Lula em Meteorango Kid, de André Luiz Oliveira
Realizado em 1969, tendo, neste
mesmo ano, no Festival de Brasília, recebido o Prêmio do Público e a Margarida
de Prata da Central Católica de Cinema, Meteorango Kid, o Herói Intergalático,
de André Luiz Oliveira, apesar de lançado em circuito baiano em 1970, somente
dois anos depois, em 1972, consegue vaga no circuito do eixo Rio-São Paulo.
Influenciado pelo cinema marginal
paulista, cujo carro-chefe é O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério
Sganzerla, Meteorango, ao contrário dos outros filmes do Ciclo Baiano de Cinema
– que tem uma proposta de retratar o drama do homem brasileiro – é uma obra que
procura mostrar a angústia da geração de seu autor, que, antes de completar
duas décadas de existência, é marcada pela censura, pela ditadura, pelo total cerceamento
da liberdade de expressão no campo social, principalmente após a eclosão do Ato
Institucional número 5. Meteorango é, por conseguinte, um filme à procura de
uma saída para a sua geração, que, sufocada, submerge no universo das drogas. O
filme encerra a dúvida, o desespero, a incerteza, tudo, porém, carregado com
humor.
No dia de seu aniversário, Lula
passa por experiências reais e fantásticas: pela manhã transforma-se em batmãe
e surra os pais; na escola, assiste a uma assembléia que não o convence;
realiza um filme de Tarzan e comparece ao enterro de um amigo homossexual,
recordando-se dele em vida. E,
finalmente, participa de uma sessão barra pesada de maconha e, na rua, é
atacado por um vampiro no Pelourinho. Ao chegar em casa, seus familiares aguardam-no
para uma festa. Mas Lula permanece como que crucificado no meio das palmeiras –
como no início.
A influência de Meteorango é
muito forte, principalmente para os cineasta que aparecem na nova geração dos
anos 70 com a explosão do boom superoitista. Edgard Navarro, em Talento Demais,
rende homenagem ao filme de André Luiz Oliveira, considerando-o a sua fonte de
inspiração para se tornar cineasta.
Meteorango é, por um lado, é
valioso como documento de uma época e de uma proposta de cinema, por outro não
se sustenta como narrativa cinematográfica caracterizada por um roteiro cheio
de falhas, ausência de um corpus estrutural, desequilíbrio entre seus momentos
fortes e momentos fracos. Trata-se de uma obra experimental que denota a
angústia da criação cinematográfica, sendo que a figura de Lula crucificado
emblemática dos sentimentos de uma época.
Walter da Silveira, acompanhando
o filme no Festival de Brasília, envia para a Tribuna da Bahia uma crítica
entusiástica. Num trecho do copioso artigo, diz o crítico: “Nenhum outro filme
em Brasília mereceria realmente o amor dos jovens como este. Não porque
seu autor tenha 21 anos e tente
compor-se fisicamente como um hippie. Mas porque Meteorango Kid exprime, em insólito
e em audacioso, por instantes em insegurança, os arrebatamentos da juventude.
De uma sinceridade absoluta, podendo-se admitir que nela haja muito de
confessional, espécie de autobiografia interior, atreve-se a uma série de
denúncias que, por sua firme lucidez, não se diriam conscientizadas pelo autor
tão abstraído do real de sua vida aparente, mas que, ligadas umas às outras, o
definem e marcam como um retratista fiel das angústias juvenis, das suas causas
e conseqüências.”
Não obstante o entusiasmo do
exegeta cinematográfico baiano, a verdade é que Meteorango Kid, o herói
intergalático tem, hoje, importância de documento, conservando-se, apenas,
nesse sentido, pois obra datada e circunstancial. O tempo continua a ser o
melhor juiz na avaliação da obra cinematográfica. Muitos filmes, aclamados como
obras-primas, revistos posteriormente, revelam-se defasados, datados, sem a
permanência característica dos grandes clássicos.
Se Meteorango Kid envelhece,
Caveira My Friend atualmente é, por assim dizer, apenas uma peça de
arqueologia. Álvaro Guimarães, na ânsia de criar algo novo, “Arrebentar com as
estruturas da linguagem”, consegue dar a Caveira My Friend a sua efemeridade e
circunstancialidade. Por outro lado, não se pode negar o seu valor de
documento: documento de uma mentalidade, de um estilo de vanguarda, de uma
vontade de extrapolar os limites aristotélicos das unidades de lugar, ação e
tempo e explodir colorido, como se proclama à época. Há um outro filme, desta época, A Construção
da Morte, de Orlando Senna, que se pensou inacabado. A publicação de O Homem da
Montanha, biografia deste cineasta escrita pelo jornalista Hermes Leal, no
entanto, revela que o filme foi, sim, concluído, mas de um seus produtores,
Braga Neto, receoso por causa do Ato Institucional número 5 de 13 de dezembro de
1968, que então se instaura no país, destrói seus negativos, enviando-o a uma
porção de pessoas com o recado de por fim a eles.
Em 1970, José Frazão conhece
Deolindo Checcucci, diretor de teatro, e, juntos, resolvem fazer um filme:
Akpalô, chamando para iluminá-lo o fotográfo Vito Diniz. Vive-se, neste
período, a efervescência do Flower Power, a filosofia da paz e do amor, , do
“Faça amor, mas não a guerra”, e o filme de Frazão/Checcucci reflete bem a
época e sua mentalidade. Não se quer mais, como no Ciclo Baiano de Cinema e,
por extensão, no Cinema Novo, fazer um cinema engajado que reflita os problemas
sociais, políticos, os fenômenos da sociedade na sua exterioridade. Esmagados
no processo de criação pelo A.I.-5, os cineastas se encontram proibidos de enfocar
a realidade do país. Resta, portanto, o escapismo.
Assim, Akpalô, visto apenas numa
única sessão especial no antigo cinema Liceu em 1971, é o reflexo dessa
turbulência caótica e o filme, a rigor, é uma viagem. Uma espécie
esdrúxula de extra-terrestre, que se
corporifica como homem (Sílvio Varjão) passa 24 horas em Salvador, paquerando
garotas, contemplando a natureza, e viajando interiormente pelos efeitos das
drogas. No elenco, Armindo Jorge Bião, Anecy Rocha, entre outros, com
iluminação inspirada de Vito Diniz. O filme demonstra a incapacidade de seus
autores exercitar o ritmo cinematográfico, predominando as tomadas longas,
demoradas, sem o corte preciso no momento exato de sua evolução dramatúrgica.
Mas Akpalô, com o tempo, se perde e os seus negativos desapareceram.
O longa-metragem seguinte do
surto underground é O Anjo Negro (1972), de José Umberto, obra compromissada
com a apologia da cultura negra como força mítica que paira solene no
patriarcado colonial da Bahia. É um filme que ao mesmo tempo que tenta um
exercício de cinema procura desenvolver o ponto alegórico no qual se insere a
negritude como força avassaladora que rompe os alicerces de uma família de
tendências coloniais. Mário Gusmão corporifica esta força, que, como o anjo
pasoliniano de Teorena, invade uma célula mater com a virulência de um tsunami.
É preciso, porém, ressaltar, um
filme underground não devidamente valorizado nos compêndios sobre o chamado
Cinema Marginal, talvez por se trata de um média-metragem. Trata-se de Voo
Interrompido, de José Umberto, que, realizado em 1969, é considerado por Álvaro
Guimarães, o diretor de Caveira My Friend, o “primeiro filme realmente
underground do cinema baiano”. Voo interrompido tem características desse
cinema que tenta rasgar a narrativa tradicional clássica e linear e tratar a
escrita fílmica como um poema na esteira da ideia de Píer Paolo Pasolini ao
contrapor um “cinema de prosa” e um “cinema de poesia”. O elo sintático de Voo
interrompido, isto é, sua linguagem, é que assume predominância diante de sua
fabulação. Uma mulher interiorana abandona a sua cidade interiorana e vem
tentar a sobre na capital, tornando-se uma empregada doméstica pela manhã e uma
prostituta à noite. Resta-lhe, apenas, depois de tantos desatinos e sofrimentos,
o suicídio. O filme, assim contado, como todo filme que se preza, não pode
oferecer uma ideia próxima do que realmente assume quando visto, pois uma obra
que é expressão de sua linguagem específica.
Aliás, José Umberto faz Voo interrompido logo depois de dirigir, em
parceria com André Luiz Oliveira, um curta que obtém um prêmio importante no
Festival Jornal do Brasil/Mesbla: O Doce Amargo (1968).
Em O Anjo Negro, Hércules
(Raimundo Mattos), um juiz de futebol, sua mulher (Eliana Tosta), dois
sobrinhos jovens (Roberto Prates Maia e Frida Guttman), o sogro (Eládio de
Freitas), e dois empregados, moram numa casa grande de estilo colonial (o Museu Wanderley de
Pinho). Em crise em sua profissão e na vida conjugal, Hércules vê surgir, de
repente, e misteriosamente, Calunga (Mário Gusmão), um emissário místico de
afinidade com os exus, espontâneo, brincalhão, síntese da cultura africana. Sua
força dionisíaca, barroca, carnavalesca, selvagem, profana, sacode os alicerces
da família patriarcal. Estabelecendo o caos, a desordem, o sabbat negro, propõe
um novo mundo – aberto à lucidez de cada um – de alegria e felicidade.
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