Dezembro de
1979. Nesta época, estava no Rio de Janeiro e precisei ir a São Paulo resolver
um negócio. Hospedei-me no Hotel Central, que fica na Avenida São João. Mas não
pude solucionar a questão que me levou a SP pelo fato de a pessoa, com a qual
deveria me encontrar, ainda que combinado o encontro, teve de viajar de
repente. Assim, restei-me sozinho, e sem fazer nada, no citado hotel.
Comentarista cinematográfico diário do jornal Tribuna da Bahia, lembrei-me de ter recebido uma carta do cineasta
Juan Bajon (que não conhecia) sobre o lançamento de seu filme, O estrangulador de mulheres, em Salvador. Visto o
filme, e considerando a gentil missiva, recortei a página, na qual estava
estampada minha crítica, e a mandei ao realizador, pois tinha gostado do filme,
principalmente pelo seu lado bizarro e insólito (enterro de baratas etc). E,
vale ressaltar, nunca enviei nada para ninguém. Nunca tive o hábito de recortar
artigos para enviá-los. Mas, surpreendentemente, talvez pela carta pessoal - o
que não é também hábito dos realizadores, bastando aos críticos os releases das distribuidoras. Bajon me
respondeu em várias folhas datilografadas (naquele tempo computador era peça de
Millor Fernandes).
Assim, no
quarto do Hotel Central, vi, no criado-mudo, um grosso catálogo de telefone, e
resolvi procurar o nome de Juan Bajon. Qual não foi a minha surpresa quando,
achando-o, telefonei e ele, muito receptivo, disse-me que o esperasse em cinco
minutos. Menos do que isso, o telefone toca me anunciado que, na portaria,
tinha uma pessoa como o nome de Juan Bajon a me esperar. Desci e o encontrei.
Um rapaz em torno de trinta anos, chinês, que me recebeu e maneira efusiva.
Fomos a um bar na Avenida São João, e tomei algumas cervejas, ainda que Bajon
não bebesse. Convidou-me, então, para almoçar no bairro da Liberdade, onde mora
quase toda a colônia de nipônicos. Conversamos bastante e, de tarde, levou-me à
rua do Triunpho, lugar do nascimento e estabelecimento da famosa Boca do Lixo,
quando ele me apresentou a vários cineastas. Resolvi me sentar num daqueles
bares, e, totalmente em ócio, continuei a tomar minhas cervejas, desfrutando do
ambiente. A las cinco de la tarde,
Juan Bajon se despediu, convidando para me levar ao hotel. Fiquei, no entanto,
a continuar o processo etílico começado. Mas disse, taxativo, que iria, no
outro dia, me apanhar às dez horas no hotel para irmos ao apartamento de Rubem
Biáfora, que disse ser seu amigo. Gostei da idéia, pois Biáfora, para mim, aos
29 anos, era um mito.
Durante a
rolagem de pensamentos que ocorre sempre quando se bebe sozinho, achei que
Bajon, apesar de simpático, era um anticomunista feroz. Esquerdista que era,
não gostei muito disso. Contou-me que sua família, por burguesa, tinha sido massacrada
pelas tropas de Mao-Tsé-tung. Estava, no entanto, mais preocupado em conhecer o
famoso Biáfora. Fui para o hotel e ainda, neste, tomei, no quarto, mais
cervejas, compradas em latas grossas na avenida - ainda não havia as latinhas
leves e práticas. Acordei de ressaca pelo telefone, cujo recepcionista me
informava da chegada de um tal de Juan Bajon. Falei com ele e pedi,
desculpando-me, para que esperasse dez minutos, pois tinha, ainda, que tomar
banho.
Fomos
andando para o apartamento do severo crítico. Antes de entrar, Bajon se dirigiu
a um telefone público, comunicando a nossa subida. E ao sairmos do elevador, já
estava Biáfora a nos esperar. Não podia acreditar: Gervásio Rubem Biáfora em pessoa. Entramos
e ficamos a conversar. Biáfora me recebeu com muita gentileza e disse ter
gostado de meu comentário sobre O
estripador de mulheres. Percebi, então, que Bajon realmente tinha amizade
com o crítico. Irônico, lembro-me que falou mal da frase de Paulo Emílio Salles
Gomes, quando afirmou que o pior filme brasileiro era melhor do que qualquer
filme estrangeiro, achando-a uma bobajada (sic). Não estou, aqui, fazendo juízo
de valor nem concordando com o crítico, mas constatando fatos. Recordo-me que
contou que dias atrás tinha ido a um cinema ver Procura
insaciável (Taking off), de Milos Forman, com sua colega do Estado
de São Paulo, Póla Vartuk - que já morreu, e ficou estupefato quando esta, na
sequência em que todos fumam maconha, engoliu as orelhas de tanto rir. Achou
que uma senhora daquela idade não deveria ficar tão efusiva. Mas sempre rindo.
Muita conversa rolou até que falei de Walter Hugo Khoury. Biáfora, então, disse
que era seu vizinho e telefonou para ele a perguntar se poderia dar um pulo
acompanhado de um jornalista baiano. Khoury concordou e pediu, apenas, meia
hora, pois estava na banheira. Biáfora me disse que, quando o realizador de Noite vazia acordava, tinha o hábito de
ficar na banheira por um bom período de tempo.
Subindo o
elevador, a porta deste se abre diretamente no apartamento de Khoury, não
havendo, portanto, hall. Khoury nos
recebeu no seu imenso espaço, e eu, Biáfora, Bajon, conversamos bastante,
apesar de certo acanhamento característico de minha personalidade, que se
poderia traduzir por timidez. De repente, de um dos quartos, aparece Sandra
Bréa, que estava trabalhando com ele em O convite ao prazer. Finda a
visita, estávamos já na rua, quando Biáfora nos convida para almoçar num
restaurante italiano ali perto. Fomos. Iria viajar à meia-noite de ônibus para
voltar ao Rio de Janeiro e já tinha fechado a conta no Hotel Central. Depois do
almoço, resolvi me despedir para andar pelas ruas de São Paulo até o anoitecer,
quando iria para a rodoviária esperar o ônibus. Ciente do fato, Biáfora,
terminada a refeição, convidou-me para descansar um pouco em seu apartamento.
Bajon, lembro-me, não nos acompanhou porque estava com um parente muito doente.
Na entrada do prédio, o porteiro disse que tinha ali uma encomenda para ele.
Era um álbum de fotografias americano, fotografias de atrizes famosas, as divas
do cinema, como Greta Garbo, em imagens ricamente iluminadas. Já no
apartamento, não tive vontade de descansar, e Biáfora me mostrou os cadernos
manuscritos onde anotava os filmes que via, com fichas completíssimas,
comentários, etc. Quando falei de minha admiração por Moniz Vianna, Biáfora,
incontinenti, pegou do telefone e ligou para ele, que concordou em me receber
quando estivesse no Rio. Perguntei como, antigamente, conseguia as fichas
técnicas já que as distribuidoras não as forneciam assim tão completas.
Disse-me que anotava tudo dentro do cinema. Via o filme e, depois, na outra
sessão, ficava a anotar.
Bem, para
quem não sabe, Gervásio Rubem Biáfora foi um dos grandes críticos de cinema dos
anos 50, 60 e 70. Também realizador, dirigiu, entre outros, dois filmes que
merecem, porque muito bons, uma revisão: Ravina e O quarto, este último, para mim,
o seu melhor trabalho, que foi injustamente desprezado pela crítica ideológica.
P.S: Gustavo
Dahl traça um excelente perfil de Rubem Biáfora nos dois últimos números da
revista Filme/Cultura. Aqui:http://filmecultura.org.br/categoria/edicoes/
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