Mel Ferrer e Ingrid Bergman em As estranhas coisas de Paris (Elena et les homme), de Jean Tenoir |
Com o advento do VHS, do laser-disc, do DVD,
e, agora, com a possibilidade de se baixar quase tudo da internet, a pergunta
que se quer fazer é a seguinte: ainda haveria condições de ser ter um clube de
cinema nos moldes do de Walter da Silveira nas décadas de 50 e 60?
Naquela época, difícil era ver certos filmes,
que ficavam restritos às cinematecas. O mercado exibidor se restringia aos
lançamentos e as constantes reprises de filmes de sucesso. Como, no período que
antecedeu o surgimento dos novos suportes, assistir aos filmes neo-realistas,
aos do expressionismo alemão, às obras mais independentes de cinematografias
desconhecidas, às obras do realismo poético francês, à vanguarda da estética da
arte muda? O único jeito era a viagem e, assim mesmo, o mais certo seria ao
exterior, às cinematecas de Nova York ou a de Paris, além de outras importantes
da Europa. Aqui no Brasil, existiam, mas ainda incipientes, as cinematecas do
Rio e de São Paulo (esta com um acervo mais versátil). Salvador não tinha
nenhuma possibilidade de constituir uma cinemateca.
A importância de Walter da Silveira (que boa
parte da nova geração não sabe de quem se trata, apesar de nome de sala
alternativa nos Barris) foi justamente a de, com a fundação do Clube de Cinema
da Bahia, trazer filmes especiais, essenciais na evolução da linguagem e da
estética cinematográficas. Walter da Silveira fez ver, aos baianos de província
(mas uma província muito agradável bem diferente da cidade engarrafada de
hoje), que o cinema, além de um bom divertimento, era, também, a expressão de
uma arte. O próprio Glauber Rocha, quando de sua morte, em novembro de 1970, em
artigo para o Jornal da Bahia, confessa que o ensaísta fora seu grande mestre,
que aprendeu a ver cinema através das palavras de Walter da Silveira. E conta,
num artigo, o esporo que este lhe deu, quando, numa exibição de "O
encouraçado Potemkin", numa sessão matutina no cinema Liceu, conversava
durante a exibição com um amigo. Walter, percebendo o "arruído",
deu-lhe tremendo esporo, segundo palavras do próprio Glauber que, conta, nunca
mais falou durante a projeção de um filme, tal a indignação do mestre diante do
jovem tagarela.
Atualmente, no entanto, com a facilidade
existente, pode-se ver um raro filme antigo, a exemplo de "Ordet"
(1941), de Carl Theodor Dreyer, famoso cineasta dinamarquês, em boa cópia em DVD. Este filme, há
poucos anos, somente seria possível ser contemplado na cinemateca de Henry
Langlois, em Paris. Outro
dia, vim saber, que um conhecido baixou da internet, em cópia decente e
legendada,
As estranhas coisas de Paris (Elena et les
hommes, 1956), com a bela Ingrid Bergman e Jean Marais, filme difícil de
se ver (nunca passa na televisão e não tem no disquinho).
Há dois anos, tentou-se implantar um cineclube
na Faculdade de Comunicação. Com excelente programação. Retrospectivas de
Kubrick, Buñuel, etc. Mas os alunos antes de entrar perguntavam se os filmes
estavam disponíveis em DVD. E
davam meia-volta, volver.
Já se contou aqui que este colunista, uma vez
no Rio, ao saber da exibição de Ladrões de bicicleta na Cinemateca
do Museu de Arte Moderna, em única sessão, ainda que mal tivesse chegado à
cidade, correu para lá. Finda a exibição, chuva torrencial fê-lo ficar encharcado
e voltar a pé para o hotel (a cidade engarrafada, tudo parado). Nos tempos
atuais, faria o mesmo sacrifício? Claro que não, pois o DVD de Ladri di
biciclette está disponível não somente para ser adquirido, mas também nas
melhores locadoras da cidade.
Qual a função do cineclubismo nos dias atuais?
Walter da Silveira, por exemplo, sobre ser um dos maiores ensaístas de cinema
do Brasil (na Bahia ninguém nunca lhe chegou perto), era um homem, verdade se
diga, à antiga, de tom grave, circunspeto, com uma gestualística bem diversa da
juventude atual e, mesmo, dos menos jovens que atualmente constituem o meio
circundante e intelectual, universitário. A figura de Walter faz lembrar
aqueles antigos mestres universitários, principalmente os professores da Faculdade
de Direito (no acento vocal, nas pausas, na maneira de expor o assunto, um
"magister dixit").
A importância do cinema, antes tido como mero
entretenimento, foi reconhecida pelas universidades, que incorporaram o seu
ensino na maioria delas espalhadas pelo mundo. Porque se constatou que o
imaginário do homem do século XX foi completamente contaminado pelas imagens em
movimento, que interferiram no seu comportamento, na sua maneira de ser, nos
hábitos e costumes. O cinema tem uma força de convencimento que ultrapassa as
demais artes. Não é exagero se dizer que muitas pessoas se formaram através da
visão de filmes. O cineclubismo, para isso, exerceu, sem dúvida, forte
influência. Mas a indústria cultural hollywoodiano se, antes, tinha uma
produção média notável, atualmente se restringe, honradas as exceções de praxe,
aos efeitos especiais e, agora, à Terceira Dimensão como o “Avatar” do futuro
do cinema, perdendo este o seu humanismo e a possibilidade de veículo de
expressão, de idéias, de visão de mundo.
Mas acontece que o mundo mudou e, com ele, a
cultura. Houve um papel importantíssimo exercido por Walter da Silveira. Os
realizadores que se aventuram na captação das imagens em movimento são
contemporâneos de um cinema digital. Filmes são feitos até pelos telefones
celulares. O Clube de Cinema da Bahia, portanto, não poderia existir - nem
teria razão de ser - nesta chamada contemporaneidade. A própria psicologia de
recepção da obra cinematográfica mudou. Bem, são reflexões ao acaso.
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