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20 agosto 2013

Intriga Internacional


Filme-síntese de Alfred Hitchcock, obra-prima (se é possível que um autor tenha mais de uma), “Intriga internacional” (“North by Northwest”), lançado nos Estados Unidos em 17 de julho de 1959, acaba de completar, semana passada, 54 anos de existência.

Realizado entre “Um corpo que cai” (“Vertigo”, 1958) e “Psicose” (“Psycho”, 1960), “North by Northwest” é, a rigor, a narrativa de uma iniciação onde o herói é uma criatura de ficção - Roger Thornhill/Cary Grant - que se revolta contra um destino imposto pelas circunstâncias e luta contra uma encenação que lhe é determinada e da qual procura escapar.

Desde a abertura dos créditos, com as linhas que se cruzam, para a emergência de edifícios, um magnífico e inovador projeto de Saul Bass, com a partitura dissonante de Bernard Herrmann, a "mise-en-scène" se insinua, a abastecer o espectador com um trato raro das possibilidades expressivas da arte do filme.

Fonte de inspiração para a maioria dos "thrillers" dos anos 60 (inclusive os primeiros filmes de James Bond, o agente secreto 007, que, segundo François Truffaut, não existiriam sem o advento de “North by Northwest”), “Intriga internacional” é uma obra de gênio e sintetiza toda a primeira fase americana de Hitchcock, assim como “Os 39 degraus” (“The thirty-nine steps”,1935) pode ser visto como uma súmula de seus primeiros filmes ingleses.

Roger Thornhil é um americano típico de meia-idade que faz parte da maioria que caracteriza a sociedade de consumo estadunidense. Na opinião de Noel Simsolo, exegeta da obra hitchcockiana com tese de doutorado na Sorbonne sobre o autor, Roger não é totalmente adulto, desenvolveu-se por preguiça, não tem uma personalidade marcante, não tem alma. As forças dos espiões e, indiretamente, da polícia, fazem com que se transforme em um outro: Kaplan, bode expiatório, criação fictícia das forças do serviço secreto. Por causa dessa identificação, como observa Simsolo, Thornhill terá o seu calvário, o que o levará à união com Eve - a possibilidade de uma vida real para ele.

Na primeira parte do filme, Thornill é vítima dos outros e encontra Eve/Eva Marie Saint, agente duplo, mas não consegue perceber a realidade na qual se encontra envolvido. “Intriga internacional” é brilhante como idéia e como execução, porque puro cinema, pura "mise-en-scène" e, como narrativa de um itinerário, de um percurso, é, também, uma luta contra a encenação à qual o personagem é forçado a combatê-la. Hitchcock, com seu gênio, com a sua astúcia, com a sua inteligência, não estaria a fazer, neste filme admirável, uma reflexão sobre o próprio espetáculo cinematográfico?

A partir do meio, Roger abandona o combate impossível contra a representação (caça e a morte em questão) para se refugiar junto à polícia e aceita uma encenação tendente a salvá-lo e a fazer com que mereça Eve. No último terço do filme,  Roger, ainda segundo Simsolo, recusa as consequências da representação que aceitou, e segue seu impulso, age sozinho e merece não apenas viver como ganhar Eve.

(A minha admiração por “Intriga Internacional” é enorme. O impacto inicial se deu quando o vi pela primeira vez nos anos 60, algum tempo depois de seu lançamento. A partir daí, anos sem o ver, com o filme apenas na memória, quando, em 1977, houve o seu relançamento em cópia nova. A constatação de sua grandeza não apenas se ratificou como aumentou muito, porque já um pouco mais afinado com a expressão cinematográfica. O tempo passou. Nos anos 80, “North by Northwest” é lançado em VHS, mas antes o tinha revisto em cópia espúria dublada na televisão. O seu lançamento em DVD restituiu a sua majestade. Comprei-o imediatamente e sempre o revejo. Pelo menos três vezes por ano. É quase uma terapia.)

“Intriga internacional” assombra o cinéfilo, e é uma lição fecunda de cinema, de "mise-en-scène". Atestado do que disseram Claude Chabrol e Erich Rohmer no livro que escreveram sobre o mestre, “Le cinema selon Hitchcock” (que nunca saiu em tradução no Brasil): "Em Hitchcock, o conteúdo é a forma". Hitchcock, porém, se, atualmente, pode ser considerado uma unanimidade da crítica especializada, nas décadas de 40 e 50, no entanto, não era visto como um autor, mas como um habilidoso mestre do suspense. Foi preciso esperar a sua consagração pela revista francesa Cahiers du Cinema, que lhe descobriu as potencialidades expressivas como um dos maiores autores do cinema de todos os tempos. Por todo o respeito que tenho, por exemplo, em relação ao ensaísta baiano Walter da Silveira, em seu livro - uma belíssima reflexão sobre a arte cinematográfica, “Fronteiras do cinema”, não soube, porém, no ensaio “As vertigens de Alfred Hitchcock”, compreender a sua importância e a sua essência.

Mas como escreveu Truufaut: “Porque domina os elementos de um filme e impõe idéias pessoais em todas as etapas da direção, Alfred Hitchcock possui de fato um estilo, e todos reconhecerão que é um dos três ou quatro diretores em atividade que conseguimos identificar só de assistir a poucos minutos de qualquer filme seu.”

O mestre, ao perceber que o vilão não poderia estar concentrado somente na figura de James Mason, um ator de “finesse” insuperável, decidiu reparti-lo em três. Assim, há uma trindade na personificação da vilania: o próprio Mason (Vandamme), Martin Landau (Leonard) e um outro com cara sempre zangada e com um físico de origem germânica. No DVD que se encontra disponível, o roteirista genial Ernest Lehman comenta o filme cena por cena.

Mas, e a pedir a ajuda da exegese de Noel Simsolo (que está no livro “Alfred Hitchcock”, de Noel Simsolo, editado da Distribuidora Record na coleção “Grandes Cineastas”, tradução de Wilson Cunha do original publicado em Paris, 1969, pela Seghers), que se veja aqui a beleza dos significados que podem ser extraídos desta obra-prima: “O tema do filme, meditação sobre a vertigem de criar e amar uma obra de arte, explode no início da segunda parte, quando Thornill dialoga com o chefe dos espiões (James Mason). Conversa sobre o papel do objeto de arte ou sobre as possibilidades da alma. Diálogo em que aceitamos Eve como uma obra de arte, meio de transição entre o sonho e a realidade, entre o corpo e o espírito, entre a passividade e o movimento, entre as trevas e a luz, a ignorância e o conhecimento. No fim do filme, o plano de um trem entrando em um túnel marca a posse sexual de Eve por Thornill e a posse da vida e do filme por esta personagem de ficção. “North by Northwest, portanto, é o negativo de “Vertigo”.

Duas seqüências, pelo menos, são antológicas: a do teco-teco que persegue, em amplo espaço aberto, num campo de trigo, Roger Thornill, e a da fuga do casal pelos Montes Rushmore. Nesta última, há notória influência de Eisenstein, principalmente no que se refere à disposição, dentro do plano, dos volumes e da arte de significar pelo espaço cinematográfico. Hitchcock disse certa vez em uma entrevista a “Le Monde” logo após o lançamento de “North by Nortwest” em Paris: “Faço o máximo para ligar o “décor” à ação. Em “North by Nortwest”, situei a perseguição nos Montes Rushmore onde estão esculpidos os rostos dos presidentes dos Estados Unidos. Parece-me interessante mostrar a silhueta e a figura dos atores tão pequenos contra os grandes narizes e orelhas dos presidentes. Eu gostaria de ter filmado todas as cenas lá, mas não me permitiram. Pensei mesmo em fazer com que Cary Grant entrasse pelas narinas de Abraham Lincoln, mas é claro que isto era impossível.”


E mais: “Minha lógica é uma lógica de mórmon. Vocês conhecem os mórmons? Quando as crianças fazem uma pergunta difícil, eles respondem: “Vá brincar, menino”. Existe algo de mais importante do que a lógica, é a imaginação. Se pensamos primeiramente na lógica, não podemos imaginar mais nada. Frequentemente, trabalhando com meu roteirista, eu lhe dou uma idéia: “Mas isto é possível!”. A idéia é boa, apesar de ela ir contra a lógica. A lógica deve ser jogada pela janela.”

18 agosto 2013

Inácio, o vendedor de ilusões

            Obrigado, Modesto
Por Carlos Modesto

Quando o cinema, como casa de projeção, possuía o encantamento de atrair para os seus salões a diversidade de público, nasceu entre este, um tipo exclusivo do verdadeiro cinéfilo de carteirinha, denominado devorador de filmes, ou seja, aquele amante dos celuloides, maratonista, frequentador assíduo dos vários cinemas dos bairros e do centro da cidade.

A criança e adolescente desse pretérito, atualmente na terceira idade, passando pelo crepúsculo da vida, enquadrado no perfil acima, há de recordar rapidamente da personalidade humana, ora tributada e participante ativo da história dos cinemas de Salvador.

Os cinemas pululavam em cada canto urbano, e para ser completo o local tinha por obrigação de existir nele, pelo menos uma casa exibidora de filmes. Nossa cidade, embora fosse uma capital, sua característica era provinciana. A vida era bela, os bondes deslizavam sobre seus trilhos de aço, distribuídos através de suas linhas traçadamente delineadas. O technicolor das raças, ainda era bem visível na população. O chapéu de Panamá, o brim Diagonal de cor branca vestia do mais seleto cavalheiro ao mais simples operário. A famosa Rua Chile, a mais chic da cidade, com suas lojas inesquecíveis, era o recanto dos milionários e da classe média. Todos se conheciam, não existia a violência nem drogas, e nessa vivência democrática, os tipos populares complementavam a alegria de viver da população baiana. E entre esses últimos bradava em alto e bom som o nome de Cuíca de Santo Amaro, através dos seus folhetins de cordel.

Nesse espaço multicor, não poderia jamais esquecer a amizade de um homem, semeador das minhas imensas alegrias, durante o verdejante tempo da minha adolescência: o velho e inesquecível Inácio. Ele foi um dos últimos tipos populares da nossa antiga urbe. Na juventude foi sorveteiro de cantimplora (recipiente ainda utilizado para resfriamento e até hoje visto nas calçadas da subida da Ladeira de São Bento, no inicio da Avenida Sete de Setembro), onde em frente aos colégios principais dos diversos bairros vendia o seu sorvete. No curso da profissão abarcada, foi contaminado pelo bacilo da tuberculose, obrigando-o a deixá-la. Após a cura da enfermidade, procurou outros meios de sobrevivência, através de trabalhos diversos, como entregador de panfletos das propagandas dos filmes, em porta em porta das residências e bilheteiro de casa de projeção. E, finalmente, vendedor de fitas de cinema.

Inácio era um conhecedor de cinema, havia frequentado suas sessões na fase silenciosa, recordando os velhos filmes de sucessos e seriados desse período, familiarizando-se com os nomes dos astros e estrelas famosos. Na separação dos fotogramas para o seu comércio, distribuía com certos critérios, e, sabia escolher os mais valiosos para oferecer aos mais exigentes cinéfilos, buscadores de close-ups de artistas famosos e de seus filmes marcantes, para completarem suas coleções.

Quando conheci o Inácio, o mesmo já passava dos cinquenta anos de idade. Ele era descendente afro e fazia ponto nas portas dos salões cinematográficos mais frequentados. Um dia era no saudoso “Jandaia”, no dia seguinte, partia para o “Aliança” ou “Pax”, situados na Baixa dos Sapateiros. E, assim, na sua maratona, corria pelas principais casas exibidoras, vendendo o seu produto sedutor, os inesquecíveis pequeninos fotogramas de 35 milímetros, embutidos em caixas de fósforo e, também, binóculos de madeira, adaptados com uma lente de óculos e num corte retangular na parte frontal, proporcional ao tamanho da fita, sendo a mesma presa por dois suportes para segurá-la. Olhando através do orifício se via uma imagem ampliada do quadro em questão. Essa peça artesanal era projetada e manufaturada pelas suas próprias mãos. A meninada, além de gostar das histórias em quadrinhos, o procurava no intuito de comprar as caixinhas com fotogramas de cenas dos diversos filmes da época. O Inácio conseguia esses pedaços ou rolos de películas, através dos refugos de trechos danificados das distribuidoras, ou com operadores de cinema, conhecidos.

Assim conheci esse espécime humano, educado, bondoso, e fazia de tudo para alegrar a criançada amante da arte cinematográfica. Tornei-me seu assíduo comprador e amigo, onde no fim da sua vida quando ele vivia no Asilo D. Pedro II, fiz-lhe uma justa homenagem com um simples documentário sobre ele, denominado, INÁCIO, O ÚLTIMO VENDEDOR DE ILUSÕES.   

Levava-me ele aos possuidores de projetores de cinema caseiro, resolutos em vendê-los, e entre esses, alguns eu consegui negociar através do seu intermédio, sem nenhuma remuneração da sua parte como comissão.

Para os mais interessados em adquirir sua mercadoria, nos dias de semana, ele podia ser encontrado sentado num banco da Farmácia Duarte (se não me falha a memória), instalada na Baixa dos Sapateiros, em frente à Rua 28 de Setembro, e colada à Praça dos Veteranos, acompanhado de um usado saco de cimento, com os acessórios de venda dentro. Quando não se achava ali, estava ele em seu outro ponto, ao lado do Relógio de São Pedro.

No final da década de 1950, parti para viver na cidade do Rio de Janeiro, e nas vezes quando ia assistir a um filme, lembrava-me sempre dele.  Retornando em 1963, procurei vê-lo, no entanto, não o encontrei. Seguindo informações sobre seu paradeiro através de diversos amigos, fui achá-lo no albergue acima citado, passando a visitá-lo periodicamente. Antes de morrer deixou-me como herança, sua caixa metálica com um binóculo de madeira, algumas caixas de fósforo composta de fotografias de celuloide, que guardo com carinho até hoje.

Muitos foram essas crianças e adolescentes que se tornaram adultos e famosos nas diversas profissões a artes, adquirentes em potencial desses pequenos “Box” de fósforo, cheias com pedaços de fitas cinematográficas, cujo prazer de possuí-las era de uma emoção indescritível, e, só será entendido, no interior, daqueles que um dia conheceram essa alma sincera. Mas morreu só, esquecido, no asilo que o amparou em seus últimos momentos de vida, mas o verdadeiro cinéfilo daquela era dourada guardará para sempre em seu coração, a imagem de INÁCIO, o vendedor de ilusões.

P. S. – Esta pequena crônica é dedicada ao meu amigo André Setaro, feita na manhã de domingo, 16-08-2013, em Salvador, Bahia. 



Um Barlan ninguém esquece

Carlos Modesto, fotógrafo, cineasta, homem de mil instrumentos, nostálgico de boa cepa de um tempo cinematográfico que o vento já levou, enviou-me o texto abaixo. Resolvi publicá-lo aqui em meu blog.

Por Carlos Modesto
Fui convidado pelo meu amigo Roque Araújo, para ver a sua exposição de equipamento fotográfico/cinematográfico, realizada no DIMAS, no prédio da Biblioteca dos Barris. Ao passear pelos diversos aparelhos ali colocados, minha visão de repente aproximou-se de uma rudimentar peça de projeção, cujos olhos imediatamente encheram-se de lágrimas e me fez recordar imediatamente do meu tempo de criança, no início da década de 1950, do século passado, quando o cinema possuía ainda uma tamanha força de encantar, onde a civilização de então entrava num salão umbroso, sentava em frente de uma tela prateada vendo as imagens fluir, e, assim, durante o tempo de duas ou mais horas esquecia seus dramas e suas dores. O cinema era a catarse das multidões. 

A criança, que entrava pela primeira vez numa casa exibidora de filmes, ficava perdidamente apaixonada pelo ritual de uma projeção cinematográfica. A cabine do operador da projeção mexia com seus sentidos, principalmente, quando tinha a possibilidade de entrar em alguma e presenciar o manuseio de como o mesmo colocava o filme no projetor. E, o que mais intrigava o menino (por não possuir ainda certo conhecimento de física), era o de ver a imagem invertida no aparelho e a mesma ser mostrada com perfeição na tela.

O cinema produzia na criança um efeito de sedução sem precedentes, levando-a sonhar acordado com os filmes de ação e seus mocinhos de “faz de conta” dos seriados, Tarzan e faroeste.

Sendo assim, apareceu naquele pretérito um projetor simples e caseiro denominado “Barlam”. Na verdade, o protótipo era um brinquedo de plástico duro (baquelite) de uma ou duas cores, possuindo uma manivela que arrastava o filme e se a memória não me engana feito de papel encerado tipo o amanteigado onde se desenhavam as figuras.

Foi então um Barlan que meu pai deu-me de presente no dia do meu aniversário de oito anos de idade. Morava na cidade de Estância/SE.  Quando o pacote chegou as minhas mãos e foi aberto, vi aquela peça encantadora, à alegria foi tão intensa a ponto de querer abraçar o meu querido pai como agradecimento, mas como era bastante tímido, ficou apenas na intenção.

A emoção sentida ao possuir aquele simplório brinquedo só pode ser entendida por àqueles que da mesma forma tiveram um exemplar de qualquer espécie de projetor e que de fato tinham amor pelo cinema.

Os filmes acompanhantes na compra do referido aparelho eram três e se o adquirente quisesse outros, era obrigado a recorrer a capital do Estado, ou mandar buscar pelo correio em São Paulo e Rio de Janeiro. Recordo-me de Branca de Neve e os Sete Anões entre os primeiros conseguidos. Devido à dificuldade encontrada em achar outros títulos, recorri então ao estratagema de cortar as figuras das revistas em quadrinhos coloridas e assim adaptar como se fossem filmes.

Naturalmente, existiam modelos mais avançados de projetores nas bitolas “8” e “16” milímetros, movimentados a manivela e a motor, mas eram bem mais caros. E só os filhos de pais ricos podiam tê-los. O meu pai se encaixava como de situação plausível de me comprar um desses exemplares, porém fiquei de certa forma muito satisfeito com o meu Barlan, principalmente pela analogia que fiz entre este e os anteriores projetores artesanais feitos pelas minhas próprias mãos, com caixas de sapatos, lâmpadas transparentes cheias de água que servia como lente e uma lanterna que iluminava os fotogramas para a projeção.

Com a continuidade da vida fui conseguindo diversos tipos de aparelhos nas diversas bitolas, mas nenhum deles me proporcionou tantas alegrias quanto o meu querido Barlan.  

15 agosto 2013

Imagens dos filmes de Mikio Naruse

Uma antologia de imagens dos filmes do japonês Mikio Naruse, que a Sala Walter da Silveira brinda os cinéfilos com uma abrangente retrospectiva.

14 agosto 2013

Retrospectiva Mikio Naruse

Finalmente, com o conserto do espelho do projetor 35mm, entre outros aperfeiçoamentos na máquina, a Sala Walter da Silveira, depois de muitos anos restrita ao DVD  e outros suportes digitais, encontra-se, agora, apta a exibir filmes raros em celuloide – o que representa um feito e tanto para este espaço alternativo dos Barris. Para abrir com chave de ouro a temporada 35mm – que se perpetue ‘ad infinitum’, uma mostra que prima pelo ineditismo, apresentado, obras inéditas de um cineasta considerado importante: Mikio Naruse. Devo confessar, desde logo, que não vi nenhum de seus filmes, mas o programador da sala, Adolfo Gomes, que entende muito de cinema, parece um entusiasta de Naruse, o que já se pode considerar uma recomendação obrigatória. Gomes é uma analista, um exegeta da arte do filme e, além de programador (ficou de mão atadas pela impossibilidade de exibir filmes em 35mm), é também crítico de cinema com artigos/ensaios na já consagrada revista eletrônica Contracampo. O que vai abaixo é o release que Gomes me mandou:

Realização: Fundação Japão e Escritório Consular do Japão/Recife
16 a
Sala Walter da Silveira
Entrada franca

Pela primeira vez em Salvador, uma ampla retrospectiva da obra do cineasta japonês Mikio Naruse. Com o apoio da Fundação Japão e Escritório Consular do Japão no Recife, a Sala Walter da Silveira exibe entre 16 e 22 de agosto, sempre com entrada franca, 13 filmes do grande realizador nipônico. O evento marca ainda a retomada das projeções em 35mm, tão reivindicadas pelos cinéfilos que não trocam a velha e boa película pelas recentes exibições digitais.

Sobre o cineasta - Juntamente com Akira Kurosawa, Yazujiro Ozu e Kenji Mizoguchi, Mikio Naruse é um dos mais importantes cineastas japoneses - ainda que, no Ocidente, seu trabalho tenha menos alcance que o dos outros três. Diretor, produtor e roteirista, realizou cerca de 90 filmes no período entre 1930 e 1967. É conhecido por retratar os problemas sociais de sua época, os dramas das relações interfamiliares e o choque entre o Japão moderno e antigo, geralmente com ênfase em protagonistas femininas. Naruse era um observador mordaz das dificuldades financeiras dentro do núcleo familiar.
Considerado pessimista, Naruse era tímido e de poucas palavras. Muitas vezes seus filmes eram lentos, buscando enfatizar o drama do dia a dia do povo japonês, dando espaço para seus atores retratar nuances psicológicas em cada olhar, gesto e movimento. Seus roteiros eram simples, com o mínimo de diálogos, suas produções geralmente eram de baixo orçamento.
Segundo Kurosawa, o estilo de Naruse era “como um grande rio, de superfície calma, mas com uma correnteza feroz no fundo.”

Realização: Fundação Japão e Escritório Consular do Japão/Recife
Período de 16 a 22 de agosto
Sala Walter da Silveira
Entrada franca

Dia 16/08
15h
Tsuruhachi e Tsurujiro (Tsuruhachi Tsurujiro / 鶴八鶴次郎, Japão, 1938)
Direção: Mikio Naruse
Duração: 88 min.
Elenco: Kazuo Hasegawa, Isuzu Yamada, Kamatari Fujiwara, Heihachiro Okawa e Masao Mishima.
Classificação: 14 anos
Sinopse: Uma história tragicômica de amor não-correspondido situada no mundo do  "yose"  (tradicional espetáculo de variedades do Japão), protagonizada por dois dos maiores artistas do cinema japonês da década de 30 - Kazuo Hasegawa e Isuzu Yamada. Tsuruhachi e Tsurujiro gozam de grande sucesso como uma dupla de artistas tradicionais no final da época Meiji. Eles parecem tão próximos quanto irmãos, mas, nos bastidores, discutem constantemente sobre pequenos pontos de atuação. Por trás dessas discussões, contudo, há um quê de ciúme: Tsurujiro tem ciúmes da atenção que o rico Matsuzaki dispensa a Tsuruhachi. Tsuruhachi, da rica garota que tenta ser pupila de Tsurujiro. Quando Tsuruhachi é pedida em casamento por Matsuzaki, Tsurujiro resolve declarar seus reais sentimentos pela parceira. Baseado em um premiado romance, faz parte de uma série de filmes que Naruse produziu no tempo das artes tradicionais, oferecendo um autêntico vislumbre do mundo do "yose", incluindo aparições de artistas yose reais.
17h
Toda a Família Trabalha (Hataraku ikka, Japão, 1939)
Direção: Mikio Naruse
Duração: 65 minutos
Elenco: Musei Tokugawa, Noriko Honma, Akira Ubukata, Kaoru Ito e Seikichi Minami.
Classificação: 14 anos
Sinopse: Adaptação do romance do escritor Sunao Tokunaga, apresenta uma sólida representação dos problemas sociais em meio à censura de um momento cada vez mais militarista do Japão. Todo membro capaz da família Ishimura trabalha duro o dia inteiro, mas, mesmo juntos, parece que nunca ganham dinheiro suficiente: mal podem sustentar os 11 membros da família. Nessas condições, é uma surpresa quando Kiichi, o filho mais velho, anuncia querer sair de casa para estudar e conseguir um diploma de eletricista. Embora Ishimura saiba que o talento de seu filho está sendo desperdiçado no emprego atual, ele também tem consciência de que assim que Kiichi for atrás de seus sonhos, seus outros filhos vão segui-lo e toda a família corre o risco de desmoronar. Mas Ishimura é incapaz de conter completamente seus filhos, e a família é reduzida a um leito de descontentamento silencioso.
Dia 17/08
15h
Atores Itinerantes (Tabi yakusha, Japão, 1940)
Direção: Mikio Naruse
Duração: 71 min.
Elenco: Kamatari Fujiwara, Kan Yanagiya, Minoru Takase, Soji Kiyokawa e Ko Mihashi.
Classificação: 14 anos
Sinopse: Um grupo de atores de kabuki viaja de cidade em cidade fazendo seu show de comédia sobre um cavalo e seu mestre. O líder do grupo, Kikugoro Nakamura, engana as pessoas das cidades fingindo que se trata do famoso ator de kabuki, Onoe Kikugoro. A história gira em torno de dois atores que “interpretam” as pernas dianteiras e traseiras de um cavalo. O ator que interpreta as pernas dianteiras, Hyoruku, estudou de forma séria e dedicada o movimento de muitos cavalos a fim de aperfeiçoar sua atuação ao longo dos anos. Ele acredita piamente que sua interpretação de um cavalo é melhor que a de um cavalo de verdade. Sua linguagem corporal se tornou mais acostumada aos movimentos de um cavalo de verdade que a de um humano. Quando o grupo chega à cidade onde a história se passa, o barbeiro do município percebe o engano e tenta desmascará-los, mas acaba destruindo a fantasia de cavalo, cuja cabeça, ao ser reconstruída, passa a parecer a de uma raposa. Quando Hyoroku descobre sobre a cabeça refeita de sua fantasia de cavalo, ele se recusa a participar da peça. Kikugoro não tem escolha senão excluí-los e substituí-los por um cavalo de verdade.
 17h
Vida de Casado (Meshi, Japão, 1951)
Direção: Mikio Naruse
Duração: 97 min.
Elenco: Ken Uehara, Setsuko Hara, Yukiko Shimazaki, Yoko Sugi e Haruko Sugimura.
Classificação: 14 anos
Sinopse: Hatsunosuke Okamoto e sua esposa, Michiyo, mudam-se de Tóquio para uma pequena casa em um bairro modesto de Osaka. Eles se casaram por amor, mas o romance foi desaparecendo com a chegada da meia-idade. A distância entre os dois apenas aumenta, por conta das frustrações cotidianas.
Quando a sobrinha de Hatsunosuke, Satoko, aparece à sua porta após fugir da casa dos pais em Tóquio, surgem os verdadeiros problemas. Um excelente exemplo da capacidade de Naruse em revelar a amargura que há por trás da vida cotidiana.
Dia 18/08
15h
Mamãe (Okaasan, Japão, 1952)
Direção: Mikio Naruse
Duração: 98 min.
Elenco: Kinuyo Tanaka, Masao Mishima, Kyoko Kagawa, Keiko Enami e Akihiko Katayama.
Classificação: 14 anos
Sinopse: Livremente baseado em uma coletânea de redações de estudantes do ensino fundamental sobre suas mães, “Mamãe” foca na tentativa de uma mãe e sua família de se recuperarem da destruição da Segunda Guerra Mundial. Embora beirando o sentimental, a direção de Naruse é notavelmente comedida comparada às histórias melodramáticas da época. Um retrato belo e real de uma mãe japonesa comum e as lutas diárias que enfrenta nas ruínas do período pós-guerra.
17h
Nuvens Flutuantes (Ukigumo, Japão, 1955)
Direção: Mikio Naruse
Duração: 124 min.
Elenco: HidekoTakamine, Masayuki Mori, Mariko Okada e Chieko Nakakita. Classificação: 14 anos
Sinopse: Em 1943, em meio à Segunda Guerra Mundial, Yukiko Koda vai à Indochina Francesa (atual Vietnã), sob ocupação japonesa, para trabalhar como datilógrafa; lá ela conhece o engenheiro Tomioka, um homem casado, e eles se apaixonam. Quando a guerra termina, eles retornam ao Japão. Ela, acreditando na promessa de que ele se divorciaria de sua esposa em Tóquio, o procura. Ele, entretanto, hesita. Entrecortada por flashbacks, a história passeia pelos encontros e desencontros do casal ao longo do tempo. O filme mostra o vagar de uma vida sofrida durante o período pós-guerra, quando ninguém poderia sonhar com o crescimento econômico do Japão. Um retrato de como a guerra é capaz de destruir as vidas de pessoas que nem mesmo nela lutaram. Considerado um dos maiores filmes do cinema japonês.
Dia 19/08
15h
Chuva Repentina (Shu-u, Japão, 1956)
Direção: Mikio Naruse
Duração: 91 min.
Elenco: Shuji Sano, Setsuko Hara, Kyoko Kagawa, Keiju Kobayashi, Akemi Negishi,
Classificação: 14 anos
Sinopse: O filme foca em Ryotaro Namiki e sua esposa Fumiko, que vivem em uma área residencial de Tóquio. Suas vidas são monótonas, e eles vivem de pirraça um com o outro. Ryotaro reprime Fumiko por sempre cortar as receitas do jornal antes mesmo de ele ter lido. Fumiko o atormenta por ser tão insensível. Fumiko está infeliz com sua situação, mas ela não sabe o que fazer. Eles são incapazes de concordarem com alguma coisa ao fazer os planos para o domingo à tarde. As pequenas irritações se intensificam em uma animosidade insustentável. Pressões externas - problemas com dinheiro, parentes em dificuldades e vizinhos problemáticos - fazem com que eles concordem cada vez menos entre si. Em um período que marca o início de uma maior inserção das mulheres no mercado de trabalho no Japão, Ryotaro proíbe Fumiko de trabalhar. Eles estão quase no limite quando uma pequena distração os coloca no caminho para uma possível reconciliação. Baseado na peça “Balão de Papel” (1926), de Kunio Kishida, “Chuva Repentina”, como muitos dos outros filmes de Naruse, traz como protagonistas mulheres presas, pelas circunstâncias ou pela sociedade.
17h
Correnteza (Nagareru, Japão, 1956)
Direção: Mikio Naruse
Duração: 117 min.
Elenco: KinuyoTanaka, Isuzu Yamada, Hideko Takamine e Mariko Okada. Classificação: 14 anos
Sinopse: Dirigido em 1956, o ano em que a prostituição se tornou ilegal no Japão, “Correnteza” explora o funcionamento interno de um mundo em transição, quando as gueixas tradicionais são obrigadas a encarar o iminente declínio do seu modo de vida e o aviltante espectro da prostituição. O filme narra a história de Rika, uma viúva que, através de uma agência de empregos, consegue um trabalho como empregada doméstica em uma casa de gueixas em um bairro boêmio em Tóquio. Otsuta, a orgulhosa dona do local, luta todos os dias para manter o estabelecimento diante das dívidas que se acumulam e salvá-lo de se tornar uma lanchonete ou um bordel. Através dos olhos de Rika, conhecemos todas as gueixas, que bebem e brigam, se preocupam com a falta de clientes e tentam sobreviver perante a iminente extinção de sua profissão. Uma mostra perfeita do talento natural de Naruse em construir personagens femininas complexas.
Dia 20/08
15h
A Chegada do Outono (Aki tachinu, Japão, 1960)
Direção: Mikio Naruse
Duração: 79 min.
Elenco: Nobuko Otowa, Kenzaburo Osawa, Kamatari Fujiwara e Natsuko Kahara.
Classificação: 14 anos
Sinopse: Uma viúva recente, Shigeko, vai à casa de seu irmão em Tóquio com seu filho Hideo, que estuda na sexta série. Hideo passa a morar com o tio, dono de uma banca de legumes, enquanto sua mãe trabalha numa hospedagem nos arredores. Tendo crescido no campo, Hideo não está acostumado à cidade e prefere a companhia de seu bichinho de estimação, Riki, que um dia, por infelicidade, desaparece. Enquanto sua mãe lida com seus próprios problemas e pensa em abandoná-lo para fugir com um cliente, Hideo faz amizade com Junko, a filha da administradora da hospedagem com um homem casado. Em “A Chegada do Outono”, Naruse retrata de forma lúcida o ambiente das antigas áreas 'shitamachi' de Tóquio e as mudanças que nelas ocorriam com o crescimento da cidade.
17h
Nuvens de Verão (Iwashigumo, Japão, 1958)
Direção: Mikio Naruse
Duração: 130 min.
Elenco: Chikage Awashima, Isao Kimura, Ganjiro Nakamura, Nijiko Kiyokawa, Keiju Kobayashi e Yoichi Tachikawa.
Classificação: 14 anos
 Sinopse: Yae, que perdeu seu marido na guerra, administra uma pequena fazenda com sua sogra, enquanto cria seu filho Tadashi. Quando Tadawa, um repórter da filial local de um jornal de Tóquio, a entrevista sobre as recentes reformas agrícolas, os dois iniciam um caso amoroso, mesmo ele sendo casado. Wasuke, o irmão mais velho de Yae, luta para manter as terras, diante da ameaça do confisco por conta da reforma agrária, e tenta fazer com que seus filhos se casem, quando estes, na realidade, desejam ir atrás de trabalhos confortáveis na cidade grande. Primeiro filme em cores de Naruse, também foi o seu primeiro a fugir do ambiente da cidade e se focar na vida no campo. A história foca nas mudanças drásticas que ocorreram no pós-guerra na área rural do Japão, refletidas na lacuna cada vez maior entre as gerações. No centro, entretanto, a figura que Naruse constrói para continuar a traçar friamente o período pós-guerra: uma mulher solteira em difíceis condições, presa no conflito entre a o desejo de manter sua independência e a necessidade de casar novamente.
Dia 21/08
15h
Quando a Mulher Sobe a Escada (Onna ga kaidan wo agaru toki, Japão, 1960)
Direção: Mikio Naruse
Duração: 111 min
Elenco: Hideko Takamine, Masayuki Mori, Reiko Dan e Tatsuya Nakadai. Classificação: 14 anos
 Sinopse: Keiko, uma viúva de 30 anos, é a administradora de um bar no moderno e luxuoso bairro de Ginza. Após o expediente, ela diverte os ricos empresários que frequentam o local. O dono do bar insiste para que ela se prostitua para manter fiéis os clientes mais lucrativos, mas ela resiste. Sua família a pressiona por dinheiro, seus clientes a pressionam para tê-la, e ela vive endividada. Keiko sabe que está envelhecendo, e começa a se questionar sobre seu destino: ela deveria se casar? Ou pegar dinheiro emprestado para abrir seu próprio bar? Astuta, engenhosa, mas encurralada, Keiko representa os conflitos e lutas de uma mulher tentando afirmar sua independência numa sociedade dominada por homens.
 17h    
Tormento (Midareru, Japão, 1964)
Direção: Mikio Naruse
Duração: 98 min.
Elenco: Hideko Takamine, Yuzo Kayama, Aiko Mimasu, Mitsuko Kusabue, Yumi Shirakawa e Mie Hama.
Classificação: 14 anos
Sinopse: Apenas seis meses após se casar, Reiko fica viúva durante a guerra. Praticamente sozinha, reconstrói a loja de bebidas da família do marido, destruída durante um bombardeio. Dezoito anos depois, ela luta para manter a loja diante da concorrência esmagadora de um novo supermercado na mesma rua. Suas cunhadas tentam a todo custo se livrar dela, casando-a. Reiko ainda assume pra si a tarefa de tomar conta do seu cunhado Koji, onze anos mais novo, que largou o emprego e vive a jogar, beber e se meter em brigas, mas que mantém um profundo respeito por ela. Até que Koji confessa a Reiko que a ama.
Dia 22/08
15h
Nuvens Dispersas (Midare gumo, Japão, 1967)
Direção: Mikio Naruse
Duração: 124 min.
Elenco: Yuzo Kayama, Yoko Tsukasa, Mitsuko Kusabue e Mitsuko Mori. Classificação: 14 anos
Sinopse: Filmado dois anos antes da morte de Naruse. O casal na mesa perto da janela parece mais feliz do que qualquer outra pessoa no restaurante. Hiroshi, que trabalha em um escritório do governo, foi promovido e sua esposa, Yumiko, está grávida. A felicidade do casal parece que irá durar para sempre, mas, na verdade, terminará no fim daquela tarde em um acidente de trânsito, fatal para o marido. Mishima Shiro, o jovem rapaz responsável pelo acidente, a procura para se desculpar, e promete compensá-la com uma pensão. Inicialmente, ela se recusa a perdoá-lo, mas, após se reencontrarem por acaso em Hokkaido, um vínculo começa a crescer entre eles. O passado, entretanto, continua a projetar sua sombra.


11 agosto 2013

Desimportancia dos cineclubes

Catherine Deneuve em A bela da tarde (Belle de jour, 1967), de Luis Biñuel

Com o advento do VHS, do laser-disc, do DVD, e, agora, com a possibilidade de se baixar quase tudo da internet, a pergunta que se quer fazer é a seguinte: ainda haveria condições de ser ter um clube de cinema nos moldes do de Walter da Silveira nas décadas de 50 e 60?

Naquela época, difícil era se ver certos filmes, que ficavam restritos às cinematecas. O mercado exibidor se restringia aos lançamentos e as constantes reprises de filmes de sucesso. Como, nos anos citados, assistir aos filmes neo-realistas, aos do expressionismo alemão, às obras mais independentes de cinematografias desconhecidas, às obras do realismo poético francês, à vanguarda da estética da arte muda? O único jeito era a viagem e, assim mesmo, o mais certo seria ao exterior, às cinematecas de Nova York ou a de Paris, além de outras importantes da Europa. Aqui no Brasil, existiam, mas ainda incipientes, as cinematecas do Rio e de São Paulo (esta com um acervo mais versátil). Salvador não tinha nenhuma possibilidade de constituir uma cinemateca.

A importância de Walter da Silveira (que boa parte da nova geração não sabe quem foi, apesar de nome de sala alternativa nos Barris) foi justamente a de, com a fundação do Clube de Cinema da Bahia, trazer filmes especiais, essenciais na evolução da linguagem e da estética cinematográficas. Walter da Silveira fez ver, aos baianos de província (mas uma província muito agradável bem diferente da cidade engarrafada de hoje), que o cinema, além de um bom divertimento, era, também, a expressão de uma arte. O próprio Glauber Rocha, quando de sua morte, em novembro de 1970, em artigo para o Jornal da Bahia, confessa que o ensaísta fora seu grande mestre, que aprendeu a ver cinema através das palavras de Walter da Silveira. E conta, num artigo, o esporo que este lhe deu, quando, numa exibição de O encouraçado Potemkin, numa sessão matutina no cinema Liceu, conversava durante a exibição com um amigo. Walter, percebendo o "arruído", deu-lhe tremendo esporo, segundo palavras do próprio Glauber que, conta, nunca mais falou durante a projeção de um filme, tal a indignação do mestre diante do jovem tagarela.

Atualmente, no entanto, com a facilidade existente, pode-se ver um raro filme antigo, a exemplo de Ordet (1941), de Carl Theodor Dreyer, famoso cineasta dinamarquês, em boa cópia em DVD. Este filme, há poucos anos, somente seria possível ser contemplado na cinemateca de Henry Langlois, em Paris. Outro dia, vim a saber, que um conhecido baixou da internet, em cópia decente e legendada, As estranhas coisas de Paris (Elena et les hommes, 1956), com a bela Ingrid Bergman e Jean Marais, filme difícil de se ver (nunca passa na televisão e não tem no disquinho).

Há dois anos, tentou-se implantar um cineclube na Faculdade de Comunicação. Com excelente programação. Retrospectivas de Kubrick, Buñuel, etc. Mas os alunos antes de entrar perguntavam se os filmes estavam disponíveis em DVD. E davam meia-volta, volver.

Já se contou aqui que este colunista, uma vez no Rio, ao saber da exibição de Ladrões de bicicleta na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, em única sessão, ainda que mal tivesse chegado à cidade, correu para lá. Finda a exibição, chuva torrencial fê-lo ficar encharcado e voltar a pé para o hotel (a cidade engarrafada, tudo parado). Nos tempos atuais, faria o mesmo sacrifício? Claro que não, pois o DVD de Ladri di biciclette está disponível não somente para ser adquirido, mas também nas melhores locadoras da cidade.

Qual a função do cineclubismo nos dias atuais? Walter da Silveira, por exemplo, sobre ser um dos maiores ensaístas de cinema do Brasil (na Bahia ninguém nunca lhe chegou perto), era um homem, verdade se diga, à antiga, de tom grave, circunspeto, com uma gestualística bem diversa da juventude atual e, mesmo, dos menos jovens que atualmente constituem o meio circundante e intelectual, universitário. A figura de Walter faz lembrar aqueles antigos mestres universitários, principalmente os professores da Faculdade de Direito (no acento vocal, nas pausas, na maneira de expor o assunto, um "magister dixet").

Mas acontece que o mundo mudou e, com ele, a cultura. Houve um papel importantíssimo exercido por Walter da Silveira. Os realizadores que se aventuram na captação das imagens em movimento são contemporâneos de um cinema digital. Faz-se filmes até pelos telefones celulares. O Clube de Cinema da Bahia, portanto, não poderia existir - nem teria razão de ser - nesta chamada contemporaneidade. A própria psicologia de recepção da obra cinematográfica mudou. Bem, são reflexões ao acaso.