Lançado durante a 30 Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, O Cinema Político Italiano – Anos 60 e 70, com a presença da atriz Florinda Bolkan, musa e intérprete de alguns dos principais filmes do período, é um livro de entrevistas com 15 realizadores importantes que determinaram a inclusão da política no tratamento temático das obras cinematográficas da época retratada. A edição é da Cosacnaify, editora que vem se destacando pelo enriquecimento da escassa bibliografia em relação ao cinema no Brasil – e para citar somente dois exemplos: as reedições dos fundamentais Hitchcock/Truffaut - uma entrevista de longa duração, feita pelo cineasta da Nouvelle Vague com o mestre do suspense, que se constitui não apenas numa rigorosa análise perfuratriz da filmografia hitchcockiana mas, e sobretudo, um dos mais importantes livros já publicados sobre o processo de criação cinematográfica, e a de O século do cinema, reunião dos escritos de Glauber Rocha desde o início de sua carreira como crítico nos jornais baianos até os últimos e explosivos ensaios polêmicos.
As entrevistas de O Cinema Político Italiano – Anos 60 e 70 foram realizadas por duas pesquisadoras italianas: Ângela Prudenzi e Elisa Resegotti. Ainda que o cinema politizado italiano seja um assunto ainda a explorar em língua portuguesa, nada existindo, a rigor, sobre o tema, as entrevistas contidas no livro em questão são, por assim dizer, um vol d’oiseaux sobre uma época tão efervescente e com tantos frutos. Não fossem os textos de José Carlos Avellar, que aborda a influência da cinematografia italiana enragé na latino americana da época, o de Leon Cakoff, que procura situar as fontes propiciadoras da eclosão da política no cinema, e um panorama assinado pelas próprias pesquisadoras, a publicação deixaria a desejar àqueles que porventura quisessem uma análise de mais fôlego sobre o cinema italiano que procurou fazer filmes nos quais a política e a denúncia social se situaram como o móvel do registro fílmico.
E a fortuna crítica que o livro contém, com textos (e bons) de Cakoff, Avellar, Patrick Seri, Póla Vartuck, Orlando L. Fassoni, Ely Azeredo, Luciano Ramos, Luiz Zanin Oricchio, e Valéria Wally? Não dariam, estes textos, a substância que faltaria se não tivessem sido acoplados à edição. Sim e não. Porque são artigos escritos para jornais ao sabor das reprises dos filmes, mas não não ensaios, análise penetrante na questão. Sobre ser escritos competentes, trabalhados por críticos consagrados, não oferecem, no entanto, um propósito investigativo sobre o cinema político que se quer analisado. Mas, de qualquer forma e de qualquer maneira, as ressalvas aqui postas não invalidam a contribuição – e a necessidade – de O Cinema Político Italiano – Anos 60 e 70, que é um trabalho, ainda que panorâmico, meritório e elucidativo de um momento importante da história do filme.
O livro é lançado no ano da morte de um dos mais importantes autores do cinema político italiano, Gillo Pontecorvo, que não é entrevistado (talvez por estar já doente na época da colheita dos depoimentos). Pontecorvo, e que se faça aqui uma pequena homenagem, realizou dois filmes imprescindíveis na filmografia da cinematografia que se queria engajada: Queimada (1970), com Marlon Brando, visão quase didática, mas com força expressiva, de como o colonizador oprime o colonizado, e, principalmente A batalha de Argel (La Bataglia di Argeli, 1965), semidocumentário que retrata a luta pela libertação da Argélia do domíno francês. O filme tem uma poder impressionante de convencimento e Pontecorvo mistura a ficção com o documentário de tal forma que parecem indissociáveis.
Os entrevistados são Mario Monicelli (um dos maiores comediógrafos de seu país, entrevistado menos por sua obra completa, mas por causa de Os companheiros (I compagni, 1963), filme que causou frisson em toda a esquerda da época; dele, porém, entre outros, não se pode esquecer O incrível exército de Brancaleone e Os eternos desconhecidos), Dino Risi (não tão importante assim como cineasta enragé, abordando temas associados à política como um assunto qualquer a desenvolver), Francesco Rosi (talvez o mais brilhante e inovador de todos os cineastas do período), Bernardo Bertolucci, Vittorio Taviani (faltou colocar o nome de Paolo, pois Vittorio somente trabalha do lado do irmão, assim como os Irmãos Coen, os Irmãos Taviani), Ettore Scola, Marco Bellochio, Elio Petri (de A classe operário vai ao paraíso/La classe operaria va in paradiso, 1972, Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita/Indagine su um cittadino al di sopra di ogni sospetto, 1970, Condenado pela máfia/A ciascuno di suo, 1966, os três com Gian Maria Volonté, que poderia ser considerado o ‘muso’ do cinema político italiano), Damiano Damiani, Giuliano Montaldo (famoso por Sacco e Vazzetti, mas realizador mediano), Carlo Lizzani, Vittorio De Seta, Ugo Pirro, Francesco Mazelli, e Florinda Bolkan (que pouco tem a dizer).
A fonte do cinema político italiano dos anos 60 e 70 é o neo-realismo italiano de Cezare Zavatti, Vittorio De Sica, Roberto Rosselini, entre outros. A cinematografia feita na Itália já se revelou como uma das maiores do mundo, com expoentes como Luchino Visconti, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni. A origem do cinema moderno e, por extensão do cinema contemporâneo, se encontra nos filmes de Rossellini (principalmente Viagem à Itália/Viaggio in Itália, 1953, onde procede a uma espécie de desroteirização) e na desdramatização efetuada por Antonioni desde os anos 50 e mais notadamente na trilogia A aventura, A noite, O eclipse. Os cineastas italianos quebraram a narrativa clássica tradicional, moldada no esquema de David Wark Griffith (o realizador de O nascimento de uma nação, 1914, e Intolerância, 1916, considerado o pai da linguagem cinematográfica), estabelecendo um domínio anti-narrativo.
Além da lição neo-realista, havia, nos anos 60, uma efervescência muito grande em termos da procura de renovação da linguagem do filme, dando origem a surtos como a Nouvelle Vague, na França, Free Cinema, na Inglaterra, Cinema Novo, no Brasil, Cinema Underground Novaiorquino, etc. O cinema italiano do alvorecer da década de 60 já tinha abandonado quase o esquema neo-realista ou reciclado sua proposta. Havia as comédias, inúmeras, e, a partir de O bandido Giuliano/Salvatore Giuliano, 1961, de Francesco Rosi, dá-se o início dos filmes engajados, de denúncia, que fossem a fundo nas contradições da sociedade italiana, expondo-as algumas vezes como verdadeiras fraturas expostas.
Nesta particular, o realizador mais importante é Francesco Rosi, que, além de Salvatore Giuliano (não se pode desconhecer a dívida de Glauber Rocha com este filme, embora pouco citada). Rosi inovou o gênero (como de maneira imprópria está escrito na contra capa do livro), instituindo a interligação das fronteiras entre a ficção e o documentário, realizando obras ficcionais que faziam parece documentários. É o que se chamou de realidade reconstituída em filmes importantes (e inesquecíveis) como O caso Mattei (1971), com Gian Maria Volonté, o inédito no Brasil, mas aclamado no mundo inteiro, La mani sulla città (1963), sobre a destrutiva especulação imobiliária, Lucky Luciano (novamente com Volonté, em 1973), Cadáveres ilustres (Cadaveri eccelenti, 1976), que aborda a corrupção do judiciário italaino em denúncia de grande coragem, entre outros.
O cinema italiano, passado este período fértil, que vai até meados dos anos 70, entrou em crise, não resistindo às pressões da indústria cultural hollywoodiana. Com o desaparecimento dos grandes estetas (Visconti, Fellini, Antonioni), os italianos vivem da memória pretérita. O seu cinema política morreu – e de morte matada. Mas, também, há de se convir que os tempos são outros. Vive-se num mundo globalizado, individualista, consumista in extremis. Neste ponto, o aparecimento de um livro como O Cinema Político Italiano, além de servir como exemplo de uma época fervilhante de idéias e participação, na qual havia ainda o sonho, que não tinha acabado, feitas as ressalvas acima citadas, é obra que se lê com prazer e até com saudade.
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