Texto de minha autoria publicado ontem, quinta, 29, no jornal Tribuna da Bahia. Na foto, Dona Lúcia Rocha ao lado de Rogério Duarte.
Dona Lúcia Rocha, mãe de Glauber, é uma mãe coragem como a heroína da famosa peça de Bertold Brecht. Ao completar, neste 2009, a fantástica idade de 90 anos de existência, e festejada com várias homenagens, tem, no entanto, em seu itinerário tragédias que lhe impuseram sofrimento e dor.
Morto o filho querido, o realizador Glauber Rocha, cujo reconhecimento internacional é indiscutível, Dona Lúcia resolveu se dedicar, full time, à preservação da memória do autor de Deus e o diabo na terra do sol, e, para isso, criou o Templo Glauber. A princípio, na primeira metade dos anos 80 (o cineasta morreu em agosto de 1981), Dona Lúcia pretendeu instalar o acervo memorialístico do filho em Salvador, mas não encontrou apoio. Segundo ela, foi enrolada e, no final das contas, para não perder a oportunidade, aceitou o convite do Museu da Imagem e do Som para o depósito do material do filho.
Da Imagem e Som, o Templo Glauber se mudou para um casarão em Botafogo, mas o percurso, para conseguir sobreviver às intempéries, foi cheio de atropelos, principalmente quando, em 1990, houve o confisco promovido por Fernando Collor, que provocou um trauma imenso no funcionamento do templo dedicado a Glauber.
Nascida em Vitória da Conquista, Dona Lúcia Rocha casou-se com Adamastor e, com ele, tiveram três filhos: Ana Marcelina, Glauber, e Anecy. Como numa tragédia grega, Dona Lúcia perdeu os três. Ana Marcelina foi a primeira, ainda adolescente, quando uma leucemia a tirou da vida inesperadamente, causando, com isso, imenso choque na família. Em 1976, a talentosa Anecy, atriz no auge de seu sucesso, cai, de repente, no poço do elevador do prédio onde morava. Apenas cinco anos se passariam para que Glauber viesse também a morrer. Como se diz, geralmente os filhos é que enterram os pais, mas no caso dessa mãe coragem, que é Dona Lúcia Rocha, ela enterrou os seus três filhos.
Também o marido, Adamastor (dono daquela loja que ficava logo na entrada da rua Chile, Loja Adamastor), sofrera acidente automobilístico que o deixara sem o vigor de antes, e Dona Lúcia tinha que se desdobrar para manter o equilíbrio da família. O casarão da rua General Labatut, número 14, Barris, era o point onde se reuniam os jovens intelectuais que queriam fazer cinema na Bahia. A pensão de Dona Lúcia, com o passar do tempo, foi ficando famosa a tal ponto de hospedar artistas e intelectuais que vinham do eixo Rio-São Paulo. Devia, o casarão hoje em ruínas, ser tombado como patrimônio cultural baiano.
Dona Lúcia, ao contrário das mães tradicionais, sempre incentivou Glauber para fazer cinema. Adolescente, ela, ao invés de lhe dar um automóvel, como todo jovem deseja, ele, consultado, preferiu uma câmera 16mm para filmar. Quando das filmagens de Barravento, na praia de Buraquinho, distante da cidade, Dona Lúcia preparava quarenta marmitas para que o pessoal da equipe técnica não ficasse sem almoçar - a produção dava apenas para se fazer o filme e muito mal para alimentar seus participantes. Embora não creditada (o único, segundo ela, que a creditou foi Joaquim Pedro de Andrade em Os inconfidentes), Dona Lúcia fez alguns figurinos de Deus e o diabo na terra do sol e O dragão da maldade contra o santo guerreiro, entre outros filmes do filho querido.
O mais incrível é que Dona Lúcia pulou uma fogueira também no que diz respeito à sua saúde. Há quatro anos atrás, quase aos 90, submeteu-se a uma cirurgia de revascularização miocárdica, a famosa ponte de safena. Na sua idade, e a considerar ser uma operação bastante invasiva, Dona Lúcia tirou de letra. E não é a primeira que faz. Há 20 anos, submeteu-se à mesma cirurgia, sempre com êxito considerável. Uma vez, perguntei a ela o que era colocar uma ponte de safena. Me respondeu: "André, está vendo aquela estrada de asfalto, deite-se ali e sinta um caminhão pesado passar por cima de você!" Há dois anos também já passei por esta faca – questão genética, principalmente, e o auxílio de excelentes coadjuvantes: cigarro e álcool e vida sedentária, cujo esporte favorito está no levantamento de copos.
Vi recentemente, no Canal Brasil, dois documentários sobre a mater glauberiana: Abry, de Paloma Rocha (filha de Glauber com Helena Ignês) e Joel Pizzini, e Lúcia Lux, de Neville D'Almeida. Vale lembrar que dois cineastas baianos, José Umbelino e Fernando Belens, fizeram, há alguns anos, um bom documentário sobre a figura de Dona Lúcia Rocha: A mãe.
O título do filme de Paloma é tirado de uma frase da própria Dona Lúcia, que, ao ouvir do médico que tem um problema que precisa, para ser extinto, de uma operação invasiva, com a abertura do peito, ela repete: “Abre, abre, abre”. Paloma, para dar um tom, substituiu, no título, o “e” pelo “y”, e ficou Abry. O outro, de Neville, vale pelas entrevistas com ela, pelos depoimentos que dá sobre a vida e sobre Glauber, como conta quando o filho foi preso durante a ditadura e a espera angustiosa, dias e dias, pela sua volta. Já o filme da dupla Umbelino e Belens creio mais completo.
Visitem o Templo Glauber pela internet: http://www.tempoglauber.com.br
2 comentários:
Glauber foi o que foi, é o que é, será o que será devido a dedicação de D. Lúcia. Da primeira câmera aos ajustes finais do TEMPO GLAUBER, tudo isso passou pelas mãos de D. Lúcia. Salve! D. Lúcia Rocha!
Dona Lúcia é a própria mãe do novo cinema, do cinema novo, do cinema brasileiro e do cinema bahaiano. Nunca vou esquecer os botões bordados por suas mãos na meia de Dadá, em Deus e o Diabo...Vida Longa a D. Lúcia!
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