Catherine Deneuve em A bela da tarde (Belle de jour, 1967), de Luis Biñuel
Com o advento do VHS, do laser-disc, do DVD, e, agora, com a
possibilidade de se baixar quase tudo da internet, a pergunta que se quer fazer
é a seguinte: ainda haveria condições de ser ter um clube de cinema nos moldes
do de Walter da Silveira nas décadas de 50 e 60?
Naquela época, difícil era se ver certos filmes, que ficavam
restritos às cinematecas. O mercado exibidor se restringia aos lançamentos e as
constantes reprises de filmes de sucesso. Como, nos anos citados, assistir aos
filmes neo-realistas, aos do expressionismo alemão, às obras mais independentes
de cinematografias desconhecidas, às obras do realismo poético francês, à
vanguarda da estética da arte muda? O único jeito era a viagem e, assim mesmo,
o mais certo seria ao exterior, às cinematecas de Nova York ou a de Paris, além
de outras importantes da Europa. Aqui no Brasil, existiam, mas ainda
incipientes, as cinematecas do Rio e de São Paulo (esta com um acervo mais
versátil). Salvador não tinha nenhuma possibilidade de constituir uma cinemateca.
A importância de Walter da Silveira (que boa parte da nova
geração não sabe quem foi, apesar de nome de sala alternativa nos Barris) foi
justamente a de, com a fundação do Clube de Cinema da Bahia, trazer filmes
especiais, essenciais na evolução da linguagem e da estética cinematográficas.
Walter da Silveira fez ver, aos baianos de província (mas uma província muito
agradável bem diferente da cidade engarrafada de hoje), que o cinema, além de
um bom divertimento, era, também, a expressão de uma arte. O próprio Glauber
Rocha, quando de sua morte, em novembro de 1970, em artigo para o Jornal da
Bahia, confessa que o ensaísta fora seu grande mestre, que aprendeu a ver
cinema através das palavras de Walter da Silveira. E conta, num artigo, o
esporo que este lhe deu, quando, numa exibição de O encouraçado
Potemkin, numa sessão matutina no cinema Liceu, conversava durante a
exibição com um amigo. Walter, percebendo o "arruído", deu-lhe
tremendo esporo, segundo palavras do próprio Glauber que, conta, nunca mais
falou durante a projeção de um filme, tal a indignação do mestre diante do
jovem tagarela.
Atualmente, no entanto, com a facilidade existente, pode-se
ver um raro filme antigo, a exemplo de Ordet (1941), de Carl
Theodor Dreyer, famoso cineasta dinamarquês, em boa cópia em DVD. Este filme, há
poucos anos, somente seria possível ser contemplado na cinemateca de Henry
Langlois, em Paris. Outro
dia, vim a saber, que um conhecido baixou da internet, em cópia decente e
legendada, As estranhas coisas de Paris (Elena et les
hommes, 1956), com a bela Ingrid Bergman e Jean Marais, filme difícil de
se ver (nunca passa na televisão e não tem no disquinho).
Há dois anos, tentou-se implantar um cineclube na Faculdade
de Comunicação. Com excelente programação. Retrospectivas de Kubrick, Buñuel,
etc. Mas os alunos antes de entrar perguntavam se os filmes estavam disponíveis
em DVD. E
davam meia-volta, volver.
Já se contou aqui que este colunista, uma vez no Rio, ao
saber da exibição de Ladrões de bicicleta na Cinemateca do Museu de
Arte Moderna, em única sessão, ainda que mal tivesse chegado à cidade, correu
para lá. Finda a exibição, chuva torrencial fê-lo ficar encharcado e voltar a
pé para o hotel (a cidade engarrafada, tudo parado). Nos tempos atuais, faria o
mesmo sacrifício? Claro que não, pois o DVD de Ladri di biciclette está disponível não somente para ser adquirido, mas também nas melhores
locadoras da cidade.
Qual a função do cineclubismo nos dias atuais? Walter da
Silveira, por exemplo, sobre ser um dos maiores ensaístas de cinema do Brasil
(na Bahia ninguém nunca lhe chegou perto), era um homem, verdade se diga, à
antiga, de tom grave, circunspeto, com uma gestualística bem diversa da
juventude atual e, mesmo, dos menos jovens que atualmente constituem o meio
circundante e intelectual, universitário. A figura de Walter faz lembrar
aqueles antigos mestres universitários, principalmente os professores da
Faculdade de Direito (no acento vocal, nas pausas, na maneira de expor o
assunto, um "magister dixet").
Mas acontece que o mundo mudou e, com ele, a cultura. Houve
um papel importantíssimo exercido por Walter da Silveira. Os realizadores que
se aventuram na captação das imagens em movimento são contemporâneos de um
cinema digital. Faz-se filmes até pelos telefones celulares. O Clube de Cinema
da Bahia, portanto, não poderia existir - nem teria razão de ser - nesta
chamada contemporaneidade. A própria psicologia de recepção da obra
cinematográfica mudou. Bem, são reflexões ao acaso.
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