“A função do
crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas
prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o leem,
o impacto da obra de arte.”
ANDRÉ BAZIN
Creio que a tarefa dos críticos especializados em cinema –
não considerando, aqui, os comentaristas meros aficionados – é a de atuar como
mediadores entre a obra cinematográfica e o espectador comum, oferecendo um
modelo de leitura da primeira e sublinhando os eventuais valores poéticos nela
presentes. Refiro-me aos críticos que atuam em jornais e revistas ou que
escrevem em suplementos culturais cujo público alvo não se restringe ao meio
acadêmico. A função daqueles que escrevem sobre cinema é ajudar – e não complicar
– ao leitor a percorrer o itinerário do filme com um mínimo de conhecimento
lingüístico – de modo a permitir que se reconheça, durante o trajeto, aquilo que
é importante daquilo que não o é. Uma função, portanto, que, mesmo antes de se
reportar à apreciação estética da obra considerada no seu conjunto, incide
sobre a sua sucessiva racionalização, quer dizer, a tradução em termos
lógico-discursivos do sentido poético que ela exprime através dos procedimentos
de significação que lhe são próprios.
(Percorro um itinerário de colunista no jornal Tribuna da Bahia desde agosto de 1974.
Trinta e seis anos que se completam no ano em curso. Neste período,
tenho tentado escrever para o leitor, mas sempre procurando salientar que o
filme somente pode se consolidar como obra expressiva, se houver, por parte do
realizador, um ato criador na manipulação dos elementos da linguagem
cinematográfica. De boas intenções, de boas idéias, o inferno está cheio. Um
bom roteiro somente pode ser transformado em filme dotado de qualidades
específicas, quando existe o talento natural do cineasta na manipulação do
processo sintático da lingüística fílmica. Se a crítica do passado sempre
estava a procurar o elo semântico da
obra cinematográfica, a crítica, a partir dos anos 60, compreendendo, afinal, que
o cinema é uma linguagem, concentrou-se na procura do elo sintático, mas este
sempre associado ao elo semântico, pois os dois elos são indissociáveis.
Sempre que não se queira ficar pelo desempenho de uma mera
atividade de informação cronística – como sói acontecer no jornalismo cultural
baiano, o crítico de cinema deve valorizar a obra examinada, fazendo emergir,
dela, as suas valências ocultas e interpretando-as em ligação com o macro-contexto
cultural em que a primeira vê a luz. Na condição, naturalmente, de que tal ação
seja desempenhada com discrição, a fim de garantir o respeito pelo texto
fílmico contra o perigo de leituras forçadas e de distorções generalizadas –
muito comum, aliás, nos neófitos que se arvoram em críticos nesta província da
Bahia. De resto, a própria polivalência que caracteriza o filme como sistema
orgânico de sinais susceptível de múltiplas leituras, favorece a pluralidade
interpretativa. Portanto, se o espectador normal se limita geralmente a ver um filme, o crítico lê-o por ofício e ajuda o primeiro a
fazer outro tanto.
Porém, nesta sua função de intérprete e guia, o crítico de
cinema deve contar com uma dificuldade resultante da natureza não-homogênea da
linguagem escrita por ele utilizada relativamente à linguagem visual empregada
pelo filme. Dificuldade esta que o intérprete dos textos literários não
conhece, podendo entremear tranqüilamente o seu discurso crítico com o do texto
analisado em virtude da identidade lingüística que preside a ambas as manifestações
expressivas. Isto se mostra tanto mais intrigante quanto mais presente se tiver
o caráter narrativo do filme, caráter assente nas outras artes visuais que
também têm as suas práticas críticas correspondentes, não obstante serem
igualmente irredutíveis às formas da linguagem verbal. A complicar ainda mais o
caso está a natureza de linguagem sem
língua que é típica do filme. De fato, a partir do momento em que não
existe um sistema abstrato pré-existente ao filme, mas, apenas, obras fílmicas
isoladas, não parece possível – como acontece, pelo contrário, na análise dos
textos literários – estimar o eventual afastamento, entre a parole-film e a langue-cinema, afastamento do qual derivaria a poeticidade do texto
fílmico. Trocando em miúdos: é impossível distinguir entre um uso banal ou
cotidiano da linguagem cinematográfica e uma sua utilização que obedeça a
propósitos artísticos, e isto pela simples razão de que, no filme, o plano
de denotação coexiste sempre com o da
conotação e que, por conseguinte, não existe um grau zero da escrita
fílmica a partir do qual se possam avaliar os eventuais afastamentos
efetuados em sentido expressivo pela linguagem examinada.
Ainda que sem emitir, mas, nas entrelinhas, já emitindo,
juízos valorativos, não acredito numa cientificização da crítica
cinematográfica, quando o analista mais se assemelha a um cientista a procurar
pacientemente significados na obra cinematográfica e, com isso, destruindo não
apenas a emoção do filme – essencial em toda obra que se queira de arte – como
também o prazer de ler o resultado da investigação. Sigo, desde sempre, as
palavras do eminente jurista Vicente Rao, quando escreveu no volume 60 de seus
comentários ao Código de Processo Civil: “A clareza tem o direito de fazer
parecer superficial, mas que não se infira desse aviso a conveniência de ser
obscuro para parecer mais profundo.”
O grande crítico José Lino Grünewald gostava de dizer:
'Cinema se aprende indo ao cinema'. Há de se adquirir o hábito de ver filmes,
assim como se adquire o hábito de ler. É um processo que leva tempo o
conhecimento cinematográfico. Existe, no curso universitário, uma disciplina
chamada Crítica Cinematográfica, destinada aos alunos de Comunicação Social, que tem
como objetivo precípuo a ilustração sobre o que isto significa e, também, para
dar a conhecer os textos dos grandes críticos e pensadores da arte do
filme. Mas, interessante observar, muitos alunos pensam que, num semestre,
podem se tornar, matriculando-se, críticos de cinema. Ledo e ivo engano. A disciplina é útil para
aqueles que realmente se interessam, como um primeiro passo, um empurrão, no
sentido do despertar os vocacionados. A necessidade de se ter a habitualidade
da contemplação fílmica é fundamental e para se conhecer cinema é preciso ver
filmes e filmes. O que leva tempo. E ver com atenção, procurando estar sempre
antenado com leituras paralelas de críticos qualificados - no Brasil, entre
outros, e correndo o risco de omissão, considero Inácio Araújo, da Folha de São
Paulo, um dos mais lúcidos e conscientes, pois possui, como poucos, sentido
aguçado dos procedimentos cinematográficos, do
timing e, principalmente, da
natureza específica da arte cinematográfica. Poderia dizer que Luiz Carlos
Merten, este do Estadão, também é um
excelente crítico. E na área propriamente dita da Teoria Cinematográfica o
grande mestre é Ismail Xavier, ensaísta de erudição - seu livro O discurso cinematográfico é exemplar
raro e quase ninguém no Brasil pensou a natureza do cinema como ele, ainda que
se possa discordar de seus pontos de vista. Outro teórico que vale ressaltar e
Fernão Ramos. Além dos críticos que surgiram com o advento da internet (Ruy
Gardnier, Sérgio Alpendre, Marcelo Miranda, entre outros).
Em suma, deve-se deixar à viagem fílmica toda a sua
componente de prazer se quisermos que não se transforme num calvário em direção
à crucificação final da fábula e do respectivo discurso. O academismo e o
preconceito são tão mortais para o cinema como para a vida.
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