Obrigado, Modesto
Por Carlos Modesto
Quando o cinema, como casa de projeção, possuía o encantamento
de atrair para os seus salões a diversidade de público, nasceu entre este, um
tipo exclusivo do verdadeiro cinéfilo de
carteirinha, denominado devorador de
filmes, ou seja, aquele amante dos celuloides, maratonista, frequentador
assíduo dos vários cinemas dos bairros e do centro da cidade.
A criança e adolescente desse
pretérito, atualmente na terceira idade, passando pelo crepúsculo da vida,
enquadrado no perfil acima, há de recordar rapidamente da personalidade humana,
ora tributada e participante ativo da história dos cinemas de Salvador.
Os
cinemas pululavam em cada canto urbano, e para ser completo o local tinha por
obrigação de existir nele, pelo menos uma casa exibidora de filmes. Nossa
cidade, embora fosse uma capital, sua característica era provinciana. A vida
era bela, os bondes deslizavam sobre seus trilhos de aço, distribuídos através
de suas linhas traçadamente delineadas. O technicolor das raças, ainda era bem
visível na população. O chapéu de Panamá,
o brim Diagonal de cor branca vestia
do mais seleto cavalheiro ao mais simples operário. A famosa Rua Chile, a mais chic da cidade, com suas lojas inesquecíveis, era o recanto dos
milionários e da classe média. Todos se conheciam, não existia a violência nem
drogas, e nessa vivência democrática, os tipos populares complementavam a
alegria de viver da população baiana. E entre esses últimos bradava em alto e
bom som o nome de Cuíca de Santo Amaro,
através dos seus folhetins de cordel.
Nesse
espaço multicor, não poderia jamais esquecer a amizade de um homem, semeador
das minhas imensas alegrias, durante o verdejante tempo da minha adolescência:
o velho e inesquecível Inácio. Ele foi um dos últimos tipos populares da nossa
antiga urbe. Na juventude foi sorveteiro de cantimplora (recipiente ainda
utilizado para resfriamento e até hoje visto nas calçadas da subida da Ladeira
de São Bento, no inicio da Avenida Sete de Setembro), onde em frente aos
colégios principais dos diversos bairros vendia o seu sorvete. No curso da
profissão abarcada, foi contaminado pelo bacilo da tuberculose, obrigando-o a
deixá-la. Após a cura da enfermidade, procurou outros meios de sobrevivência,
através de trabalhos diversos, como entregador de panfletos das propagandas dos
filmes, em porta em porta das residências e bilheteiro de casa de projeção. E,
finalmente, vendedor de fitas de cinema.
Inácio era um conhecedor de cinema, havia frequentado suas sessões na fase silenciosa,
recordando os velhos filmes de sucessos e seriados desse período,
familiarizando-se com os nomes dos astros e estrelas famosos. Na separação dos
fotogramas para o seu comércio, distribuía com certos critérios, e, sabia
escolher os mais valiosos para oferecer aos mais exigentes cinéfilos, buscadores
de close-ups de artistas famosos e de seus filmes marcantes, para completarem
suas coleções.
Quando
conheci o Inácio, o mesmo já passava dos cinquenta anos de idade. Ele era
descendente afro e fazia ponto nas portas dos salões cinematográficos mais
frequentados. Um dia era no saudoso “Jandaia”, no dia seguinte, partia para o
“Aliança” ou “Pax”, situados na Baixa dos Sapateiros. E, assim, na sua
maratona, corria pelas principais casas exibidoras, vendendo o seu produto
sedutor, os inesquecíveis pequeninos fotogramas de 35 milímetros, embutidos em
caixas de fósforo e, também, binóculos de madeira, adaptados com uma lente de
óculos e num corte retangular na parte frontal, proporcional ao tamanho da
fita, sendo a mesma presa por dois suportes para segurá-la. Olhando através do
orifício se via uma imagem ampliada do quadro em questão. Essa peça artesanal
era projetada e manufaturada pelas suas próprias mãos. A meninada, além de
gostar das histórias em quadrinhos, o procurava no intuito de comprar as caixinhas
com fotogramas de cenas dos diversos filmes da época. O Inácio conseguia esses
pedaços ou rolos de películas, através dos refugos de trechos danificados das
distribuidoras, ou com operadores de cinema, conhecidos.
Assim
conheci esse espécime humano, educado, bondoso, e fazia de tudo para alegrar a
criançada amante da arte cinematográfica. Tornei-me seu assíduo comprador e
amigo, onde no fim da sua vida quando ele vivia no Asilo D. Pedro II, fiz-lhe
uma justa homenagem com um simples documentário sobre ele, denominado, INÁCIO, O ÚLTIMO VENDEDOR DE ILUSÕES.
Levava-me
ele aos possuidores de projetores de cinema caseiro, resolutos em vendê-los, e
entre esses, alguns eu consegui negociar através do seu intermédio, sem nenhuma
remuneração da sua parte como comissão.
Para
os mais interessados em adquirir sua mercadoria, nos dias de semana, ele podia
ser encontrado sentado num banco da Farmácia Duarte (se não me falha a
memória), instalada na Baixa dos Sapateiros, em frente à Rua 28 de Setembro, e
colada à Praça dos Veteranos, acompanhado de um usado saco de cimento, com os
acessórios de venda dentro. Quando não se achava ali, estava ele em seu outro
ponto, ao lado do Relógio de São Pedro.
No
final da década de 1950, parti para viver na cidade do Rio de Janeiro, e nas
vezes quando ia assistir a um filme, lembrava-me sempre dele. Retornando em 1963, procurei vê-lo, no
entanto, não o encontrei. Seguindo informações sobre seu paradeiro através de
diversos amigos, fui achá-lo no albergue acima citado, passando a visitá-lo
periodicamente. Antes de morrer deixou-me como herança, sua caixa metálica com
um binóculo de madeira, algumas caixas de fósforo composta de fotografias de
celuloide, que guardo com carinho até hoje.
Muitos
foram essas crianças e adolescentes que se tornaram adultos e famosos nas
diversas profissões a artes, adquirentes em potencial desses pequenos “Box” de
fósforo, cheias com pedaços de fitas cinematográficas, cujo prazer de
possuí-las era de uma emoção indescritível, e, só será entendido, no interior,
daqueles que um dia conheceram essa alma sincera. Mas morreu só, esquecido, no
asilo que o amparou em seus últimos momentos de vida, mas o verdadeiro cinéfilo
daquela era dourada guardará para sempre em seu coração, a imagem de INÁCIO, o vendedor de ilusões.
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