os alunos antes de entrar perguntavam se os filmes estavam disponíveis em DVD. E davam meia-volta, volver.

Já se contou aqui que este colunista, uma vez no Rio, ao saber da exibição de Ladrões de bicicleta na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, em única sessão, ainda que mal tivesse chegado à cidade, correu para lá. Finda a exibição, chuva torrencial fê-lo ficar encharcado e voltar a pé para o hotel (a cidade engarrafada, tudo parado). Nos tempos atuais, faria o mesmo sacrifício? Claro que não, pois o DVD de Ladri di biciclette está disponível não somente para ser adquirido, mas também nas melhores locadoras da cidade.

Qual a função do cineclubismo nos dias atuais? Walter da Silveira, por exemplo, sobre ser um dos maiores ensaístas de cinema do Brasil (na Bahia ninguém nunca lhe chegou perto), era um homem, verdade se diga, à antiga, de tom grave, circunspeto, com uma gestualística bem diversa da juventude atual e, mesmo, dos menos jovens que atualmente constituem o meio circundante e intelectual, universitário. A figura de Walter faz lembrar aqueles antigos mestres universitários, principalmente os professores da Faculdade de Direito (no acento vocal, nas pausas, na maneira de expor o assunto, um "magister dixit").

A importância do cinema, antes tido como mero entretenimento, foi reconhecida pelas universidades, que incorporaram o seu ensino na maioria delas espalhadas pelo mundo. Porque se constatou que o imaginário do homem do século XX foi completamente contaminado pelas imagens em movimento, que interferiram no seu comportamento, na sua maneira de ser, nos hábitos e costumes. O cinema tem uma força de convencimento que ultrapassa as demais artes. Não é exagero se dizer que muitas pessoas se formaram através da visão de filmes. O cineclubismo, para isso, exerceu, sem dúvida, forte influência. Mas a indústria cultural hollywoodiano se, antes, tinha uma produção média notável, atualmente se restringe, honradas as exceções de praxe, aos efeitos especiais e, agora, à Terceira Dimensão como o “Avatar” do futuro do cinema, perdendo este o seu humanismo e a possibilidade de veículo de expressão, de idéias, de visão de mundo.

Mas acontece que o mundo mudou e, com ele, a cultura. Houve um papel importantíssimo exercido por Walter da Silveira. Os realizadores que se aventuram na captação das imagens em movimento são contemporâneos de um cinema digital. Filmes são feitos até pelos telefones celulares. O Clube de Cinema da Bahia, portanto, não poderia existir - nem teria razão de ser - nesta chamada contemporaneidade. A própria psicologia de recepção da obra cinematográfica mudou. Bem, são reflexões ao acaso.

18 fevereiro 2014

Dos cinemas de antigamente

Para quem viveu a época dos chamados cinemas de rua, quando as imagens em movimento eram restritas às salas escuras mediante o pagamento de um ingresso, havia uma atmosfera especial em cada um deles, um estilo arquitetônico particular, que gerava climas diversos. Há um livro, Um cinema chamado saudade, de Geraldo Leal e Luis Leal Filho, que mostra a quantidade de salas que Salvador tinha em relação a casas exibidoras atuais. Documento importante, um registro dos mais valiosos, Um cinema chamado saudade encontra-se, infelizmente, completamente esgotado. Verdadeira história dos cinemas na Bahia (o cinema, bem entendido, como casa de espetáculo), a publicação, dos autores, teve, porém, circulação restrita. Não seria o caso de as instituições que se dizem culturais tentar republicá-lo em uma nova edição? A Secretaria de Cultura deveria estar atenta para isso.

Mas, o fito dessa coluna é fazer um pequeno e breve inventário da memória dos antigos cinemas baianos naquilo que ficou nos arcanos de minha memória. Pequenas coisas, mas que se fixaram na minha imaginação de cinéfilo impertinente e assíduo. Como dizia Jack, o Estripador, vamos por partes:

A corrente do cinema Liceu. Nos últimos quinze minutos da sessão de um filme, era colocada uma corrente na descida das escadas que dava para a sala de exibição. Porque geralmente chegava mais cedo, ficava sentado na excelente sala de espera, aguardando o início da projeção e ficava a olhar para aquela corrente. Que era aberta somente quando, terminada a sessão anterior, já prestes a começar a seguinte. As pessoas, apinhadas na sala, de repente, aberta a corrente, desciam escadas abaixo para pegar uma poltrona mais em conta

A cortina sebosa do cinema Aliança. Situado na Baixa dos Sapateiros, o citado cinema era um autêntico 'poeira': cadeiras de madeira, ar renovado que proporcionava intenso calor, cheiro de urina insuportável, mas que, na ânsia de ver filmes, os cinéfilos aguentavam para sentir a magia dos espetáculos cinematográficos. Mas no Aliança havia, para se entrar, que se adentrar por uma cortina extremamente sebosa, que deixava na roupa o seu odor repugnante. Havia de se ter de driblar a cortina para não se 'contaminar' com o seu contato. Mas era tarefa impossível. Por mais que se tentasse, sempre ficava na roupa do cinéfilo, impregnado, o cheiro de suas sujeiras. Sacrifício monumental.

3.)Em torno de 1964, o cinema Pax, também situado na Baixa dos Sapateiros, estava lotado numa sessão dominical pela tarde. Era perto das festividades do São João. O Pax lotado significava que havia gente saindo pelo ladrão, e o cinema era enorme: uma platéia e dois balcões. De repente, uma casa de venda de fogos explodiu nas circunvizinhanças da sala exibidora e os espectadores pensaram que era o Pax que estava a explodir. Pânico geral. Algumas pessoas morreram pisoteadas. Uma verdadeira tragédia. Semana depois, indo ao Pax, vi manchas de sangue no chão de ladrilhos. Nesta sala, entrava-se 'pela tela' ao contrário dos outros cinemas. Fiquei, por um bom tempo, com 'medo' do Pax, ainda que continuasse a frequentá-lo todas as semanas.

4.)Salvador era uma beleza: calma e provinciana. Andava-se muito e se chamava o andar de 'paletar'. Frequentei muito os cinemas Brasil e São Jorge, que eram situados no Bairro da Liberdade (a famosa rua Lima e Silva). Cinemas de segunda classe, mas tinham programas duplos, quando não triplos, e o ingresso era baratíssimo. O povo, naquela época, ia muito ao cinema, ao contrário dos dias atuais quando ir ao cinema se constitui um lazer da elite, considerando os preços astronômicos. Um ingresso para uma sala dos complexos (Multiplex ou Cinemark) é mais caro do que o ingresso para o melhor cinema de Nova York.

5.)Certa ocasião, no São Jorge, o exibidor resolveu passar filmes pornográficos na sessão de meia-noite. Depois de duas semanas, a polícia promoveu uma intervenção, proibindo as exibições. Pouco tempo passou e Walter da Silveira, do Clube de Cinema da Bahia, combinou com o exibidor Francisco Pithon a realização de sessões à meia-noite de filmes de arte. As pessoas, ainda surpreendidas com o noticiário em torno das sessões do São Jorge, pensaram que os filmes programados fossem pornográficos. Mas qual nada! O túmulo do sol, película de origem japonesa, poética, nada tinha de pornográfica. Muito pelo contrário. Walter surpreendeu-se pelas filas que se formavam desde as 23 horas, pois nunca pensaria num público tão imenso para ver filmes ‘de arte’. Cinema lotado, começada a sessão, mal tinha passado meia hora, quando os espectadores começaram a perceber que não se tratava da ‘putaria’ querida. E quebraram todas as cadeiras do Guarany. Pithon encerrou as exibições. Foi a única experiência nesse sentido.

6.) Anos se passaram e a sessão de meia-noite foi instituída com êxito no cinema Bahia, à Rua Carlos Gomes. Os filmes programados eram os que seriam lançados semanas depois. Lembro-me de ter assistido Morte em Veneza, de Luchino Visconti, numa dessas sessões. Depois se tinha o hábito de ir ao Rose’s, bem em frente à sala exibidora, que inaugurava na Bahia a venda de cheesburgueres. Quem se lembra do Rose’s da Rua Carlos Gomes?


16 fevereiro 2014

Da critica cinematográfica





A função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o leem, o impacto da obra de arte.”
ANDRÉ BAZIN


Creio que a tarefa dos críticos especializados em cinema – não considerando, aqui, os comentaristas meros aficionados – é a de atuar como mediadores entre a obra cinematográfica e o espectador comum, oferecendo um modelo de leitura da primeira e sublinhando os eventuais valores poéticos nela presentes. Refiro-me aos críticos que atuam em jornais e revistas ou que escrevem em suplementos culturais cujo público alvo não se restringe ao meio acadêmico. A função daqueles que escrevem sobre cinema é ajudar – e não complicar – ao leitor a percorrer o itinerário do filme com um mínimo de conhecimento lingüístico – de modo a permitir que se reconheça, durante o trajeto, aquilo que é importante daquilo que não o é. Uma função, portanto, que, mesmo antes de se reportar à apreciação estética da obra considerada no seu conjunto, incide sobre a sua sucessiva racionalização, quer dizer, a tradução em termos lógico-discursivos do sentido poético que ela exprime através dos procedimentos de significação que lhe são próprios.

(Percorro um itinerário de colunista no jornal Tribuna da Bahia desde agosto de 1974. Trinta e seis anos que se completam no ano em curso. Neste período, tenho tentado escrever para o leitor, mas sempre procurando salientar que o filme somente pode se consolidar como obra expressiva, se houver, por parte do realizador, um ato criador na manipulação dos elementos da linguagem cinematográfica. De boas intenções, de boas idéias, o inferno está cheio. Um bom roteiro somente pode ser transformado em filme dotado de qualidades específicas, quando existe o talento natural do cineasta na manipulação do processo sintático da lingüística fílmica. Se a crítica do passado sempre estava a procurar o  elo semântico da obra cinematográfica, a crítica, a partir dos anos 60, compreendendo, afinal, que o cinema é uma linguagem, concentrou-se na procura do elo sintático, mas este sempre associado ao elo semântico, pois os dois elos são indissociáveis.

Sempre que não se queira ficar pelo desempenho de uma mera atividade de informação cronística – como sói acontecer no jornalismo cultural baiano, o crítico de cinema deve valorizar a obra examinada, fazendo emergir, dela, as suas valências ocultas e interpretando-as em ligação com o macro-contexto cultural em que a primeira vê a luz. Na condição, naturalmente, de que tal ação seja desempenhada com discrição, a fim de garantir o respeito pelo texto fílmico contra o perigo de leituras forçadas e de distorções generalizadas – muito comum, aliás, nos neófitos que se arvoram em críticos nesta província da Bahia. De resto, a própria polivalência que caracteriza o filme como sistema orgânico de sinais susceptível de múltiplas leituras, favorece a pluralidade interpretativa. Portanto, se o espectador normal se limita geralmente a ver um filme, o crítico lê-o por ofício e ajuda o primeiro a fazer outro tanto.

Porém, nesta sua função de intérprete e guia, o crítico de cinema deve contar com uma dificuldade resultante da natureza não-homogênea da linguagem escrita por ele utilizada relativamente à linguagem visual empregada pelo filme. Dificuldade esta que o intérprete dos textos literários não conhece, podendo entremear tranqüilamente o seu discurso crítico com o do texto analisado em virtude da identidade lingüística que preside a ambas as manifestações expressivas. Isto se mostra tanto mais intrigante quanto mais presente se tiver o caráter narrativo do filme, caráter assente nas outras artes visuais que também têm as suas práticas críticas correspondentes, não obstante serem igualmente irredutíveis às formas da linguagem verbal. A complicar ainda mais o caso está a natureza de linguagem sem língua que é típica do filme. De fato, a partir do momento em que não existe um sistema abstrato pré-existente ao filme, mas, apenas, obras fílmicas isoladas, não parece possível – como acontece, pelo contrário, na análise dos textos literários – estimar o eventual afastamento,  entre a parole-film e a langue-cinema, afastamento do qual derivaria a poeticidade do texto fílmico. Trocando em miúdos: é impossível distinguir entre um uso banal ou cotidiano da linguagem cinematográfica e uma sua utilização que obedeça a propósitos artísticos, e isto pela simples razão de que, no filme, o plano de  denotação coexiste sempre com o da conotação e que, por conseguinte, não existe um grau zero da escrita fílmica  a partir do qual se possam avaliar os eventuais afastamentos efetuados em sentido expressivo pela linguagem examinada.

Ainda que sem emitir, mas, nas entrelinhas, já emitindo, juízos valorativos, não acredito numa  cientificização da crítica cinematográfica, quando o analista mais se assemelha a um cientista a procurar pacientemente significados na obra cinematográfica e, com isso, destruindo não apenas a emoção do filme – essencial em toda obra que se queira de arte – como também o prazer de ler o resultado da investigação. Sigo, desde sempre, as palavras do eminente jurista Vicente Rao, quando escreveu no volume 60 de seus comentários ao Código de Processo Civil: “A clareza tem o direito de fazer parecer superficial, mas que não se infira desse aviso a conveniência de ser obscuro para parecer mais profundo.”

O grande crítico José Lino Grünewald gostava de dizer: 'Cinema se aprende indo ao cinema'. Há de se adquirir o hábito de ver filmes, assim como se adquire o hábito de ler. É um processo que leva tempo o conhecimento cinematográfico. Existe, no curso universitário, uma disciplina chamada Crítica Cinematográfica, destinada aos alunos de Comunicação Social, que tem como objetivo precípuo a ilustração sobre o que isto significa e, também, para dar a conhecer os textos dos grandes críticos e pensadores da arte do filme. Mas, interessante observar, muitos alunos pensam que, num semestre, podem se tornar, matriculando-se, críticos de cinema. Ledo e ivo engano. A disciplina é útil para aqueles que realmente se interessam, como um primeiro passo, um empurrão, no sentido do despertar os vocacionados. A necessidade de se ter a habitualidade da contemplação fílmica é fundamental e para se conhecer cinema é preciso ver filmes e filmes. O que leva tempo. E ver com atenção, procurando estar sempre antenado com leituras paralelas de críticos qualificados - no Brasil, entre outros, e correndo o risco de omissão, considero Inácio Araújo, da Folha de São Paulo, um dos mais lúcidos e conscientes, pois possui, como poucos, sentido aguçado dos procedimentos cinematográficos, do  timing e, principalmente, da natureza específica da arte cinematográfica. Poderia dizer que Luiz Carlos Merten, este do Estadão, também é um excelente crítico. E na área propriamente dita da Teoria Cinematográfica o grande mestre é Ismail Xavier, ensaísta de erudição - seu livro O discurso cinematográfico é exemplar raro e quase ninguém no Brasil pensou a natureza do cinema como ele, ainda que se possa discordar de seus pontos de vista. Outro teórico que vale ressaltar e Fernão Ramos. Além dos críticos que surgiram com o advento da internet (Ruy Gardnier, Sérgio Alpendre, Marcelo Miranda, entre outros).

Em suma, deve-se deixar à viagem fílmica toda a sua componente de prazer se quisermos que não se transforme num calvário em direção à crucificação final da fábula e do respectivo discurso. O academismo e o preconceito são tão mortais para o cinema como para a vida.


11 fevereiro 2014

Surto 'underground' do cinema baiano

Lula em Meteorango Kid, de André Luiz Oliveira

Realizado em 1969, tendo, neste mesmo ano, no Festival de Brasília, recebido o Prêmio do Público e a Margarida de Prata da Central Católica de Cinema, Meteorango Kid, o Herói Intergalático, de André Luiz Oliveira, apesar de lançado em circuito baiano em 1970, somente dois anos depois, em 1972, consegue vaga no circuito do eixo Rio-São Paulo.

Influenciado pelo cinema marginal paulista, cujo carro-chefe é O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, Meteorango, ao contrário dos outros filmes do Ciclo Baiano de Cinema – que tem uma proposta de retratar o drama do homem brasileiro – é uma obra que procura mostrar a angústia da geração de seu autor, que, antes de completar duas décadas de existência, é marcada pela censura, pela ditadura, pelo total cerceamento da liberdade de expressão no campo social, principalmente após a eclosão do Ato Institucional número 5. Meteorango é, por conseguinte, um filme à procura de uma saída para a sua geração, que, sufocada, submerge no universo das drogas. O filme encerra a dúvida, o desespero, a incerteza, tudo, porém, carregado com humor.

No dia de seu aniversário, Lula passa por experiências reais e fantásticas: pela manhã transforma-se em batmãe e surra os pais; na escola, assiste a uma assembléia que não o convence; realiza um filme de Tarzan e comparece ao enterro de um amigo homossexual, recordando-se dele em vida. E, finalmente, participa de uma sessão barra pesada de maconha e, na rua, é atacado por um vampiro no Pelourinho. Ao chegar em casa, seus familiares aguardam-no para uma festa. Mas Lula permanece como que crucificado no meio das palmeiras – como no início.

A influência de Meteorango é muito forte, principalmente para os cineasta que aparecem na nova geração dos anos 70 com a explosão do boom superoitista. Edgard Navarro, em Talento Demais, rende homenagem ao filme de André Luiz Oliveira, considerando-o a sua fonte de inspiração para se tornar cineasta.

Meteorango é, por um lado, é valioso como documento de uma época e de uma proposta de cinema, por outro não se sustenta como narrativa cinematográfica caracterizada por um roteiro cheio de falhas, ausência de um corpus estrutural, desequilíbrio entre seus momentos fortes e momentos fracos. Trata-se de uma obra experimental que denota a angústia da criação cinematográfica, sendo que a figura de Lula crucificado emblemática dos sentimentos de uma época.

Walter da Silveira, acompanhando o filme no Festival de Brasília, envia para a Tribuna da Bahia uma crítica entusiástica. Num trecho do copioso artigo, diz o crítico: “Nenhum outro filme em Brasília mereceria realmente o amor dos jovens como este. Não porque seu  autor tenha 21 anos e tente compor-se fisicamente como um hippie. Mas porque Meteorango Kid exprime, em insólito e em audacioso, por instantes em insegurança, os arrebatamentos da juventude. De uma sinceridade absoluta, podendo-se admitir que nela haja  muito de confessional, espécie de autobiografia interior, atreve-se a uma série de denúncias que, por sua firme lucidez, não se diriam conscientizadas pelo autor tão abstraído do real de sua vida aparente, mas que, ligadas umas às outras, o definem e marcam como um retratista fiel das angústias juvenis, das suas causas e conseqüências.”

Não obstante o entusiasmo do exegeta cinematográfico baiano, a verdade é que Meteorango Kid, o herói intergalático tem, hoje, importância de documento, conservando-se, apenas, nesse sentido, pois obra datada e circunstancial. O tempo continua a ser o melhor juiz na avaliação da obra cinematográfica. Muitos filmes, aclamados como obras-primas, revistos posteriormente, revelam-se defasados, datados, sem a permanência característica dos grandes clássicos.

Se Meteorango Kid envelhece, Caveira My Friend atualmente é, por assim dizer, apenas uma peça de arqueologia. Álvaro Guimarães, na ânsia de criar algo novo, “Arrebentar com as estruturas da linguagem”, consegue dar a Caveira My Friend a sua efemeridade e circunstancialidade. Por outro lado, não se pode negar o seu valor de documento: documento de uma mentalidade, de um estilo de vanguarda, de uma vontade de extrapolar os limites aristotélicos das unidades de lugar, ação e tempo e explodir colorido, como se proclama à época.  Há um outro filme, desta época, A Construção da Morte, de Orlando Senna, que se pensou inacabado. A publicação de O Homem da Montanha, biografia deste cineasta escrita pelo jornalista Hermes Leal, no entanto, revela que o filme foi, sim, concluído, mas de um seus produtores, Braga Neto, receoso por causa do Ato Institucional número 5 de 13 de dezembro de 1968, que então se instaura no país, destrói seus negativos, enviando-o a uma porção de pessoas com o recado de por fim a eles.

Em 1970, José Frazão conhece Deolindo Checcucci, diretor de teatro, e, juntos, resolvem fazer um filme: Akpalô, chamando para iluminá-lo o fotográfo Vito Diniz. Vive-se, neste período, a efervescência do Flower Power, a filosofia da paz e do amor, , do “Faça amor, mas não a guerra”, e o filme de Frazão/Checcucci reflete bem a época e sua mentalidade. Não se quer mais, como no Ciclo Baiano de Cinema e, por extensão, no Cinema Novo, fazer um cinema engajado que reflita os problemas sociais, políticos, os fenômenos da sociedade na sua exterioridade. Esmagados no processo de criação pelo A.I.-5, os cineastas se encontram proibidos de enfocar a realidade do país. Resta, portanto, o escapismo.

Assim, Akpalô, visto apenas numa única sessão especial no antigo cinema Liceu em 1971, é o reflexo dessa turbulência caótica e o filme, a rigor, é uma viagem. Uma espécie esdrúxula  de extra-terrestre, que se corporifica como homem (Sílvio Varjão) passa 24 horas em Salvador, paquerando garotas, contemplando a natureza, e viajando interiormente pelos efeitos das drogas. No elenco, Armindo Jorge Bião, Anecy Rocha, entre outros, com iluminação inspirada de Vito Diniz. O filme demonstra a incapacidade de seus autores exercitar o ritmo cinematográfico, predominando as tomadas longas, demoradas, sem o corte preciso no momento exato de sua evolução dramatúrgica. Mas Akpalô, com o tempo, se perde e os seus negativos desapareceram.

O longa-metragem seguinte do surto underground é O Anjo Negro (1972), de José Umberto, obra compromissada com a apologia da cultura negra como força mítica que paira solene no patriarcado colonial da Bahia. É um filme que ao mesmo tempo que tenta um exercício de cinema procura desenvolver o ponto alegórico no qual se insere a negritude como força avassaladora que rompe os alicerces de uma família de tendências coloniais. Mário Gusmão corporifica esta força, que, como o anjo pasoliniano de Teorena, invade uma célula mater com a virulência de um tsunami.

É preciso, porém, ressaltar, um filme underground não devidamente valorizado nos compêndios sobre o chamado Cinema Marginal, talvez por se trata de um média-metragem. Trata-se de Voo Interrompido, de José Umberto, que, realizado em 1969, é considerado por Álvaro Guimarães, o diretor de Caveira My Friend, o “primeiro filme realmente underground do cinema baiano”. Voo interrompido tem características desse cinema que tenta rasgar a narrativa tradicional clássica e linear e tratar a escrita fílmica como um poema na esteira da ideia de Píer Paolo Pasolini ao contrapor um “cinema de prosa” e um “cinema de poesia”. O elo sintático de Voo interrompido, isto é, sua linguagem, é que assume predominância diante de sua fabulação. Uma mulher interiorana abandona a sua cidade interiorana e vem tentar a sobre na capital, tornando-se uma empregada doméstica pela manhã e uma prostituta à noite. Resta-lhe, apenas, depois de tantos desatinos e sofrimentos, o suicídio. O filme, assim contado, como todo filme que se preza, não pode oferecer uma ideia próxima do que realmente assume quando visto, pois uma obra que é expressão de sua linguagem específica.  Aliás, José Umberto faz Voo interrompido logo depois de dirigir, em parceria com André Luiz Oliveira, um curta que obtém um prêmio importante no Festival Jornal do Brasil/Mesbla: O Doce Amargo (1968).

Em O Anjo Negro, Hércules (Raimundo Mattos), um juiz de futebol, sua mulher (Eliana Tosta), dois sobrinhos jovens (Roberto Prates Maia e Frida Guttman), o sogro (Eládio de Freitas), e dois empregados, moram numa casa grande  de estilo colonial (o Museu Wanderley de Pinho). Em crise em sua profissão e na vida conjugal, Hércules vê surgir, de repente, e misteriosamente, Calunga (Mário Gusmão), um emissário místico de afinidade com os exus, espontâneo, brincalhão, síntese da cultura africana. Sua força dionisíaca, barroca, carnavalesca, selvagem, profana, sacode os alicerces da família patriarcal. Estabelecendo o caos, a desordem, o sabbat negro, propõe um novo mundo – aberto à lucidez de cada um – de alegria e felicidade.