Filme-síntese de Alfred Hitchcock, obra-prima (se é possível que um autor tenha mais de uma), “Intriga internacional” (“North by Northwest”), lançado nos Estados Unidos em 17 de julho de 1959, acaba de completar, semana passada, 54 anos de existência.
Realizado entre “Um corpo que
cai” (“Vertigo”, 1958) e “Psicose” (“Psycho”, 1960), “North by Northwest” é, a
rigor, a narrativa de uma iniciação onde o herói é uma criatura de ficção -
Roger Thornhill/Cary Grant - que se revolta contra um destino imposto pelas
circunstâncias e luta contra uma encenação que lhe é determinada e da qual
procura escapar.
Desde a abertura dos créditos,
com as linhas que se cruzam, para a emergência de edifícios, um magnífico e
inovador projeto de Saul Bass, com a partitura dissonante de Bernard Herrmann,
a "mise-en-scène" se insinua, a abastecer o espectador com um trato
raro das possibilidades expressivas da arte do filme.
Fonte de inspiração para a
maioria dos "thrillers" dos anos 60 (inclusive os primeiros filmes de
James Bond, o agente secreto 007, que, segundo François Truffaut, não
existiriam sem o advento de “North by Northwest”), “Intriga internacional” é
uma obra de gênio e sintetiza toda a primeira fase americana de Hitchcock,
assim como “Os 39 degraus” (“The thirty-nine steps”,1935) pode ser visto como
uma súmula de seus primeiros filmes ingleses.
Roger Thornhil é um americano
típico de meia-idade que faz parte da maioria que caracteriza a sociedade de
consumo estadunidense. Na opinião de Noel Simsolo, exegeta da obra
hitchcockiana com tese de doutorado na Sorbonne sobre o autor, Roger não é
totalmente adulto, desenvolveu-se por preguiça, não tem uma personalidade
marcante, não tem alma. As forças dos espiões e, indiretamente, da polícia,
fazem com que se transforme em um outro: Kaplan, bode expiatório, criação
fictícia das forças do serviço secreto. Por causa dessa identificação, como
observa Simsolo, Thornhill terá o seu calvário, o que o levará à união com Eve
- a possibilidade de uma vida real para ele.
Na primeira parte do filme,
Thornill é vítima dos outros e encontra Eve/Eva Marie Saint, agente duplo, mas
não consegue perceber a realidade na qual se encontra envolvido. “Intriga
internacional” é brilhante como idéia e como execução, porque puro cinema, pura
"mise-en-scène" e, como narrativa de um itinerário, de um percurso,
é, também, uma luta contra a encenação à qual o personagem é forçado a
combatê-la. Hitchcock, com seu gênio, com a sua astúcia, com a sua
inteligência, não estaria a fazer, neste filme admirável, uma reflexão sobre o
próprio espetáculo cinematográfico?
A partir do meio, Roger
abandona o combate impossível contra a representação (caça e a morte em
questão) para se refugiar junto à polícia e aceita uma encenação tendente a
salvá-lo e a fazer com que mereça Eve. No último terço do filme, Roger, ainda segundo Simsolo, recusa as consequências da
representação que aceitou, e segue seu impulso, age sozinho e merece não apenas
viver como ganhar Eve.
(A minha admiração por “Intriga
Internacional” é enorme. O impacto inicial se deu quando o vi pela primeira vez
nos anos 60, algum tempo depois de seu lançamento. A partir daí, anos sem o
ver, com o filme apenas na memória, quando, em 1977, houve o seu relançamento
em cópia nova. A constatação de sua grandeza não apenas se ratificou como
aumentou muito, porque já um pouco mais afinado com a expressão
cinematográfica. O tempo passou. Nos anos 80, “North by Northwest” é lançado em
VHS, mas antes o tinha revisto em cópia espúria dublada na televisão. O seu lançamento
em DVD restituiu a sua majestade. Comprei-o imediatamente e sempre o revejo.
Pelo menos três vezes por ano. É quase uma terapia.)
“Intriga internacional”
assombra o cinéfilo, e é uma lição fecunda de cinema, de
"mise-en-scène". Atestado do que disseram Claude Chabrol e Erich
Rohmer no livro que escreveram sobre o mestre, “Le cinema selon Hitchcock” (que
nunca saiu em tradução no Brasil): "Em Hitchcock, o conteúdo é a
forma". Hitchcock, porém, se, atualmente, pode ser considerado uma unanimidade
da crítica especializada, nas décadas de 40 e 50, no entanto, não era visto
como um autor, mas como um habilidoso mestre do suspense. Foi preciso esperar a
sua consagração pela revista francesa Cahiers du Cinema, que lhe descobriu as
potencialidades expressivas como um dos maiores autores do cinema de todos os
tempos. Por todo o respeito que tenho, por exemplo, em relação ao ensaísta
baiano Walter da Silveira, em seu livro - uma belíssima reflexão sobre a arte
cinematográfica, “Fronteiras do cinema”, não soube, porém, no ensaio “As
vertigens de Alfred Hitchcock”, compreender a sua importância e a sua essência.
Mas como escreveu Truufaut:
“Porque domina os elementos de um filme e impõe idéias pessoais em todas as
etapas da direção, Alfred Hitchcock possui de fato um estilo, e todos
reconhecerão que é um dos três ou quatro diretores em atividade que conseguimos
identificar só de assistir a poucos minutos de qualquer filme seu.”
O mestre, ao perceber que o
vilão não poderia estar concentrado somente na figura de James Mason, um ator
de “finesse” insuperável, decidiu reparti-lo em três. Assim , há uma
trindade na personificação da vilania: o próprio Mason (Vandamme), Martin
Landau (Leonard) e um outro com cara sempre zangada e com um físico de origem
germânica. No DVD que se encontra disponível, o roteirista genial Ernest Lehman
comenta o filme cena por cena.
Mas, e a pedir a ajuda da
exegese de Noel Simsolo (que está no livro “Alfred Hitchcock”, de Noel Simsolo,
editado da Distribuidora Record na coleção “Grandes Cineastas”, tradução de
Wilson Cunha do original publicado em Paris, 1969, pela Seghers), que se veja
aqui a beleza dos significados que podem ser extraídos desta obra-prima: “O
tema do filme, meditação sobre a vertigem de criar e amar uma obra de arte,
explode no início da segunda parte, quando Thornill dialoga com o chefe dos
espiões (James Mason). Conversa sobre o papel do objeto de arte ou sobre as
possibilidades da alma. Diálogo em que aceitamos Eve como uma obra de arte,
meio de transição entre o sonho e a realidade, entre o corpo e o espírito,
entre a passividade e o movimento, entre as trevas e a luz, a ignorância e o
conhecimento. No fim do filme, o plano de um trem entrando em um túnel marca a
posse sexual de Eve por Thornill e a posse da vida e do filme por esta
personagem de ficção. “North by Northwest, portanto, é o negativo de “Vertigo”.
Duas seqüências, pelo menos,
são antológicas: a do teco-teco que persegue, em amplo espaço aberto, num campo
de trigo, Roger Thornill, e a da fuga do casal pelos Montes Rushmore. Nesta
última, há notória influência de Eisenstein, principalmente no que se refere à
disposição, dentro do plano, dos volumes e da arte de significar pelo espaço
cinematográfico. Hitchcock disse certa vez em uma entrevista a “Le Monde” logo
após o lançamento de “North by Nortwest” em Paris: “Faço o máximo para ligar o
“décor” à ação. Em “North by Nortwest”, situei a perseguição nos Montes
Rushmore onde estão esculpidos os rostos dos presidentes dos Estados Unidos.
Parece-me interessante mostrar a silhueta e a figura dos atores tão pequenos
contra os grandes narizes e orelhas dos presidentes. Eu gostaria de ter filmado
todas as cenas lá, mas não me permitiram. Pensei mesmo em fazer com que Cary
Grant entrasse pelas narinas de Abraham Lincoln, mas é claro que isto era
impossível.”
E mais: “Minha lógica é uma
lógica de mórmon. Vocês conhecem os mórmons? Quando as crianças fazem uma
pergunta difícil, eles respondem: “Vá brincar, menino”. Existe algo de mais
importante do que a lógica, é a imaginação. Se pensamos primeiramente na
lógica, não podemos imaginar mais nada. Frequentemente, trabalhando com meu
roteirista, eu lhe dou uma idéia: “Mas isto é possível!”. A idéia é boa, apesar
de ela ir contra a lógica. A lógica deve ser jogada pela janela.”
2 comentários:
Esse plano geral que o senhor escolheu como foto do texto é algo absurdo, muito bonito. Gosto demais desse filme e é incrível as escolhas de enquadramento que Hitchcock fez nele.
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