O texto não é de minha autoria, que fique bem entendido, mas do jornalista e cineasta Raul Moreira, que saiu, hoje, quinta, no jornal soteropolitano A Tarde. Se um evento causa polêmica, e isto quem está a dizer sou eu, o evento é bom, pois nada pior do que a apatia e a indiferença. A indiferença, aliás, disse Hamlet na famosa pela de Shakeaspere, "também é crime".
"A cena se fez emblemática. Já passava das 22h de domingo quando o cineasta e fotógrafo Lázaro Faria, autor, entre outros, de Cidade das Mulheres, sem falar que fez a câmera do media Superoutro, de Edgard Navarro, rasga a sua credencial na porta do Espaço Unibanco, ato acompanhado por muitos, inclusive pelo vira-lata Glauber Rocha, guardião das paragens e justamente apelidado com o nome do patriarca do Cinema Novo.
O gesto de desagravo se deu por irritação ao filme que tentara assistir, o longa digital A Fuga da Mulher Gorila, obra de Felipe Bragança e Marina Meliande, um dos sete escolhidos para disputar o prêmio nacional do Panorama Internacional Coisa de Cinema, evento que se encerra hoje. O mesmo o fez tantos outros, como o cineasta Edgard Navarro, que abandonou a sessão com um sorriso irônico no rosto, como que dizendo “se isso é o novo cinema brasileiro vou para casa dormir”.
Curioso, foi que A Fuga da Mulher Gorila ganhou o prêmio de Melhor Filme da Mostra de Tiradentes, em 2009, dado pelo júri oficial. Assim, os fatos apontam para dois caminhos: ou a velha-guarda é por demais intransigente e perdeu o olhar para avaliar o “novo cinema brasileiro” ou estamos diante de uma total revolução na abordagem dos cânones cinematográficos.
A resposta, talvez só possa a vir nos próximos anos, pois ainda é cedo para se afirmar categoricamente um juízo de valor, até porque antes de tudo é preciso que tal cinematografia confirme-se duradoura.
No entanto, é impossível não fazer uma constatação: por conta do advento do digital, com todas as suas facilidades, as quais permitem que muitos possam aventurar-se como cineastas, o cinema tornou-se um imenso laboratório no qual a ordem é fazer, independentemente das fragilidades narrativas e de linguagem.
Quando se passa o olho em muitos filmes do Panorama, percebe-se claramente que o “cinema de intenção” venceu, pois, importante é dar vazão a ideia, estruturá-la, transformá-la em roteiro, filmá-la e montá-la, para depois defendê-la de forma politicamente correta, algo, aliás, que está transformando as conversas com os diretores em algo monótono e pouco criativo para as plateias que a acompanham.
Quando se passa o olho em muitos filmes do Panorama, percebe-se claramente que o “cinema de intenção” venceu, pois, importante é dar vazão a ideia, estruturá-la, transformá-la em roteiro, filmá-la e montá-la, para depois defendê-la de forma politicamente correta, algo, aliás, que está transformando as conversas com os diretores em algo monótono e pouco criativo para as plateias que a acompanham.
Como é impossível negar que as atividades artísticas refletem o seu tempo, não resta, até para escapar do caminho da intransigência, observar tal tendência e, quem sabe, vez por outra surpreender-se, até, com leituras pertinentes a respeito da ditadura das imagens. O pernambucano Marcelo Pedroso, por exemplo, com o seu longa digital Pacific, foi feliz ao abordar a relação da pequena burguesia brasileira com as suas filmadoras portáteis em um cruzeiro do Recife à Fernando de Noronha.
Ainda que seja difícil aturar os 71 minutos comprobatórios do que o consumismo é capaz de gerar, o documentário retrata de forma objetiva a relação dos grandes coletivos para com o fetiche das imagens em movimento e de como apropriaram-se de um “fazer cinematográfico”, queira ou não.
O diabo é que ao oferecer um leque de bons filmes contemporâneos e projetar algumas películas dos mestres Eric Rohmer e Akira Kurosawa, além de delícias como o documentário Godard, Truffaut e a Nouvele Vague, de Emmanuel Laurent, o Panorama expôs a fratura que separa o atual “cinema de intenção” daquele que realmente conseguiu catalizar o desejo de seus realizadores.
Em outras palavras: durante uma semana, os muitos títulos exibidos no Panorama foram importantes para se perceber o quanto o cinema é uma atividade volátil e, talvez por isso mesmo, não seja justo confrontá-lo nas suas diversas épocas. No entanto, quando assim se faz, vem o saudosismo e a vontade de gritar “eu quero o meu cinema de volta!”.
Em outras palavras: durante uma semana, os muitos títulos exibidos no Panorama foram importantes para se perceber o quanto o cinema é uma atividade volátil e, talvez por isso mesmo, não seja justo confrontá-lo nas suas diversas épocas. No entanto, quando assim se faz, vem o saudosismo e a vontade de gritar “eu quero o meu cinema de volta!”.
Assinado: Raul Moreira em A Tarde de 03.06.2010
16 comentários:
Concordo, Raul, quando se vê um certo 'cinema de intenção', dá vontade mesmo de gritar: "Quero meu cinema de volta!"
Acho que parte da função de um festival, um panorama ou uma jornada, é justamente suscitar o debate, a crítica e a reflexão em torno da produção, além de se fazer conhecer os filmes que de outro modo não seria possível. Eu acho que o texto do Raul provoca, mas permite a reflexão, e nem todos somos obrigados a concordar com ele. Eu, em certos aspectos, concordo: os novos meios tornam a arte do cinema mais acessível ao desejo de muitos, mas também faz com que haja muita coisa que eu, digo sem pretensão de crítica ou especialista, descartaria. Enfim, o texto do rapaz cumpre a sua função muito bem e nos "convoca" ao debate.
Milena
O surgimento do digital tem feito surgir filmes realizados com a destinação de enchimento dos egos dos cineastas, e os festivais, ao privilegiá-los, estão afastando o seu próprio público dos eventos. O cinema, antes de tudo, tem que ser um espetáculo, como diz sempre o autor deste blog, Setaro. Fui ver alguns filmes nacionais novos no Panorama citado e há alguns que me deram aquela vontade de sair no meio. Mas, por outro lado, ao se ver Rohmer, Clouzot, Kurosawa, entre outros, o Panorama vira uma mostra confirmatória de que o cinema, realmente, está a morrer.
Sim, Milena, concordo com você.
Quando refer: "... para se perceber o quanto o cinema é uma atividade volátil...", deveria ser acrescentada a palavra "hoje" entre "o cinema é" e "uma atividade volátil", pois que filmes de outra época não os considero... Ou se vai afirmar isto de um "Cidadão Kane" ou um "Ano passado em Marienbad"?
Embora a linguagem seja a mesma, acho que se deve separar os filmetes digitais dos filmes mais profissionais. Com talento uma pessoa é capaz de fazer um belo filme em digital. Mas os festivais precisam fazer uma triagem com mais rigor em relação aos filmes que querem dar a ver ao público. Quando da época do Super 8, por exemplo, aguentou-se muita porcaria pelo amor da arte. Mas, atualmente, este amor está cada dia mais se escafedendo. Vai-se ao cinema para ver algo belo e bom. Não se pode perder mais tempo com este 'cinema de intenção' que tanto nos aporrinha. Sou uma senhora que conta já meio século de existência. Sou cinéfila e aprecio o blog de Setaro. Parabéns, Setaro, por ter publicado no seu blog este texto de Raul Moreira. Sou sua comensal, embora ele não saiba, nem me conhece, de seus 'spaghettis' nas sextas da Praia do Livro. Embora paulista de nascimento, moro há muito tempo na Bahia.
Li algumas críticas ao Programa Aprovado. Você estava ótimo e o tempo do programa não daria mesmo para abarcar, como alguns quiseram, os cem anos do cinema baiano. Os filmes de Roberto Pires, principalmente A grande feira e Tocaia no asfalto são as melhores coisas produzidas na Bahia.
Beijos,
É bom lembrar que o panorama reflete a Bahia de hoje com sua cultura da indiferença. E se a indiferença é crime, tem muita gente da classe cinematográfica baiana com as mão sujas.
Jamille
Curioso que achei A FUGA DA MULHER GORILA muito irregular, talvez até ruim, mas com momentos, espasmos, bem bons.
Com relação à vitória da intenção, é jogar no lixo a execução - e por tabela, o cinema. Que foi um pouco da sensação que tive ao ver o FANTASMAS, interessante, ok, mas que me decepcionou um bocado quando lembramos que cinema, entre outras coisas, é mise-en-scène. RECIFE FRIO, ufa, ganhou o prêmio do juri jovem - que foi uma das melhores ideias de todo o Panorama.
A maior parte dos filmes 'de intenção', vi-os como jurado da mostra Tiradentes. Quanto ao Panorama Coisa de Cinema, passei a semana em casa acometido por uma virose, que impediu até uma viagem programada desde terça. Mas o que me doeu mais foi ter perdido a exibição de 'Redenção'.
A facilidade aos meios técnicos de produção tem ampliado a safra de criações artísticas. Alie a isso, a popularização do acesso à Internet, por pelo menos parte de nossa população, como um importante meio de divulgação e distribuição dessas produções, à praticamente custo zero. Hoje, qualquer paria com uma câmera na mão consegue expressar seus anseios e suas opiniões, seja por um vídeo registro ou ficcional, através de sua própria ótica. Vejo com bons olhos este novo modelo de produção, pois os realizadores podem se desprender das amarras e determinações da indústria cultural, tendo liberdade na criação e comunicando-se de modo mais horizontal com seu público.
O texto de Raul Moreira não se limita a tratar essa situação de maneira entusiasta e cega. Sua crítica faz-se pertinente, não por culpa das facilidades que hoje nossa classe média tem de adquirir a tecnologia necessária para a criação e produção (o que é algo positivo); a validade da crítica está na ignorância dos pretensos cineastas. Pessoas sem o mínimo embasamento cinematográfico, sem nenhum conhecimento sobre a arte fílmica, realizam vídeos, o que lhes confere um status por parte de um grupo de outros ignorantes, que é a platéia. Eles apenas se fantasiam de intelectuais, de cinéfilos, e representam socialmente este papel, mas não têm a munição necessária para corresponder a essa pretensão visual, tornando-se farsantes. Essa constatação é tranquilamente comprovada ao assistir tais filmes. São feitos do alto de uma arrogância sem sentido nem motivo e o resultado são fitas enjoadas, chatas, idiossincráticas, que não sabem se expressar através do cinema, pois estes realizadores não sabem "falar" por esta gramática. O pior de tudo isso é que ainda há público para esse tipo de expressão. Estes, por sua vez, configuram-se em outro bando ansioso por um status de sei lá o quê.
Preocupante é o que Raul Moreira escreveu em sua provocação: "(...) é impossível negar que as atividades artísticas refletem o seu tempo (...)". Sendo assim, vivemos um momento em que os artistas são aventureiros ignorantes e pseudos cineastas de vanguarda? A vanguarda propõe a ruptura com paradigmas de uma dada expressão, de uma dada linguagem, e para isto ocorrer faz-se necessário um mergulho nessa linguagem, a fim de que se tenha conhecimento necessário sobre o que vai ser rompido. Entretanto, não é isso que vemos no tal cinema de intenção; não há ruptura, pois não há conhecimento prévio.
Filipe Dunham
REDENÇÃO foi emocionante, Setaro. Curioso - pra dizer o mínimo - ver os atores, mais de cinco anos depois, na tela e ao seu lado.
Outro ponto positivo do Panorama foi TERRA ESTRANGEIRA em 35mm. Tinha visto apenas em DVD, revisão fez muito bem ao filme.
Comentário lúcido, Filipe, que bem reflete o impasse contemporâneo da criação cinematográfica no Brasil.
Diz você a certa altura de seu texto: "Preocupante é o que Raul Moreira escreveu em sua provocação: "(...) é impossível negar que as atividades artísticas refletem o seu tempo (...)". Sendo assim, vivemos um momento em que os artistas são aventureiros ignorantes e pseudos cineastas de vanguarda?"
Sim, há uma avalanche de pseudos cineastas de vanguarda.
"Redenção", por incrível que pareça (o tempo passa, o tempo passa), vi-o no seu lançamento há cinquent'anos.
Er... Onde disse "cinco" entenda "cinquenta".
Adorei :) Pena que não tava aí pra ver isso... O filme assusta... bu! As reaçoes ao show da mulher-gorila costumam ser essas em q circo: sair correndo assustado e confuso! Bingo! :)
Setaro:
Eu vi "Mulher Gorila" e boa parte desses filmes que chamaram de "cinema de intenção" e só posso discordar do que Raul Moreira afirmou. Confesso que há muito que um festival não me empolgava tanto: dos curtas sensacionais, como o "Recife Frio", "Avós" ou "Faço de Mim O que Quero" aos longas como "Um Lugar ao Sol", "Pacific", "Viajo Porque preciso" e o citado "Mulher Gorila". Sobre este último lamento apenas a baixa qualidade da cópia exibida, mas é um filme comovente e muito digno, com todas as dificuldades. O que meis me entusiasmou e surpreendeu na seleção deste ano - e fiz questão de parabenizar Claudio pelo feito - foi perceber como os filmes dialogavam entre si, independente
do período de sua realização ou origem. Ver a ousadia formal e temática de filmes como "Iracema", "Viajo...", "Pacific" e "A Cidade de Sylvia" praticamente em bloco numa única semana foi realmente estimulante e prazeroso para aqueles que amam o cinema. Como "Mulher Gorila" São filmes difíceis de uma tradução imediata - não são mainstream, nem tampouco marginais - e talvez por isso provoquem a "ira santa" dos figurões credenciados. Meu medo é que estejamos mal-acostumados e nostálgicos de festivais de fachada, compostos por filmes-medalhões e pré-estreias, que pouco ou nada tenham a dizer(ou, pior ainda, nem mesmo polemizar).
Julio
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