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05 janeiro 2010

Gênio mesmo é Machado de Assis. O resto é bobagem.

Não me lembro mais onde li, mas fiquei a pensar: "Nos livros de Machado de Assis não existe paisagem". A constatação é curiosa e revela que o bruxo do Cosme Velho era um escritor "avant la lettre". Nos grandes romances do século XIX, quase todos são muito detalhados em relação à descrição da paisagem. Em Honoré de Balzac, por exemplo, um capítulo de "Eugenia Grandet" é quase todo dedicado, com um luxo de detalhes, à descrição, a chegar ao cúmulo de descrever, numa casa, as pedrinhas, os talhes da porta e das janelas. Balzac é muito detalhista, mas a análise paisagística é uma tônica do romance do século retrasado.

Mas em Machado de Assis (1839/1908), se há descrição, esta é bem sucinta. O mestre, o maior dos escritores brasileiros em todos os tempos, principalmente a partir de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), o seu "estalo de Vieira", preocupa-se mais na reflexão das coisas que estão sendo ditas. O seu período descritivo e uma descrição "light" - termina em "Iaiá Garcia" (1878).

Acho que foi Autran Dourado quem disse que todo ano lê, religiosamente, "Brás Cubas", "Quincas Borba" (1892), e "Dom Casmurro" (1900), "para limpar a língua". A estilística machadiana é única e insuperável, a fazer dele um autor singular. Encontra-se entre os maiores da história da literatura, mas seu azar foi ter escrito em português, língua rica, mas pouco lida. Há décadas atrás, está a ser revisado e apreciado nas universidades americanas e européias, e o crítico Harold Bloom (aquele da "Angústia da influência" e "O cânone ocidental") o tem em alta conta.

Verdade seja dita, e dita por um grande admirador do grande romance do século XIX, a descrição esmiuçada da paisagem é irritante. Mas naquela época, quando a fotografia ainda era muito incipiente, e o cinema só veio a existir a partir de 1895, havia a necessidade de o leitor ter a paisagem imaginada. Mas Machado de Assis não se molda a esta querência de realidade, excluindo-a de seus últimos romances. Mas se poderá argüir que o bruxo do Cosme Velho descrevia o Rio de Janeiro da Corte Imperial. Sim, mas com citações breves: "Enfiou-se pela rua dos Inválidos, mas viu que era longe para chegar à rua do Ouvidor". E pronto.

Mas relendo "Helena" (1876), que precede a fase maior do romancista, há rigorosa estruturação da fábula, ou da história. Os elementos da fabulação estão em perfeita sintonia com a perspectiva de expectação do leitor, que desliza seus olhos pela sintaxe machadiana com um grande interesse pelo que está por vir. Ainda na sua época romântica, o desfecho, trágico, faz parte do momento. Vê-se, aqui, um escritor rigoroso no seu pleno domínio da narrativa ou, a melhor dizer, da sintaxe da língua.

A magistral utilização do tempo em "Quincas Borba", para ficar num exemplo apenas, mostra que, em sua segunda fase, Machado procura somente a reflexão. Rubião Braz acorda num dia de Ano Novo, senta-se num sofá e, com as mãos, fica a mexer nas borlas do roupão. Pensa em como chegou até aquela posição confortável e, até quase a metade do livro, a "ação" localiza-se nos arcanos da memória do grande personagem, a reviver como veio a conhecer Cristiano Palha e a bela, esplendorosa, magnífica Sofia (talvez a mulher mais perfeita "esculpida" por Machado de Assis).

Certa ocasião, vários intelectuais, encantados e extasiados com a prosa de "Quincas Borba", foram a Ferreira Gullar lhe perguntar o que queria Machado de Assis realmente dizer no livro. Gullar pensou um instante e respondeu: "É um livro sobre a arte de escrever".

Se, na fase romântica, anterior à explosão "brascubasiana", e, com ela, a desconstrução do romance tradicional, Machado procura estabelecer a estrutura narrativa numa forma "in progress", a partir de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" tudo se reduz ao estudo de caracteres, muito embora, já no seu primeiro livro, "Ressurreição", pretenda, justamente, antes de tudo, a observação de comportamentos.

Escreveu Machado na advertência da primeira edição de "Ressurreição" (1872): "Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o contraste de dous caracteres; com estes simples elementos busquei o interesse do livro. A crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito, e, sobretudo, se o operário tem jeito para ela. É o que lhe peço com o coração nas mãos".

Para buscar o interesse do leitor, apóia-se em dois simples elementos: o esboço de uma situação e o contraste entre caracteres. O propósito do primeiro livro se alarga a partir de então até atingir a metalinguagem, a meta-literatura a partir de "Brás Cubas", quando, em determinado momento, para desfazer a ânsia das leitoras da "biblioteque rosé", dá-lhes o conselho de pular o capítulo, caso queira saber logo os detalhes de determinado assunto. Um escritor na melhor tradição de Cervantes e Xavier de Maistre.

As adaptações cinematográficas dos livros de Machado de Assis sempre foram desagradáveis àqueles que conhecem o estilo do grande mestre. "Dom Casmurro", por exemplo, que se chamou "Capitu" na versão cinematográfica, é um verdadeiro assassinato à obra literária perpetrada por várias mãos: as de Paulo César Saraceni (diretor), e, por incrível que pareça, pelas mãos de duas reconhecidas e talentosas pessoas das letras: o crítico cinematográfico e autor literário Paulo Emílio Salles Gomes e sua esposa, na época, Lygia Fagundes Telles. Sem falar na eleita para o papel título tão delicado: a desajeitada Isabella, escolhida porque era, então, mulher de Saraceni.

"Quincas Borba", do ilustre realizador paulista Roberto Santos, nem chegou a ser lançado, mas o que se diz é que é um filme abaixo de qualquer crítica. Vários contos de Machado foram adaptados para a tela, mas com resultados pífios, a exemplo de "Um homem célebre", com Walmor Chagas. E se chegou ao cúmulo de querer modernizar o bruxo do Cosme Velho com outra versão de "Dom Casmurro" cuja ação se passa na época atual: "Dom", de Moacyr Góes, com Maria Fernanda Cândido e Marcos Palmeira. O resultado? Melhor não dizê-lo.

O fato é que o romance filmado é uma utopia, porque duas práticas narrativas que se baseiam num diferente noção de espaço e de tempo. A menos que se queira ficar-se pela "ilustração" de histórias contadas pelo romance, o filme deve converter para o seu espaço-tempo a ação que pediu de empréstimo ao primeiro. Não deve haver, portanto, qualquer preocupação de fidelidade à letra do texto original mas, pelo contrário, a mais ampla liberdade na procura de soluções dramáticas e de "figuras" estilísticas capazes de produzir, na tela, o mesmíssimo efeito poético confiado na página a outros tantos recursos ao dispor da linguagem escrito-verbal. Hitchcock já disse, na sua proverbial sabedoria, que nunca gostou de adaptar obras literárias consagradas. E cita um exemplo: caso alguém queira filmar "Crime e castigo", de Dostoievsky, o filme teria de ter um tempo (para manter fidelidade) de duração excessivo: mas de duzentas horas de projeção. Mas, mesmo assim, a estilística dostoievskyana desapareceria em função da narrativa do realizador cinematográfica. E, perdido o estilo, tudo se perde, porque, como dizia Buffon, "o estilo é o homem".

5 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pelo blog!

Faço parte da ASCOM/DIMAS e gostaria de saber se é possível encaminharmos a programação das Salas Walter da Silveira e Alexandre Robatto para eventual divulgação.

Em caso afirmativo, por favor informe o e-mail para o qual devo enviar as informações.

O endereço eletrônico é programacaodimas@gmail.com

Desde já agradecida pela atenção.
Ana Catarina,
ana.catarina@funceb.ba.gov.br
Núcleo de Difusão/ASCOM
DIMAS

Tucha disse...

Acho a obra do Machado um primor... mas dai achar o resto bobagem é um pouco demais.

Jonga Olivieri disse...

Machado construiu descontruindo aquilo que não prestava.
Lançou uma nova maneira narrativa e colocou em cheque (mate) o romantismo de então.
Seu valor é indiscutível.

André Setaro disse...

O título tem o fito da provocação e da ênfase. Mas é claro que existem outros grandes escritores que admiro na literatura brasileira para não falar na internacional. E, entre eles, Graciliano Ramos, Lima Barreto, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, entre outros. Depois de Machado, que não se compara mas se separa (está à altura de um Flaubert, de um Stendhal), o que mais aprecio é Graciliano, o velho Graça. Estou a ler agora um excepcional memorialista, que não conhecia: Antonio Carlos Villaça. O livro se chama 'O nariz do morto'.

E tenho por Nelson Rodrigues a maior admiração, principalmente pelo seu grande teatro.

Kyo disse...

Achei o texto realmente fantástico. Admiro muito a obra Machadiana por diversos motivos. Até mesmo a sua obra Romântica, considerada de menor valor literário, é muito forte, pela construção do caráter das mulheres. Em todas as obras do Machado, a mulher é forte e decidida. É, sem dúvidas, uma herança que ele pegou de Alencar e melhorou infinitas vezes.


Ainda acho interessante destacar como Machado opõe-se às diversas correntes Naturalistas da época. Ele desmente o Determinismo, de Taine, que dizia que o homem era fruto do meio em que vive, da sua raça e momento histórico. Machado venceu sendo negro, numa sociedade racista e com resquícios coloniais. É realmente um ser digno de admiração.

Enfim, eu me inspiro muito em seu estilo para escrever meus textos. Se quiserem, passem por lá para ver alguns: www.pequenashistorias-kyo.blogspot.com