Tomo a liberdade de transcrever o lúcido e coerente comentário de Inácio Araújo em seu excelente blog (http://inacio-a.blog.uol.com.br/ ) sobre o drama do financiamento do filme brasileiro. É um assunto para reflexão.
(1) Fazer um filme requer dinheiro; 2) Cinema é atividade deficitária.
A questão última, incontornável, deixada por essas duas constatações é: o cinema (brasileiro) precisa existir ou não?
Há quem, como o Daniel, não tem paciência com o Danilo. Há quem, como o Milton, responda com argumentos aos raciocínios divergentes.
Tenho a impressão de que raciocínios como o do Danilo resultam, em grande medida, de velhos preconceitos em relação ao cinema nacional, somados a essa indignação meio vaga que rola pelos blogs um pouco contra tudo e contra todos, esse tipo de suspeição indiferenciada que transitava pelo "M – O Vampiro de Dusseldorf", com um espírito de linchamento no ar. Ele atinge políticos, em primeiro lugar e por razões meio óbvias, mas pode espirrar em qualquer um.
Como existe um rescaldo neoliberal nessa história, qualquer pessoa com relação direta com o Estado torna-se suspeito.
Assim, o módico subsídio ao cinema torna-se o "meu imposto", aquele mito de que Roland Barthes deu conta nos anos 50 ("Mitologias"). Não se trata do cidadão, trata-se do cidadão reduzido à condição de contribuinte. E indignado.
As contas do Daniel me parecem certas. Mais ou menos eu já as apliquei a um jornalista que veio com esse papo quando eu não queria conversa: dei uma moeda de cinco centavos e pronto.
Mas é claro que a coisa é mais complicada.
Mais resistente, também. E o cinema também tem parte nisso.
Vou tentar fazer uma enumeração, no sentido de abreviar as coisas, para não aborrecer ninguém, ou aborrecer o mínimo possível.
1) A renúncia fiscal é, sim, uma renúncia da sociedade. Se é pequena ou grande, é outra história. Dentro dela, dois aspectos: a) por que o cinema chama tanto a atenção se, de fato, é tão pequeno?; e b) por que o cinema acha que não deve nunca prestar contas disso, que se trata de uma espécie de obrigação da sociedade sustentá-lo e não de uma opção?
2) Quanto ao aspecto b), devo dizer logo de cara que me parece completamente indispensável o financiamento dos filmes pelo Estado. No entanto, é preciso convir que nunca criamos mecanismos capazes de escapar às suspeitas de favorecimento e coisas assim. O fato de transferir a responsabilidade da esfera pública (Embrafilme no passado) para a privada (leia-se: Petrobrás, BNDES, Eletrobrás, etc.) não altera o fundamental. Ou antes, piora: quem decide que filmes serão feitos ou não? São comissões "da sombra". A Embrafilme ao menos se expunha. Teoricamente, mas se expunha. Agora, não.
3) Quanto dinheiro é necessário para fazer um filme? De vez em quando o MinC lança um edital do "baixo orçamento", um pouco como quem atira moedas aos pobres no trânsito. Mas não promove uma mísera discussão sobre o orçamento dos filmes e sua relação entre custo e eficácia. Nem promove uma mínima ação para baixar o custo dos filmes e facilitar que se façam mais filmes. Ora, já vi projetos (isso já faz anos) em que o valor do roteiro era de R$ 300 mil. Hoje seria o dobro. O que deve ser mais do que a Clarice Lispector, digamos, recebeu de direitos autorais ao longo da vida. O roteiro não valia nada, por supuesto, o que é outra história. Mas é preciso haver diretrizes claras sobre certas coisas, traçar linhas entre o justo e o abuso. Não é fácil, mas é necessário. Nem todo filme pode ser barato. Mas há que se evitar o mais possível esse tipo de abuso.
4) Quanto vale o trabalho de um ator? Me lembro que, quando morei na França, os orçamentos eram montados em torno disso. O Delon "valia" 500 mil entradas em Paris, a Deneuve, 400 mil. Faz sentido. Quanto vale aqui a Fernanda Montenegro? Ou o Tony Ramos? Não se pode aferir. Porque em termos de mercado tudo é absolutamente distorcido, sobretudo pela TV. Então, não se pode falar em termos de mercado. O valor de um filme nunca é o de troca. Tem de haver um outro valor. Todo mundo que gosta de cinema sustenta que o melhor filme do ano foi o do Tonacci. A "classe", quando deu seu prêmio, nem passou perto, entre outras porque não deve tê-lo visto. Um problema a que se devia dedicar a Ancine é este: partir da percepção de que existe o caos nesse setor e ver de conter esse caos. Por isso, não deve causar indignação quando alguém sugere que "seu imposto" é usado para pagar "celebridades". Pode até ser uma fantasia, não importa. Mas também é verdade que os orçamentos de cinema raramente são claros. Transparentes, para usar a palavra do momento.
5) Quando um filme é proposto a qualquer comissão, o mínimo a exigir dele devia ser um plano de marketing. Ou seja, com quem esse filme pretende falar e como. Qual é seu ponto de venda? Na prática, isso se chama trailer. O trailer devia ser feito antes do filme (não o trailer físico, é claro). Mas como exigir isso num não mercado como o nosso? Em outras palavras: se não se resolve a questão da distribuição, se ao menos não se começa a pensar nela, para que fazer os filmes? Para ficar no fundo de um armário? Para que os filmes da Globo façam um milhão de espectadores, sejam aceitáveis ou não, só porque possuem uma grande máquina de publicidade por trás e trabalham no sentido de reiterar algo que o espectador já se acostumou a ver? (casos recentes: "Se Eu Fosse Você" e "Divã").
6) Se a maior parte dos filmes não leva espectadores ao cinema, como exigir que os exibidores ponham filmes nacionais na tela? Eles têm prejuízo, é claro. Isso posto, por que não existe um mecanismo para subsidiar as salas de cinema? A construção e a manutenção delas. Daí pode-se exigir, em troca, a exibição de filmes brasileiros dentro de certas normas a serem definidas.
7) E por falar nisso por que o preço das entradas é tão absolutamente pornográfico, proibitivo, restritivo, feito para ricos? Cinema sempre foi arte de pobres, para pobres, para "o povo". Não é aceitável que ninguém se preocupe com isso e ache que cinema custar o que custa é um fato da natureza. Não é.
8) Acima de todas essas coisas, me parece que o cinema não pode ser pensado como um caso isolado. Porque o preconceito também não é isolado. Há os que não vão ceder por nada. Eles acham que o dinheiro, público, é uma coisa para ser enfurnada. Não é. Isso é um pensamento construído sobre premissas falsas, sobre a idéia de que não existe investimento, mas gasto. É esse pensamento que levar a supor que Bolsa Família é distribuição indevida do "meu imposto", que só serve para incentivar a preguiça, essas coisas. Ele não leva em conta que isso promove distribuição de renda, faz a sociedade funcionar sobre a construção e existência de um mercado interno (não se espantem, eu estudei Celso Furtado em tempos muito remotos). Em geral, quem pensa assim são uns ferrados, mas assumem o pensamento dos "ratos endinheirados". Nesse particular tenho muitas dúvidas. Ou antes: se eu tomo a periferia de São Paulo, essa coisa que chamam de bairros, não são na verdade bairros. São depósitos de gente. De pessoas que não têm a mínima chance de acesso a bens culturais. Mas é aí que se pode construir o mercado brasileiro de cinema. É aí que pode surgir o cinema barato. Aí que os Céus, Cieps e que outro nome tenham precisam existir para mostrar filmes, peças de teatro. Enfim, para fazer a função do cinema, que é tornar as pessoas felizes e informadas. Não endinheiradas. Mas felizes, informadas, integradas à cultura. Aí o cinema pode entrar e mostrar uma série de coisas sobre o Brasil e o mundo. A preço acessível, isto é, justo. Sem essa história de ONG. Isso é obrigação do mesmo Estado que dá dinheiro para cineastas e que tais. Mostrar os filmes. Fazer com que existam. Montar filmotecas (isso hoje é barbada, o DVD é barato). Ora, como querem que as escolas públicas depois funcionem na hora do Enem? Não pode. Então formamos uma sociedade de analfabetos funcionais e esperamos que funcione. Não funciona. O cinema não é tudo. Mas também não é essa coisa só de dar dinheiro para ratos endinheirados, pagar salário de celebridades. Os filmes têm uma função. Precisam de um empurrãozinho, caramba.
9) Peço que me perdoem por esse post que mais parece discurso do Fidel Castro, mas o assunto é mesmo interminável e mais cedo ou mais tarde íamos topar com ele. Então que seja agora, que estamos numa entressafra cinematográfica dolorosa (ah, tem tantos filmes nacionais que podiam ser lançados nessa hora em que a indústria está meio fora de eixo), e em que acabei de sobrevoar São Paulo. De cima é uma visão terrível. Não sei como se pode viver aqui não sendo rico. É que nem sociedade de casta: ¾ das pessoas estão condenadas a vegetar, sem chance nenhuma. A TV é que engana e faz parecer que não é.
10) Para quem quiser pensar no assunto (e para completar o decálogo), fica aí a frase luminosa do Rogério Sganzerla: "Um país sem cinema é que nem um país sem luz elétrica".
A questão última, incontornável, deixada por essas duas constatações é: o cinema (brasileiro) precisa existir ou não?
Há quem, como o Daniel, não tem paciência com o Danilo. Há quem, como o Milton, responda com argumentos aos raciocínios divergentes.
Tenho a impressão de que raciocínios como o do Danilo resultam, em grande medida, de velhos preconceitos em relação ao cinema nacional, somados a essa indignação meio vaga que rola pelos blogs um pouco contra tudo e contra todos, esse tipo de suspeição indiferenciada que transitava pelo "M – O Vampiro de Dusseldorf", com um espírito de linchamento no ar. Ele atinge políticos, em primeiro lugar e por razões meio óbvias, mas pode espirrar em qualquer um.
Como existe um rescaldo neoliberal nessa história, qualquer pessoa com relação direta com o Estado torna-se suspeito.
Assim, o módico subsídio ao cinema torna-se o "meu imposto", aquele mito de que Roland Barthes deu conta nos anos 50 ("Mitologias"). Não se trata do cidadão, trata-se do cidadão reduzido à condição de contribuinte. E indignado.
As contas do Daniel me parecem certas. Mais ou menos eu já as apliquei a um jornalista que veio com esse papo quando eu não queria conversa: dei uma moeda de cinco centavos e pronto.
Mas é claro que a coisa é mais complicada.
Mais resistente, também. E o cinema também tem parte nisso.
Vou tentar fazer uma enumeração, no sentido de abreviar as coisas, para não aborrecer ninguém, ou aborrecer o mínimo possível.
1) A renúncia fiscal é, sim, uma renúncia da sociedade. Se é pequena ou grande, é outra história. Dentro dela, dois aspectos: a) por que o cinema chama tanto a atenção se, de fato, é tão pequeno?; e b) por que o cinema acha que não deve nunca prestar contas disso, que se trata de uma espécie de obrigação da sociedade sustentá-lo e não de uma opção?
2) Quanto ao aspecto b), devo dizer logo de cara que me parece completamente indispensável o financiamento dos filmes pelo Estado. No entanto, é preciso convir que nunca criamos mecanismos capazes de escapar às suspeitas de favorecimento e coisas assim. O fato de transferir a responsabilidade da esfera pública (Embrafilme no passado) para a privada (leia-se: Petrobrás, BNDES, Eletrobrás, etc.) não altera o fundamental. Ou antes, piora: quem decide que filmes serão feitos ou não? São comissões "da sombra". A Embrafilme ao menos se expunha. Teoricamente, mas se expunha. Agora, não.
3) Quanto dinheiro é necessário para fazer um filme? De vez em quando o MinC lança um edital do "baixo orçamento", um pouco como quem atira moedas aos pobres no trânsito. Mas não promove uma mísera discussão sobre o orçamento dos filmes e sua relação entre custo e eficácia. Nem promove uma mínima ação para baixar o custo dos filmes e facilitar que se façam mais filmes. Ora, já vi projetos (isso já faz anos) em que o valor do roteiro era de R$ 300 mil. Hoje seria o dobro. O que deve ser mais do que a Clarice Lispector, digamos, recebeu de direitos autorais ao longo da vida. O roteiro não valia nada, por supuesto, o que é outra história. Mas é preciso haver diretrizes claras sobre certas coisas, traçar linhas entre o justo e o abuso. Não é fácil, mas é necessário. Nem todo filme pode ser barato. Mas há que se evitar o mais possível esse tipo de abuso.
4) Quanto vale o trabalho de um ator? Me lembro que, quando morei na França, os orçamentos eram montados em torno disso. O Delon "valia" 500 mil entradas em Paris, a Deneuve, 400 mil. Faz sentido. Quanto vale aqui a Fernanda Montenegro? Ou o Tony Ramos? Não se pode aferir. Porque em termos de mercado tudo é absolutamente distorcido, sobretudo pela TV. Então, não se pode falar em termos de mercado. O valor de um filme nunca é o de troca. Tem de haver um outro valor. Todo mundo que gosta de cinema sustenta que o melhor filme do ano foi o do Tonacci. A "classe", quando deu seu prêmio, nem passou perto, entre outras porque não deve tê-lo visto. Um problema a que se devia dedicar a Ancine é este: partir da percepção de que existe o caos nesse setor e ver de conter esse caos. Por isso, não deve causar indignação quando alguém sugere que "seu imposto" é usado para pagar "celebridades". Pode até ser uma fantasia, não importa. Mas também é verdade que os orçamentos de cinema raramente são claros. Transparentes, para usar a palavra do momento.
5) Quando um filme é proposto a qualquer comissão, o mínimo a exigir dele devia ser um plano de marketing. Ou seja, com quem esse filme pretende falar e como. Qual é seu ponto de venda? Na prática, isso se chama trailer. O trailer devia ser feito antes do filme (não o trailer físico, é claro). Mas como exigir isso num não mercado como o nosso? Em outras palavras: se não se resolve a questão da distribuição, se ao menos não se começa a pensar nela, para que fazer os filmes? Para ficar no fundo de um armário? Para que os filmes da Globo façam um milhão de espectadores, sejam aceitáveis ou não, só porque possuem uma grande máquina de publicidade por trás e trabalham no sentido de reiterar algo que o espectador já se acostumou a ver? (casos recentes: "Se Eu Fosse Você" e "Divã").
6) Se a maior parte dos filmes não leva espectadores ao cinema, como exigir que os exibidores ponham filmes nacionais na tela? Eles têm prejuízo, é claro. Isso posto, por que não existe um mecanismo para subsidiar as salas de cinema? A construção e a manutenção delas. Daí pode-se exigir, em troca, a exibição de filmes brasileiros dentro de certas normas a serem definidas.
7) E por falar nisso por que o preço das entradas é tão absolutamente pornográfico, proibitivo, restritivo, feito para ricos? Cinema sempre foi arte de pobres, para pobres, para "o povo". Não é aceitável que ninguém se preocupe com isso e ache que cinema custar o que custa é um fato da natureza. Não é.
8) Acima de todas essas coisas, me parece que o cinema não pode ser pensado como um caso isolado. Porque o preconceito também não é isolado. Há os que não vão ceder por nada. Eles acham que o dinheiro, público, é uma coisa para ser enfurnada. Não é. Isso é um pensamento construído sobre premissas falsas, sobre a idéia de que não existe investimento, mas gasto. É esse pensamento que levar a supor que Bolsa Família é distribuição indevida do "meu imposto", que só serve para incentivar a preguiça, essas coisas. Ele não leva em conta que isso promove distribuição de renda, faz a sociedade funcionar sobre a construção e existência de um mercado interno (não se espantem, eu estudei Celso Furtado em tempos muito remotos). Em geral, quem pensa assim são uns ferrados, mas assumem o pensamento dos "ratos endinheirados". Nesse particular tenho muitas dúvidas. Ou antes: se eu tomo a periferia de São Paulo, essa coisa que chamam de bairros, não são na verdade bairros. São depósitos de gente. De pessoas que não têm a mínima chance de acesso a bens culturais. Mas é aí que se pode construir o mercado brasileiro de cinema. É aí que pode surgir o cinema barato. Aí que os Céus, Cieps e que outro nome tenham precisam existir para mostrar filmes, peças de teatro. Enfim, para fazer a função do cinema, que é tornar as pessoas felizes e informadas. Não endinheiradas. Mas felizes, informadas, integradas à cultura. Aí o cinema pode entrar e mostrar uma série de coisas sobre o Brasil e o mundo. A preço acessível, isto é, justo. Sem essa história de ONG. Isso é obrigação do mesmo Estado que dá dinheiro para cineastas e que tais. Mostrar os filmes. Fazer com que existam. Montar filmotecas (isso hoje é barbada, o DVD é barato). Ora, como querem que as escolas públicas depois funcionem na hora do Enem? Não pode. Então formamos uma sociedade de analfabetos funcionais e esperamos que funcione. Não funciona. O cinema não é tudo. Mas também não é essa coisa só de dar dinheiro para ratos endinheirados, pagar salário de celebridades. Os filmes têm uma função. Precisam de um empurrãozinho, caramba.
9) Peço que me perdoem por esse post que mais parece discurso do Fidel Castro, mas o assunto é mesmo interminável e mais cedo ou mais tarde íamos topar com ele. Então que seja agora, que estamos numa entressafra cinematográfica dolorosa (ah, tem tantos filmes nacionais que podiam ser lançados nessa hora em que a indústria está meio fora de eixo), e em que acabei de sobrevoar São Paulo. De cima é uma visão terrível. Não sei como se pode viver aqui não sendo rico. É que nem sociedade de casta: ¾ das pessoas estão condenadas a vegetar, sem chance nenhuma. A TV é que engana e faz parecer que não é.
10) Para quem quiser pensar no assunto (e para completar o decálogo), fica aí a frase luminosa do Rogério Sganzerla: "Um país sem cinema é que nem um país sem luz elétrica".
Um comentário:
O texto aborda os principais problemas do cinema nacional com um poder de análise e síntese incríveis.
É para ler. E refletir sobre...
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