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28 dezembro 2012

Os melhores filmes de Antonio Moniz Vianna

As listas que se seguem foram retiradas da extinta revista Filme/Cultura 7(outubro/novembro de 1967), que promoveu, entre os principais críticos brasileiros, duas enquetes a respeito dos melhores filmes de todos os tempos e os melhores brasileiros. Há 45 anos, portanto. Moniz Vianna, que se aposentaria da crítica 6 anos depois, em 1973, não creio que tivesse muitas modificações a fazer, a considerar que após a sua ex-abrupta saída do Correio da Manhã deixou de acompanhar os lançamentos e, com o passar do tempo, quase que abandonou a ida aos cinemas não fosse para levar o neto, Eduardo Moniz Vianna, o responsável pela autorização para a publicação de seus escritos em Um filme por dia, coletânea organizada por Ruy Castro, que levou alguns anos em tentativas infrutíferas para o grande crítico dar seus escritos à publicação. Moniz Vianna tinha admiração por John Ford, a ponto de, quando este morreu, em 1973, tomasse a decisão de se retirar do batente crítico. Não é de admirar, pois na sua lista dos 20 melhores da história do cinema, 5 são de autoria do realizador de Rastros de ódio (embora este não conste). Na relação dos filmes nacionais, vale destacar a inclusão de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, que Moniz soube-lhe reconhecer os méritos inegáveis. A crítica que feriu Glauber foi a de Terra em transe. Mas vamos ver as listas.

OS 20 MELHORES DE TODOS OS TEMPOS
1) Aurora (Sunrise, 1927), de Friedrich Wilhelm Murnau
2) O delator (The informer, 1935), de John Ford
3) Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles
4) No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford
5) Punhos de campeão (The set up, 1949), de Robert Wise
6) Intolerância (Intolerance, 1916), de David Wark Griffith
7) Depois do vendaval (The quiet man, 1952), de John Ford
8) M, O vampiro de Dusseldorf (1930), de Fritz Lang
9) Soberba (The magnificent Ambersons, 1942), de Orson Welles
10) O martírio de Joana D'Arc (La passion de Jeanne D'Arc, 1928), de Carl Theodor Dreyer
11) A doce vida (La dolce vita, 1960), de Federico Fellini
12) A última gargalhada (Der letzte mann, 1925), de Murnau
13) Le million (1930), de René Clair
14) Consciências mortas (The Ox-Bow incident, 1943), de William A. Wellman
15) O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valance, 1962), de John Ford
16) 8 e 1/2 (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini
17) O tesouro de Sierra Madre (The treasure of Sierra Madre, 1948), de John Huston
18) Matar ou morrer (High noon, 1953), de Fred Zinnemann
19) O sol brilha na imensidade (The sun shines bright, 1953), de John Ford
20) Morangos silvestres (Smulstronstallet, 1957), de Ingmar Bergman

OS 10 MELHORES FILMES BRASILEIROS
1) O cangaceiro (1953), de Lima Barreto
2) Noite vazia (1964), de Walter Hugo Khoury
3) Amei um bicheiro (1953), de Jorge Ileli
4) Todas as mulheres do mundo (1966), de Domingos Oliveira
5) Ravina (1957), de Rubem Biáfora
6) O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte
7) Mulheres&Milhões (1961), de Jorge Ileli
8) Ganga Bruta (1932), de Humberto Mauro
9) O corpo ardente (1966), de Walter Hugo Khoury
10) Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha

20 dezembro 2012

A vida íntima de Sherlock Holmes


A cada revisão dos filmes de Billy Wilder aumenta a constatação de seu gênio. Herdeiro de Ernst Lubitsch, Wilder, no entanto, não se restringiu apenas a ser um comediógrafo de gênio, mas também realizou dramas densos e thrillers antológicos (Pacto de sangue). Rever Wilder é sempre um prazer que se renova, principalmente neste consumista fim de ano, quando a visão natalina toma conta dos corações e das mentes. Escolhi A vida íntima de Sherlock Holmes para colocar aqui no blog o exemplo de um talento - não que seja o melhor Wilder, mas, a rigor, no frigir dos ovos, todo Wilder é admirável. 
 A vida íntima de Sherlock Holmes é um Wilder em plena sensibilidade de seu humor e de seu cinema com um acento hitchcockiano que o faz ainda mais saboroso. Trata-se também do primeiro filme que Wilder (vienense radicado no cinema americano) realiza na Inglaterra (os interiores nos estúdios Pinewood) e Escócia (exteriores em Inverness). Produzido em 1970, com roteiro do inseparável I. A. L. Diamond, baseado nos personagens de Sir Conan Doyle, A vida íntima de Sherlock Holmes, sobre ser um espetáculo de grande finura, humor, e observação de comportamentos, é uma obra que se incorpora a uma filmografia quase única da história do cinema como mais uma variante de sua verve versátil e amplitude temática. A influência de Hitchcock se faz notável, mas influência benéfica, mais que soma do que diminui, como acentua Paulo Perdigão, o grande crítico, em comentário que posto abaixo.
Inativo, ocioso, Sherlock Holmes (interpretado por Robert Stephens) passa o tempo a tomar cocaína, apesar dos reclamos de seu biógrafo e amigo Dr. Watson (Colin Brakely). Aceitando o convite para assistir ao balé russo, Holmes é levado à presença da primeira-bailarina, Petrova (Tamara Toumanova), que, a desejar um filho genial, escolhe Holmes como o pai ideal. Polidamente, como é do seu feitio, o detetive recusa, a alegar ser um homossexual (é audacioso, para a época, a insinuação desta condição), declaração que deixa atônito o Dr. Watson totalmente desconfiado de sua misoginia. Dias depois, uma jovem, Gabrielle (a insinuante Geneviève Page), que tentara o suicídio no Tâmisa, é levada à residência de Holmes (rua Baker, 221-B). Ela viera da Bélgica para descobrir o paradeiro do marido, um engenheiro. O fleumático private eye segue uma pista, apesar das advertências em sentido contrário de seu irmão, Mycroff (interpretado pelo emblemático Christopher Lee).
Em Inverness, na Escócia, descobre Holmes a existência de um estranho submersível testado pelo governo, e que tem a forma do lendário monstro marinho Long Ness. Mycroff, que trabalha no projeto, revela a Holmes que Gabrielle é, na verdade, uma espiã alemã. Frustrado, o detetive volta à sua Londres enquanto Gabrielle é presa. Mais tarde, Holmes vem a saber, transtornado, que a moça fora executada. A solução, e solução wilderiana, diga-se de passagem, será voltar à cocaína.
The private life of Sherlock Holmes é vigésimo - segundo filme da carreira do diretor e o nono em parceria com o roteirista Diamond (trabalham juntos desde Amor na tarde/Love in the afternoon, 1956). Produzido com sete milhões de dólares (uma mixaria em relação aos tempos faraônicos da Hollywood atual), é o centésimo vigésimo filme a apresentar a figura do detetive criado por Conan Doyle e aqui abordado livremente.
Como homenagem a este filme pouco apreciado de Billy Wilder e, também, como homenagem ao grande crítico que foi Paulo Perdigão, publico aqui uma crítica de sua lavra publicada no antigo Guia de Filmes do INC (Instituto Nacional de Cinema, que também publicava a revista Filme/Cultura. Nos bons tempos da crítica cinematográfica. Perdigão morreu em janeiro de 2007, o que se constituiu numa perda enorme para os escritos sobre a arte do filme. Tinha Perdigão como o seu melhor filme Os brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens. Chegou a ir, sob os auspícios da Filme/Cultura, entrevistar Stevens, que, a princípio arredio, com o desenrolar da conversa, assombrou-se com o conhecimento de Perdigão sobre Shane. No final da entrevista, disse que Perdigão conhecia mais o filme do que ele, seu diretor. Eis seu comentário:
"Elementar, meu caro Wilder. É o que o roteirista Diamond deve ter comentado com o diretor Billy Wilder quando ambos resolveram decifrar - sem consulta à fonte Conan Doyle - um mistério chamado A vida íntima de Sherlock Holmes. As pistas deixadas pelo fiel Dr. Watson dentro de uma caixa top secret eram dignas da imaginação, do faro e da irreverência do mais célebre detetive de todas as épocas; além da clássica indumentária sherlockiana (o boné de camurça, o cachimbo, a écharpe, a lente de aumento), já estavam os relatos que Watson não teve coragem de publicar em The Strand Magazine por serem indiscretos demais. Quatro episódios reveladores da personalidade de Sherlock e que, como diz Wilder com seu conhecido cinismo, "também refletem a imagem de certa Inglaterra".
Antes da atual aventura, Sherlock esteve 127 vezes na tela - numa delas (alemã de 1963) interpretado por Christopher Lee, que aqui faz o irmão de Holmes, Mycroft. Mas só agora, sob os traços do shakespeariano Robert Stephens, ele foi examinado por um cineasta à altura de sua sofisticação diabólica. Wilder identifica-se com Holmes e evidentemente o admira: "Ele é um dos maiores personagens da literatura, comparável a Hamlet e Cyrano de Bergerac". Por isso, as inconfidências sobre a intimidade do herói não atingem o plano da sátira devastadora; contém-se respeitosamente na fina ironia, numa reconstituição muito fleumática e astuciosa do mundo em que viveu Holmes, a velha Inglaterra vitoriana com seus personagens nobres, céticos e calculistas. Na carreira de Wilder, dominado por tantas provocações indômitas (A montagem dos sete abutres, Quanto mais quente melhor, Beija-me idiota), este filme ocupa posição mais discreta, porém, em quase tudo refletindo a sofisticação que o diretor guardou de suas antigas ligações com o mestre Lubitsch, como roteirista de A oitava esposa do Barba Azul e Ninotchka.
The private life of Sherlock Holmes é também como uma inesperada homenagem que o cinema presta a Hitchcock. O estilo e o tom da narrativa têm o mesmo sabor de velhos thrillers ingleses de Hitch e muitas imagens - a velha paralítica na loja deserta, os monges misteriosos do trem, os anões do cemitério - chegam a ser acintosamente hitchcockianas. Há, inclusive, na cena das ovelhas, uma citação de Os 39 degraus e, na seqüência do balé russo, a repetição de uma passagem idêntica de Cortina rasgada, com a mesma e sinistra Tâmara Toumanova. Até quando se diverte com a velha Inglaterra (a Rainha Vitória, de metro e meio de altura, protesta contra a falta de cortesia na guerra e manda destruir o submarino porque "não se pode atacar o inimigo sem aviso prévio"). Billy Wilder parece estar querendo fazer de A vida íntima de Sherlock Holmes o filme mais hitchcockiano que o Hitchcock da fase inglesa não dirigiu, conclui o grande Perdigão.

16 dezembro 2012

Cukor e a dialética do ser e da aparência



1) Vi recentemente, em DVD, a comédia musical Les girls (1957), do grande George Cukor, que assinala uma das últimas aparições de Gene Kelly como dançarino no cinema. O gênero, na época deste filme, já estava a se esgotar, substituído, logo a seguir, pelas grandes produções musicais, a exemplo de West Side Story, A noviça rebelde, My fair lady. Talvez a derradeira película na melhor tradição do filmusical hollywoodiano tenha sido Gigi (1958), de Vincente Minnelli.  Os efervescentes anos 60 ainda proporcionaram alguns filmes interessantes (Positivamente Millie, de George Roy Hill, A moedinha da sorte, de George Sidney, Mary Poppins, de Robert Louis Stevenson, entre outros), mas, a partir da segunda metade da década de 60, ainda que alguns estúdios insistissem na grandiloquência (Funny Girl, de William Wyler, A estrela, de Robert Wise), a pá de cal, por assim dizer, veio com Hellô! Dolly, que levou a Fox à falência. Em 1970, com a explosão do Woodstock, o público estava arredio aos espetáculos musicais tradicionais e foi um erro, falta de planejamento, a realização de Hellô! Dolly, um fracasso quase retumbante, ainda que filme fascinante nos seus números e cenas de danças.

2) Mas estava a falar de Les girls. Um filme de pontos de vista sobre a questão da verdade. O que é a verdade? Há uma verdade de cada um, segundo o ponto de vista de cada um. Cidadão Kane, de Orson Welles, é, neste particular, um puzzle magnífico construído sobre variações de olhares sobre uma determinada personalidade. Em Les girls, há uma variação em torno da questão, e o autor do roteiro deve ter visto e se influenciado por Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, que trata do assunto. Três pessoas se abrigam de chuva torrencial debaixo de uma marquise e começam a conversar sobre um assassinato que presenciaram. Em flash-backs, como em Les girls, Rashomon mostra a versão de cada um. No final, as versões se contradizem e aparece o espírito do morto para contar a sua verdade.

3) Dirigido por George Cukor, um mestre da comediografia cinematográfica, Les girls gira em torno de um processo judicial com sede num tribunal de Londres, quando uma mulher (Kay Kendall) é processada por antiga amiga por ter escrito um livro que a coloca numa situação difícil, a revelar que, quando eram dançarinas, veio a ser amante de Gene Kelly. O filme então se estrutura a partir dos depoimentos das duas mulheres, a que escreveu o livro e a autora do processo, além do depoimento do próprio Gene Kelly. No final, fica-se sem saber ao certo quem falou a verdade. Para um musical, há, neste particular, um acréscimo temático e filosófico não muito usual. Mas o filme tem números musicais bem coreografados por Jack Cole, um especialista, e as canções foram escritas especialmente por ninguém menos do que o genial Cole Porter.

4) Cukor é um dos maiores diretores do cinema americano. Não há, no cinema contemporâneo, um cineasta de seu refinamento, de sua finesse, cuja maneira toda especial de dirigir atores (principalmente mulheres) ficou como legenda. Veterano dos estúdios de Hollywood, dirigiu as primeiras cenas de ... E o vento levou (Gone with the wind, 1939), mas o todo poderoso producer David Selznick o demitiu a pedido de Clark Gable, que ficava com ciúme de sua dedicação a dirigir Vivien Leigh. Quem aparece como diretor nos créditos e ...E o vento levou é Victor (O mágico de Oz) Fleming, mas houve outros diretores, como Sam Wood. Interessante observar que é um filme de produtor, o diretor funcionando, apenas, como diretor administrativo. E que extraordinário diretor administrativo, como foi o caso de My fair lady! Se o cinema brasileiro possuísse mais diretores administrativos desse quilate não estaria no beco sem saída do ponto da criação como se encontra, a captar recursos e a pensar pouco na emergência do específico cinematográfico. Tem um filme, em particular, de Cukor que ficou no meu caminho para o resto da vida, considerando que o vi, pela primeira vez, no cinemascope do cinema Guarany em Salvador, Adorável pecadora (Let's make love, 1960), com Yves Montand e Marilyn Monroe. Cukor aqui está, por assim dizer, na sua quintessência. E o filme é admirável. Tenho-o em DVD e de vez em quanto o avisto.

5) As três girls do filme são as maravilhosas e deslumbrantes Mitzy Gaynor, Tania Elg e Kay Kendall. Elg, mais desconhecida, era uma bailarina finlandesa que encantou o olhar rigoroso de Cukor e foi logo contratada. Kendall, comediante inglesa, do proscênio britânico, mas também com participação em Hollywood, morreu prematuramente de leucemia e era casada com Rex Harrison, o eterno professor Higgins de My fair lady. O número musical do café, no qual há nítida uma paródia a O selvagem, com Marlon Brando, foi coreografado por Kelly, porque, no dia da filmagem, Jack Cole, o coreógrafo oficial, estava doente.  Mitzy Gaynor mostra, neste número, a sua excelência como dançarina. Na verdade, um filme como Les girls não mais poderia ser filmado com o poder de encantamento que tem. Porque não há mais uma infraestrutura capaz de oferecer suporte ao gênero: costureiras, coreógrafos, figurinistas, equipe de balé etc.

6) Cukor foi um verdadeiro mestre. Fez filmes admiráveis como os citados e, ainda, Núpcias do escândalo (Philadelphia story, 1940), Um rosto de mulher (A woman's life, 1941), com Joan Crawford, Viagens com minha tia (Travels with my aunt, 1973),  o intrigante A vida íntima de quatro mulheres (The chapman's report, 63), com uma Jane Fonda em início de carreira etc. O cinema americano do grande segredo, como chamava François Truffaut, é pródigo de talentos na comediografia, a exemplo de Vincente Minnelli, Richard Quine, Blake Edwards, Leo McCarey, entre tantos! Minnelli funcionava bem quer no musical, nas comédias, quer nos melodramas ásperos. Estilista de escol. Neste ponto, mais atraente do que Cukor, sem diminuir, com isto, a excelência deste. Aliás, foi Cukor quem usou cinematograficamente a lente anamórfica em Nasce uma estrela (A star is born, 1955), com uma inesquecível Judy Garland (não conheço nenhuma estrela com o talento dessa excepcional cantora e atriz). O cinemascope, então lançado, se perdia nos planos gerais. Cukor o ajustou à expressão cinematográfica com este filme que mostra a ascensão de uma estrela que se casa com um alcoólatra, com acentos biográficos da vida de Garland, interpretado pela fleuma de James Mason. Uma temática constante nos filmes de Cukor: a dialética do ser e da aparência.

12 dezembro 2012

Da necessidade de Alain Resnais


Les herbes folles tem nos pensamentos dos personagens a sua mola propulsora. São os pensamentos que detonam os atos e as situações. Alain Resnais é um realizador cinematográfico que tem como característica sempre a investigação da mente do ser humano. O que eleva sobremaneira seus filmes é a sua capacidade de apresentar, cinematograficamente, as angústias, os desejos, as hesitações de seus personagens. Há, em Les herbes folles, um trabalho original no que concerne ao tratamento da fragilidade do homem frente as suas circunstâncias. Evitando qualquer tipo de psicologia banal, o filme é sobre o mecanismo de funcionamento paradoxal da mente humana. Kubrick, em De olhos bem fechados (Eyes wide shut, 1999), ainda que uma obra a respeitar, tornaria este seu derradeiro filme numa obra-prima se possuísse os recursos resnaisianos ou, melhor a dizer, se Resnais filmasse De olhos bem fechados daria, a ele, uma funcionalidade e uma expressão que o gênio kubrickiano tentou, mas não conseguiu, a considerar que também aqui se trata dos desvarios da mente humana num processo de obsessão.
Além do mais, As ervas daninhas é um exercício cinematográfico puro no qual a lógica e a psicologia se explodem num redemoinho. A mise-en-scène é de tirar o fôlego (como um movimento de câmera para frente – travelling – na sequência do almoço na casa de Dussolier quando este, que aparece sentado num sofá, de repente, com a continuação, aparece já sentado na mesa, havendo, um deslocamento não somente da máquina de filmar como também dos personagens em cena num tour de force admirável. O recurso resnaisiano dos lances de memória é usado com eficiência na estrutura narrativa: a bolsa amarela roubada em câmera lenta, o plano de detalhe da carteira perdida debaixo de um dos pneus do carro, os close ups de Sabine Azéma, os pacientes a sofrer na cadeira de dentista de Marguerite etc. É o imaginário controverso dos seres em movimento que dá margem à fabulação desse extraordinário Les herbes folle.

Marguerite Muir (interpretada com a elegância de Sabine Azéma, companheira, na vida real, de Resnais) é uma dentista que tem fascinação pelos sapatos exclusivos de uma loja parisiense. Depois de comprá-los, ao sair do estabelecimento, sua bolsa amarela, é-lhe roubada. Georges Palet (André Dussolier, ator constantes dos últimos filmes do cineasta) após comprar um relógio num centro comercial acha a carteira de Marguerite, que fora jogada fora pelos ladrões e se encontra embaixo de seu carro no estacionamento do shopping center. Curioso, verifica os documentos e descobre que a dona da carteira tem brevê de piloto, o que o fascina, porque, desde tenra idade, tem mania por aviões e seu sonho seria ter se tornado um aviador. É bom observar que a ação de Les herbes folles se estabelece a partir dos pensamentos de seus personagens, como já foi dito. Palet, por exemplo, ainda no estacionamento do shopping, fica revoltado com uma mulher que usa uma calcinha preta e tem desejo súbito de matá-la. É neste cipoal de desejos paradoxais e esquisitos que se estrutura o filme, baseado em O incidente, de Christian Gailly, com roteiro de Alex Reval.

Palet entra em obsessão para conhecer Marguerite e imagina várias formas de entrar em comunicação com ela. A cena na qual ele está dentro do carro, e imagens laterais vão sendo mostradas como soluções hipotéticas, é bem ao feitio resnaisiano. De repente, durante um almoço familiar (Palet é casado há 30 anos com Suzanne/Anne Consigny e tem três filhos), recebe uma ligação de Marguerite para agradecer a devolução da carteira (não sem antes ter ido à polícia para entregá-la e fazer os trâmites legais com o comissário interpretado por Mathieu Amalric, que se desorienta com as hesitações dele). É quando tem início a idéia fixa de Palet em entrar em contato, custe o que custar, com Marguerite. É a pulsão de um desejo na estrutura mental de Palet que aciona os mecanismos fabulatórios de Les herbes folles, que, para evitar o spoiler, deixa-se, aqui, de contar o resto.

Se ainda pudesse existir uma, por assim dizer, lógica narrativa, esta explode no final numa apologia à liberdade da mise-en-scène. Resnais propõe, na parte final, a apologia do espetáculo puro, do cinema em plena autonomia de vôo, quando a fábula dá lugar à narrativa imaginária à disposição do específico cinematográfico. Os leitmotivs (como que refrões) que permeiam o filme (as ervas daninhas das circunvizinhanças e que adentram a casa de Palet, a bolsa amarela em câmera lenta...) se desatam num processo único. A tal ponto que é a celebração do cinema que se verifica com o passeio aéreo que pontua a obra-prima. A partir mesmo, antes disso, do momento em que Marguerite vai procurar Palet, que se encontra num cinema de bairro a ver As pontes de Toko-Ri (The bridges of Toko-Ri, 1954), com William Holden e Grace Kelly, por ser um filme de guerra e de aviões em combate. Mas, em verdade, não são apenas os tormentos mentais dos personagens que se constituem o móvel de Les herbes folles, mas, também, as formas de expressá-los de maneira puramente cinematográfica.

Duas vezes a bela fanfarra da Fox, a pontuar a fantasia que é o cinema: tocada, com aquela ênfase que fez a emoção dos antigos frequentadores das salas de exibição, no neon do cinema onde Palat se escondera para ver os aviões de As pontes de Toko-Ri, e, quando ele se encontra com Marguerite e a beija no hangar. O filme, na terceira parte, toma um rumo surpreendente, a transformar as hesitações iniciais dos personagens em decisões. A rigor, não há rumo a tomar em Les herbes folles, ainda que haja o rumo do roteiro a seguir, a se fazer cinema pela varinha mágica de Resnais. Mas os personagens, as criaturas resnaisianas, não o têm. Como a vida.

Impressionante o poder de convencimento que passa as interpretações de André Dussolier (que tem neste filme a maior performance de sua carreira) e de Sabine Azéma, além de todos os outros intérpretes, buscados, a maioria deles, na excelência do cast da Comédie Française.
Celebração ao cinema e ao imaginário, como bem acentua a interrogação aparentemente infantil do garoto, na última tomada do filme, que pergunta à mãe: “Quando eu for gato, posso comer a ração do gato”. 

10 dezembro 2012

Antonioni e o silencio auto-falante

Blow up (1966), de Michelangelo Antonioni

Geômetra cartesiano dos sentimentos humanos, Michelangelo Antonioni é um realizador que, com seus filmes, principalmente a trilogia A aventura, A noite, e O eclipse, renovou a linguagem cinematográfica, e introduziu, nela, o domínio da antinarrativa, o silêncio como elemento de produção de sentidos, os tempos mortos como estabelecimentos rítmicos da mise-en-scène. O cinema moderno tem em Michelangelo Antonioni o seu grande impulsionador, principalmente porque instaurou a desdramatização. Se o cinema americano pasteurizou, por assim dizer, a linguagem do filme, privilegiando, na narrativa, somente os tempos fortes, Antonioni introduziu, como peça de estilo, mas, também, de significação, os tempos mortos, quando as expectativas do espectador são frustradas, porque sempre espera que, dada uma determinada situação, aconteça alguma coisa no processo narrativo. Mas o grande realizador, que saiu da cena da vida com idade provecta, 94 anos, deixou uma fortuna crítica considerável e sua influência foi imensa, bastando dizer que todo o Wim Wenders dos anos 70 é puro Antonioni, além das influências exercidas em cineastas de diversos países, a exemplo, no Brasil, de Walter Hugo Khoury, autor do definitivo Noite vazia (1964). Antonioni soube, como poucos, captar o mal-estar do mundo, e se revelou um tratadista da incomunicabilidade entre os homens. Egresso do neo-realismo italiano, na década de 50, assim como Fellini, abandonou a tônica social do movimento para focalizar a angústia do homem do pós guerra, principalmente daquele pertencente à sociedade burguesa italiana. Há, portanto, em Michelangelo Antonioni, uma importância dupla para o cinema, a do ponto de vista do elo sintático (da linguagem), e aquela do elo semântico (do tema). Inovou na sintaxe e inovou, também, na maneira de fazer emergir seus temas recorrentes: a análise perfuratriz da incomunicabilidade na burguesia italiana, o silêncio que se estabelece nas relações humanas, o vazio, e a ausência de perspectivas.

Nasceu em Ferrara (Itália), em 1912. Adolescente, viveu em Bolonha, onde começou seus estudos de economia e letras, que depois seriam substituídos pela arquitetura. Nesta época, já se inicia na crítica cinematográfica, escrevendo alguns ensaios sobre a arte do filme para o jornal IL Corrière Padano. Aficionado pelo tênis, competiu em vários torneios dessa categoria, e, na juventude, ganhou muitos troféus, que, até morrer, guardava-os com especial apreço. O desabrochar do futuro realizador, porém, precisaria esperar a sua transferência para a capital da Itália, Roma, que se deu quando tinha 27 anos, em 1939. Nesta cidade, centro cultural, ainda que sob regime fascista e às vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial, fez parte da entourage da revista Cinema, publicação oficial que congregava os nomes do futuro neo-realismo: Luchino Visconti, Giuseppe De Sanctis, Vittorio De Sica, Pietro Germi, entre outros. Passou por um período de dificuldades financeiras, mas conseguiu se matricular no Centro Sperimentale di Cinematografia, abrindo-se, então, a oportunidade de escrever vários roteiros e, entre eles, uma colaboração com aquele que viria a detonar o neo-realismo italiano com Roma, cidade aberta: Roberto Rossellini. O jovem Michelangelo se estabelece com maior desenvoltura no meio cinematográfico, colaborando com traduções e críticas para Itália LiberaFilm d’Oggi e Film Revista. Trabalhou, nesta ocasião, como assistente de um ícone do cinema clássico francês: Marcel Carné e, por isso, foi enviado à França como representante de Os visitantes da noite (Lês visiteurs du soir), deste diretor. Na volta, vê-se considerado a experimentar a realização de alguns documentários, sendo que, o primeiro deles, Gente Del Pó, tem suas locações nos mesmos lugares aos quais voltaria quando fez, muitos anos mais tarde, O grito.

Logo no seu primeiro longa metragem, Cronaca di um amore (1950), já se pode encontrar os temas que seriam característicos deste que é um dos mais importantes e pessoais realizadores do cinema moderno, as suas constantes temáticas, como a do vazio que se estabelece na relação humana. Dois anos depois, 1952, um filme em três episódios, um na Inglaterra, um na França, e um na Itália, abordando, nestes países, o problema da juventude que privilegia o crime como forma de sobrevivência: Os vencidos/I vinti. A seguir, La signora senza camelie, em que se preocupa de novo por estudar um personagem feminino, outra das características de seu cinema.

Autor de filmes, nunca um mero estilística, ou um artesão, Michelangelo Antonioni já revela sua marca e seu estilo inconfundível nos filmes que se seguem: As amigas(Le amiche, 1955), O grito (Il grido, 1957). Mas é com A aventura (L’avventura, 1959), filme que dá início à sua famosa trilogia da incomunicabilidade, que se consagra, definitivamente, entre a crítica internacional, constituindo-se uma síntese de sua obra anterior e uma espécie de prelúdio dos outros filmes que viriam a seguir, como A noite (1960) e O eclipse (L’eclisse, 1961). A idéia de ficção que, mediante um processo de descascamento narrativo, vai desaguar na água documental, foi uma das grandes constantes do cinema de Antonioni. As imagens finais de O eclipse, por exemplo, já eram documentário. José Lino Grünewald, inclusive, constatou que Antonioni terminava por onde Alain Resnais começava. Ele se referia, sem dúvida, ao processo de descascamento narrativo que, uma vez concluído, só poderia dar lugar ao espetáculo puro – ou seja, O ano passado em Marienbad.
A primeira experiência de Antonioni em cores se deu em O dilema de uma vida (Il deserto rosso, 1964), a retomar, aqui, o tema da incomunicabilidade, que se estabelece dentro de uma mise-en-scène na qual a cor exerce função dramática e de produção de sentidos. A pesquisa da cor no tecido dramático seria exacerbada no filme que fez, em seguida, na Inglaterra: Blow up, que no Brasil tomou o título de Depois daquele beijo. Antonioni exigiu que alguns quarteirões de Londres fossem todos pintados com cores berrantes. Blow up traumatizou duramente os devotos (que não se chame aqui de cinéfilos) do bom cinema nos anos 60. Um filme que expressa o niilismo da juventude de sua época através do personagem de David Hemmings, fotógrafo da moda e de moda, que, bem nutrido, com vida confortável, sente, porém, profundo vazio em sua existência até que, fotografando, por acaso, um casal que se beija num parque, descobre, com a ampliação das fotografias, um crime. Antonioni deixa, porém, a resposta vaga, e a significação que pode de tudo advir é aquela da seqüência final, quando pessoas jogam tênis sem a bola. A influência de Janela indiscreta (Rear window), de Alfred Hitchcock, é evidente, mas, aqui, relida em outro ângulo e em outro prisma.
Não se pode falar em Michelangelo Antonioni sem ressaltar a seqüência derradeira de O passageiroprofissão repórter (The passenger, 1975) e do seu emblemático plano-seqüência no qual a câmera sai do quarto onde está deitado Jack Nicholson, atravessa a janela, circula pelo pátio e volta ao quarto. Quando ela, a câmera, está fora, é que se ouve um tiro com o qual é morto o personagem. Até hoje não se sabe como Antonioni conseguiu realizar este plano, tal o seu virtuosismo, tal a sua habilidade. E em O mistério de Oberwald, como numa premonição, antecipa a estética do vídeo.
Num ensaio escrito para a extinta revista Filme/Cultura (setembro de 1967, número 6), o crítico Jaime Rodrigues, discípulo de Moniz Vianna, estabeleceu com rara felicidade as características do cinema de Michelangelo Antonioni. Um estilo que se define mais por determinadas linhas de ação que por variações em torno de um mesmo tema. Cineasta amargo, mas que procura reencontrar uma linguagem comum aos seres humanos. Em seus filmes, patente, a integração do indivíduo e ambiente: os objetos, as coisas – o mundo industrializado, enfim, fazendo parte do millieu humano. Antonioni constata a caducidade dos valores do nosso tempo numa pesquisa intensa para chegar a novas formas de compreensão.
Rodrigues vê nos filmes de Antonioni o último eco do expressionismo pelas construções, com os objetos dominando o ambiente. E, neste particular, vale lembrar que, sendo Antonioni um arquiteto, seus enquadramentos são estudados, perfeitos, primorosos, E, no frigir dos ovos, é o neo-realismo passado a limpo: as implicações dos desajustes sociais sobre a estrutura psicológica do homem. E a certeza de que os problemas da consciência são, sobretudo, problemas de reflexão diante do mundo.

09 dezembro 2012

A crítica como exercício da inteligência

Este artigo foi publicado quando do lançamento de Um filme por dia, coletânea de críticas do célebre crítico Antonio Moniz Vianna organizada por Ruy Castro. O texto vai como saiu. Sou do tempo dele, quando ia comprar, aqui em Salvador, o Correio da Manhã que somente era vendido na Praça Municipal. Província tranquila, saia de meu bairro, Nazaré, e ia a pé - uma distância considerável - à citada praça para adquirir jornais do Rio e de São Paulo. No Correio da Manhã, pontificava a figura grave de Moniz Vianna, que foi quem me ensinou a apreciar um travelling em Robert Aldrich. Aliás, a bem dizer, o pouco que sei sobre cinema - e sei muito pouco - aprendi indo ao cinema e lendo críticas como as de Moniz Vianna. Sou um autodidata, portanto. E também comprando livros sobre a arte do filme, a procurar, neles, o conhecimento necessário à apreciação estética de uma obra cinematográfica. Mas vamos deixar de delongas para ir direto ao texto.

A aparição em livro da reunião das críticas de Antonio Moniz Vianna se torna, desde já, o acontecimento editorial, em relação às obras que tratam do cinema, mais importante do ano, pois se trata de uma coletânea que contém a quintessência do maior crítico cinematográfico de todos os tempos, que pontificou, diariamente, no Correio da Manhã, de 1946 e 1973. Abandonou a crítica neste ano, quando da morte de John Ford, seu cineasta favorito, quando escreve um texto de página inteira  e se despede dos leitores. Antonio Moniz Vianna, no entanto, acaba de completar 80 anos, dotado de lucidez e consciência inabaláveis. Mas há três décadas preferiu o exílio voluntário no seu apartamento em Copacabana. Na época de sua saída, decepcionado com a crise criativa do cinema contemporâneo, não viu mais razão de continuar na labuta diária da crítica. Para ele, o apogeu do cinema se deu entre 1912 e 1962, acontecendo, a partir daí, o seu perigeu. Pertenceu à geração dos grandes críticos, homens cultos, preparados, dedicados, com profundo amor pelo cinema, a exemplo de Walter da Silveira, aqui na Bahia, Francisco Luiz de Almeida Salles, Rubem Biáfora e Paulo Emílio Salles Gomes, em São Paulo, Alex Viany, Salvyano Cavalcanti de Paiva, entre muitos outros. Moniz, no entanto, ao contrário de Walter, que se poderia chamar de ensaísta – e um grande ensaísta de cinema, diga-se de passagem, era um verdadeiro crítico. O título do livro editado pela Companhia das Letras não poderia ser mais exato e significativo: Um filme por dia, porque Moniz Vianna, antes de tudo, era um crítico do batente diuturno, que copiava as fichas técnicas dos filmes – completíssimas – no escuro da sala de projeção com uma caneta na mão.

Antonio Moniz Vianna nasce em Salvador em 1924, mas desde os 11 anos se transfere para o Rio de Janeiro, e, mais tarde, antes do jornalismo, ingressa na Faculdade Nacional de Medicina. A partir de 1946 começa a assinar críticas de cinema no Correio da Manhã, vindo, nos anos 60, a ocupar, neste prestigioso matutino carioca, o cargo importante de redator-chefe. Entre 1956 e 1965, diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, quando organiza importantes e inéditas mostras (para a época) dos cinemas americano, francês, italiano, e russo, que, até hoje, para aqueles que tiveram a sorte de vê-las, ainda se encontram guardadas na memória. Moniz, por exemplo, trouxe, pela primeira vez, em 1958, uma cópia de Cidadão Kane ao Brasil, apesar dessa obra-prima de Orson Welles ser de 1941. Vieram também cópias de obras essenciais, como as de Griffith (O nascimento de uma nação, Intolerância), os primeiros filmes de Méliès e Lumière, as obras fundamentais do neo-realismo italiano e do realismo poético francês, além dos filmes da escola soviética (Eisenstein, Pudovkhin, Dovjenko, Dziga Vertov, etc). Em 1965, organizou o maior festival de cinema que o Brasil já conheceu: o Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro, cujo júri, para se ter uma idéia, entre outros, era composto por monstros sagrados como Fritz Lang, Joseph Von Stenberg, Vincente Minnelli. Nunca, em momento algum de nossa história, houve, no país, festival de tal envergadura.

Das seis mil e tantas colunas que, segundo o crítico Paulo Perdigão, foram escritas pelo mestre, apenas setenta e poucas, após processo de seleção rigoroso efetuado por Ruy Castro e pelo neto do autor, Eduardo Moniz Vianna, constam de Um filme por dia, obra imprescindível e obrigatória que nenhuma pessoa que se queira cinéfila pode deixar de adquirir. Crítico de choque, de estilo admirável – somente comparável aos grandes escritores, Moniz Vianna, apesar dos insistentes apelos dos amigos e de editoras, sempre se recusou a publicar seus escritos. Uma de suas filhas, Isadora, chegou, há alguns anos atrás, a lhe pedir, mas o pai não lhe atendeu. Quem conseguiu o grande feito foi seu neto, Eduardo, que, afinal, entrando no arquivo secreto do crítico, e ajudado pelo especialista Ruy Castro, selecionou o material. Pena que a publicação abarque apenas um por cento do que Moniz escreveu por toda a vida. Mas o que se encontra em Um filme por dia é caviar, delicatessen em matéria de crítica cinematográfica.

Em plena adolescência, em 1964, aos 14 anos, conheci Antonio Moniz Vianna através das páginas do Correio da Manhã. Os jornais do eixo Rio-São Paulo, naquela época, somente eram vendidos na Praça Municipal na Banca do Careca e, aos domingos, religiosamente, comprava o Correio da Manhã para ler Moniz Vianna, principalmente as suas completas filmografias que eram publicadas no Quarto Caderno – o maior suplemento cultural do Brasil, batendo, mesmo, o do Estado de São Paulo e o afamado SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do Brasil). Ficava estupefato (esta, a palavra) como um filme podia ser dissecado com tanta erudição por um crítico. Admirava, em Moniz Vianna, o seu imenso conhecimento do assunto e, principalmente, a maneira dele escrever, o seu estilo, admirável. Moniz, como disse um amigo, e discípulo, Paulo Perdigão, era um crítico de choque.

Moniz Vianna, respeitadíssimo em sua época, era, por outro lado, marginalizado pelos cinemanovistas. Glauber Rocha tinha por ele grande admiração, mas se aborreceu com a sua crítica demolidora a Terra em transe, que Moniz espinafrou – aliás sem razão, pois se trata do melhor filme brasileiro de todos os tempos. O grande crítico, porém, tinha lá suas idiossincrasias, predileções, manias. Adorava John Ford a ponto de deixar a coluna diária no Correio da Manhã assim que soube de seu falecimento. “O cinema acabou”, disse, na época, o polêmico articulista que além de crítico era, também, redator-chefe do jornal por longos anos.

A crítica de cinema, hoje, como praticada por Moniz Vianna, Rubem Biáfora Paulo Emílio Salles Gomes, Cyro Siqueira, Walter da Silveira, José Lino Grunewald, Paulo Perdigão, entre muitos outros, não mais se exercita nos tempos que correm. Atualmente reinam as resenhas e comentários de aficionados, a maioria delas vinculada à propaganda dos últimos lançamentos da indústria cultural cinematográfica made in Hollywood. Os estudos mais aprofundados sobre a arte do filme se encontram nos calhamaços das dissertações e teses de mestrados e doutorados. Mais recentemente, no espaço virtual. Os jornais, decadentes, não se interessam a dar espaço para reflexões sobre o cinema, a preferir textos que funcionem como guias de consumo. Mas, neste particular, a internet tem oferecido a oportunidade para o aparecimento de sites comprometidos com a reflexão teórica. De qualquer maneira e de qualquer forma, o fato é que, com a decadência da cultura humanística, os acadêmicos-críticos, ou os críticos acadêmicos, não possuem mais um estilo atraente na exposição da matéria, condicionados que ficam pelos grilhões da linguagem da academia, uma verdadeira camisa-de-força que impede o livre exercício do pensamento livre de amarras. Vale transcrever, aqui, o que escreveu o jornalista Getúlio Bittencourt sobre Antonio Moniz Vianna: “Em quantidade, apenas o americano Bosley Crowther, do The New York Times, se apresenta com tamanho similar (ambos somam 28 anos de ofício cada). Em termos de qualidade, será preciso buscar nomes na França para encontrar, dispersos, predicados comuns em Moniz Vianna: André Bazin pela profundidade de análise, Georges Sadoul pelo conhecimento enciclopédico. Já na elegância do texto, só se pode comparar Moniz Vianna com grandes escritores que se dedicaram ocasionalmente à crítica de cinema, como o argentino Jorge Luis Borges na revistaSur, o inglês Graham Greene no The Spectator de Londres, o americano James Agee na revista Time, o colombiano Gabriel García Márquez no El Espectador de Cartagena”.

Com o desaparecimento dos suplementos culturais, a crítica de cinema foi substituída pelos comentários e resenhas, assim como a literária, de rodapé, também já não mais existe. O jornalismo, dito cultural, hoje, está muito atrelado ao mercado, perdendo, com isso, a independência. Na Bahia, por exemplo, não existe crítica de arte. Os artistas querem ser badalados, elogiados, tietados, e quando alguém, por acaso, os critica há, sempre, uma indisposição, uma vontade de nomear aquele que diz que o rei está nu como um maledicente. Moniz Vianna foi um bravo guerreiro e um crítico como ele já não mais existe na sociedade contemporânea ou, como se quer agora, na contemporaneidade. Os escritos de sua autoria reunidos em Um filme por dia revelam não apenas um imenso estilista e um erudito nas coisas do cinema, mas refletem, também, o espírito de uma época. Que o vento, já saturado, levou-a para sempre. Resta, agora, a recusa à banalidade ululante da cultura ou a aceitação passiva, mascarada de uma alegria debilóide, a justificar que os tempos pós-modernos abrigam um contingente maciço da dementia precox".

02 dezembro 2012

"O bebê de Rosemary" é uma obra-prima!

Roman Polanski, francês de nascimento e polonês de formação, nos anos 60, revelou-se um diretor surpreendente a partir do insólito A faca na água (Nóz w wodzie, Polônia, 1962), obra claustrofóbica, mas plena de invenção, de atmosfera, cuja ação se desenrola quase toda num barco que navega num grande lado  onde se encontram dois homens e uma mulher. O filme o tornou conhecido internacional, e Polanski , saindo da Polônia, foi filmar na Europa. Na Inglaterra realizou outra obra claustrofóbica de uma vitalidade impressionante, Repulsa ao sexo (Repulsion, 1965), e, na França, Armadilha do destino (Cul-de-sac, 1966), uma visão ácida de um grupo de pessoas reunidas num castelo. Em 1968, uma obra-prima: O bebê de Rosemary (Rosemary's baby), que deu origem a toda uma série de filmes que veio a seguir inspirado na demonologia (A profecia, O exorcista...). Vejam os vídeos neste domingo de um dezembro que anuncia o ocaso do ano.

28 novembro 2012

Exegese brilhante de "Um corpo que cai" ("Vertigo")



Retiro, com a devida vênia, da página/blog Dicionários de Cinema (http://www.dicionariosdecinema.blogspot.com.br/), uma brilhante exegese de autoria de Dominique Paine em tradução de Luiz Soares Junior (outro exegeta profundo e perfuratriz). Desculpem a transcrição, assim tão abrupta. Mas é o amor de Vertigo que impulsiona o ato.

"Vertigo é um dos filmes mais famosos que utilizam um retrato pintado no centro de sua narrativa. Retrato a partir do qual tudo se desencadeia ou, ao contrário- talvez- tudo regrida. O retrato pintado em um filme é com frequência um pretexto para idas e vindas temporais. Sem dúvida, não é um acaso se a figura da espiral é em Vertigo um tema visual que simboliza as vertigens de James Stwart. Mas a espiral remete também a uma certa ilusão alternativa da visão e do pensamento, seja um ponto de fuga em direção ao passado ou ao futuro. Dupla ilusão que, segundo a vontade do espectador, se entrecruza ou advém para o front do olhar de quem contempla o filme. A espiral poderia ser a figura geométrica que exprime a recorrência, a repetição, o retorno do Mesmo, a cópia, o retrato. Hitchcock teria pensado nisso? Desde os créditos, um rosto em close é detalhado segundo os seus orifícios principais. Boca, nariz, olho, de onde se extraem figuras revoluteantes. Vertigo pode nos levar a pensar nesta outra máquina alternativa para a visão que é As Meninas de Vélasquez , e que Foucault definia “como uma concha em forma de hélice que oferece todo o ciclo ´da re-apresentação. Assim, as volutas se fecham ou por intermédio desta luz se entreabrem”. Podemos avançar a hipótese de que Vertigo é igualmente uma reflexão sobre a representação, enquanto se oferece como representação da representação, segundo termos visinhos dos usados por Foucault em seu texto “Os próximos”, que abre As palavras e as coisas.1

A construção dramática do filme, repetitiva em duas partes distintas, e a obsessão de Stwart que visa a reencontrar uma mulher desaparecida remodelando-a em uma outra mulher- convidam o espectador a ver no filme uma parábola da atividade artística. O retrato pintado que obceca a primeira mulher, Madeleine, é coisa de menos nesta parábola. Como em outros filmes hollywoodianos, é de caráter medíocre, e parece mesmo paradoxal que o gênio de Hitchcock se satisfaça com semelhante imagem. A atenção do cineasta sem dúvida se dirigia para outro ponto. Ou então, é precisamente necessário que este retrato pintado não exista para que o discurso do filme se organize em outros termos que não os de dignas referências ou nobres citações plásticas.
O que choca à primeira vista na construção dramática de Vertigo é o seu não-fechamento ( non-clôture) ou, se ouso dizer, sua metonímia infernal. A primeira seqüência do filme se assemelha a uma seqüência de filme de aventuras policiais que teríamos surpreendido no meio da ação. Parecendo já ter começado nos créditos, o filme se oferece como a amostra de um segmento numa cadeia dramática que o excede.O fim do filme repete o fim da primeira parte, a queda de Judy nos lembrando da primeira queda da falsa Madeleine. O espectador ressente assim uma forte sensação de abertura aos dois extremos do filme. A espiral, figura que não cessa de alimentar a sua própria auto-revolução, simboliza o filme inteiramente 2. Esta intensa afirmação de um encadeamento aberto ( non clos) de sequências remete o filme a uma espécie de fixação que emana tanto da contigüidade que preside à galeria de tableaux quanto de um dinamismo dramatúrgico. Mas para melhor fazer compreender esta noção de contigüidade, -de extremo a extremo do filme, e portanto em sua evolução fatal- tomo de empréstimo aqui esta famosa figura dita “ a espiral de Fraser”, comentada por Ernst Gombrich em Arte e ilusão 3, ao mesmo tempo antecipação e serialidade, círculos concêntricos auto-contidos, repetidos, e no entanto alavancados pelo abismo.

Vertigo é também o conto de um golpe, organizadao pelo roteiro: aquele no qual tomba Scottie, testemunha inconsciente e impotente de um assassinato. Mas Scottie é vítima de uma outra armadilha ( piège), de uma outra “armadilha do olhar”, como diria Lacan, que mostra que- enquanto sujeito-, Scottie está dentro de umtrompe-l’oeil, literalmente convocado- e aqui representado- como capturado, domesticado.

O duplo status de Vertigo faz deste filme uma obra maior da arte moderna. Por um lado, a narrativa age com força sobre o imaginário do espectador, fazendo viver a este último, por intercessão de Scottie, uma experiência de desvelamento traumático. Por outro, a arquitetura do filme, tal como descrita por Éric Rohmer , propõe uma verdadeira metáfora e convida a uma reflexão sobre as relações entretidas entre o real e sua reprodução. Uma reprodução que, ao se encarnar, recusaria o real. Mimetismo, reconhecimento, ilusão, rememoração, todas estas noções próprias às relações que regem à obra de arte e seu espectador estão inscritas na construção dramática do filme.
O tema de Vertigo seria assim estético, e a princípio pareceria ilustrar as duas possibilidades da imagem, as duas versões do imaginário tais quais Maurice Blanchot as definiu 4, e que proviriam do fato de que a morte é ora o trabalho da verdade no mundo- aqui no filme, a verdadeira morte é necessária para que Scottie compreenda-, ora a perpetuidade daquilo que não suporta nem começo nem fim- aqui, o filme, sua aparência de segmento fílmico sem termo, cada seqüência parecendo subtraída ao acaso de um filme já iniciado antes dos créditos.

Eric Rohmer foi o único que em 1959, logo quando do lançamento do filme, já definia Vertigo como uma parábola, e o integra a uma trilogia formada por Janela indiscreta e O homem que sabia demais.5 A arquitetura e a paralisia são comuns aos três filmes. O núcleo de Vertigo é constituído , sempre Rohmer, pelo tempo, não mais aquele do pressentimento orientado para o futuro mas ao contrário, dirigido para o passado: o tempo da reminiscência. A estratégia das ações não se constitui a partir da marcha das paixões, ou por qualquer trágico moral- como diz ainda Rohmer-, mas por um processo abstrato, mecânico, artificial, exterior. Não é o homem que nos três filmes citados constitui o elemento motor, muito menos o destino no sentido em que desde os Gregos o compreendemos, mas a própria forma destes seres formais que são o espaço e o tempo. Rohmer aproxima-se claramente desta idéia segundo a qual o tema de Vertigo seriam finalmente as condições de sua própria forma, a escritura cinematográfica- e, mais geralmente, a representação. A respeito de Janela indiscreta, Rohmer observa no mesmo texto que o fotógrafo vira as costas ao verdadeiro sol e só contempla as sombras sobre o muro da caverna. Enfim, para Vertigo, ele assinala que Scottie é remetido de uma aparência a uma outra aparência. Neste belo texto, intitulado “A hélice e a idéia”, Rohmer insiste portanto sobre a dimensão formal e abstrata do filme, evocadas para ele pela forma espiral, ou mais exatamente pela figura helicoidal. Mas insiste também sobre o retorno para o passado a partir do qual todos os eventos do filme estão fundados, tanto dramatúrgica- os segredos ocultos- quanto teoricamente: de onde vem a representação? Idéias e formas seguem a mesma via, diz-nos Rohmer, encerrando seu texto.

Vertigo é com efeito organizado segundo uma quádrupla “volta para trás” ( retour en arrière). O primeiro são os simulacros dos fantasmas de Madeleine, que deseja encontrar o convento que a obceca. O segundo, a obsessão de Scottie, que deseja recriar Madeleine. O terceiro retorno é a volta de Scottie ao convento, a fim de confundir as duas personagens femininas, Judy e Madeleine. O pensamento de Scottie se manifesta não “mais como aquele que desvela o que deve vir à luz em seu ser, como avant-garde, como inovação mas como reiteração deformada, olhares, repetições convulsivas e mortificadas, como o descobridor de uma imagem que este não desejou descobrir, imagem da qual desviou o olhar e que , no entanto, conhece suficientemente por havê-la desejado”. 6 Em relação ao desvio ( détour), remeto ao simétrico desvio de olhares entre Scottie e Madeleine, quando de seu primeiro encontro no bar.

Enfim, um quarto retorno ao passado das origens míticas da representação. Hitchcock disse com Vertigo que o cinema é o herdeiro da pintura, que o cinema é pintura, propondo “não um caminho percorrido no sentido inverso, mas reconstituindo a rota através da qual- não a partir do corpo, mas desta alguma coisa que Merleau-Ponty chamou de a carne do mundo- pudesse surgir o ponto original da visão”. 7 A vertigem, em Vertigo, é tanto aquilo que arremessa o corpo de Scottie quanto o retorno a este gesto inaugural na cultura ocidental, o retrato como atividade fundadora da pintura. “No início, era o retrato”..., poder-se-ia intitular minha exposição, em parte refletindo na afirmação célebre de Plínio, o Antigo, “Começa-se por delinear através de um traço o contorno da sombra humana”; por outro lado, penso em Hitchcock, que faz de sua mise em scène enVertigo uma verdadeira mise-en-portrait ( encenação de um retrato), especificando assim 

o tipo de paixão, feito de ritos e trocas simbólicas, que é nutrida pelo personagem principal, paixão já distanciada da fascinação na qual o espectador se mantém diante das efígies fílmicas.

Uma mise en scène que seria uma mise en portrait. Na língua italiana, a palavra retrato, ao contrário do francês, inglês ou alemão, rittrato, indica um retorno, uma retração, um retornar-se sobre, e assinala a capacidade do pintor de retraçar, reencontrar um homologon. E é disto que se trata para Scottie: reencontrar uma imagem inicial que só lhe apareceu para lhe ser roubada, ser tomada entre a melancolia de uma perda e o desejo enganador de morte de uma reaparição, “viver um encontro com um ser que não possui outra vida senão a do retorno”.8

Portanto, no começo era o retrato. Lembremo-nos do gesto lendariamente inaugural da pintura, que se confunde com o primeiro retrato. Em A primeira sombra 9, Agnès Minazzoli revela que uma lenda nos conta que a pintura nasceu da sombra, de uma sombra desenhada sobre um muro e do traçado que o circunda. Uma jovem quis desta forma guardar a imagem de seu amante, na iminência de sua partida. A imagem carrega presença e ausência, sombra e luz; ela as reconcilia ou sublinha o conflito. É precisamente o que quis assinalar em Vertigo: este retraçar, esta retração, e aqui mais exatamente a restauração por Scottie de um rosto perdido, e que transforma o filme inteiramente em uma portraiture ( ao ato de constituir um retrato), uma mise en scène que se identifica ao ato de erigir um retrato enquanto um ato de representação delineado no contorno retraçado pela sombra projetada de um perfil. Rohmer aí bem sentiu o propósito abstrato de Hitchcock: “As sombras sucedem-se às sombras, os simulacros aos simulacros”. Daí se pode supor que a narrativa do filme é indissociável de uma considerável lucidez estética do cineasta sobre as origens da arte da pintura, e simplesmente de toda a arte. Cinco seqüências resumem esta passagem da face ao retrato e do retrato à sombra.

Primeira visão no bar.
É preciso atentar nesta primeira seqüência em vários traços que caracterizam a mise en scène de Hitchcock e que inscrevem desde logo a aparição de Madeleine num registro inelutável, o registro do petrificado, do retrato.O primeiro destes traços é este movimento de câmera que, contra toda expectativa, não se dirige para Madeleine com o fito de fazer raccord com a direção do olhar de Scottie, mas que pelo contrário se distancia, se recolhe nos recantos mais distantes de visão do bar, se retrai.Dito de outra forma, o recuo da câmera associa a primeira aparição de Madeleine a um distanciamento ( une mise à distance), segundo “a paradoxal retração de um retrato que só se aproxima de nós com o fito de se furtar a nós”. 10 Deliberadamente, a câmera abandona a visão subjetiva de Scottie, e parece colocar-se no lugar e na posição de nosso olhar. Falar em retrato é falar em troca de uma face por uma imagem. As trocas são inúmeras em Vertigo; entre as mluheres, entre o real e o sonho, e aqui, entre um olhar e nosso olho, entre um retrato e nosso rosto, como que perfilando-se sobre o fundo deste espelho que seria em definitivo o cinema.

O segundo traço é a mais escrupulosa atenção dedicada por Hitchcock a impor de perfil a primeira imagem do rosto de Madeleine, sublinhada por uma fulgurante auréola. Como a Simonetta, a figura de Madeleine é divinizada, destacada do fundo, e adquire valor de uma espécie de objeto sagrado. Através do perfil, e desde o Renascimento, o retrato segue uma concepção generalizadora. Mesmo individual, o retrato representa um tipo idealizado. Assim, Scottie não pode encontrar o olhar de Madeleine, senão não haveria nem divino nem perfil. “Olhar supõe um perpétuo evitar do olhar do Outro”, lembrava-nos Jean Clair, que remarcava igualmente que o retrato, como a carta roubada de Poe, “tira seu poder não de ser contemplado, consultado, mas pelo contrário: de poder ser posto de lado ou ser mortificado em uma suspensão que é transcendental à sua função”. 11 “Pôr de lado” e evitar o olhar, eis o que caracteriza o primeiro encontro de Scottie e Madeleine. É à uma mise en scène determinada pelo princípio da “portraiture”(portratismo ) a que assistimos desde o primeiro encontro, a inscrição de uma profundidade por uma aposição à distância ( mise en distance), uma retração e um perfil.

Segunda visão no florista
Remarquemos rapidamente o mesmo parti pris de distanciamento ( mise à distance) por intermédio do espelho que define uma circulação entre o olhar de Scottie e nosso lugar de espectador. Destra vez, a função do espelho é mais evidente , se bem que esta já tenha sido evocada quando da saída do casal diante do espelho do bar. Assinalemos enfim a direção de atores de Hitchcock, que impõe à Kim Novak apresentar explicitamente o seu perfil para o olhar de James Stwart, assim como ao nosso.
A palavra perfil vem do latim Filum, e podemos sorrir do fato de que as três seqüências que “fixam” ( figent) a representação de Madeleine se articulem ao longo de uma filature ( enquête investigativa através da qual se segue um indivíduo), a de Scottie tentando penetrar o mistério de Madeleine. Filum engendra borda, contorno, desvio, desviar, fazer a volta ( faire le tour), perfil, perfilado, perfilar-se, desenhar os contornos.

Terceira visão no cemitério
O dispositivo de distanciamento é cada vez mais fortemente intensificado na interpretação dos atores e os lugares respectivos que ocupam no espaço. Scottie, literalmente, gira em torno, contorna, aproxima-se de Madeleine ao mesmo tempo em que parece se afastar ( outro efeito de espiral). Seu trajeto é gerido por uma espécie de liga ( sertissage) , palavra que associa o enquadramento circular do medalhão ou do broche, ao qual se associa aqui, quase que “logicamente”, uma conotação funerária. É preciso atentar para a particularidade da escritura hitchcockiana que, se parece repetitiva ( mesmos efeitos de distanciamento, insistência sobre o rosto apresentado de perfil para a câmera), nem por isso evolui menos dramaticamente. A sua trajetória leva Scottie progressivamente do vivo ao morto, ou do animado ao inanimado ( du vivant au non vivant), como se fosse necessário que esta mise en scène – para ser a mise en scène de um retrato-, tivesse necessariamente de marcar um encontro com a morte, pois “a semelhança não é um meio de imitar a vida, mas antes de torná-la inacessível, estabelecê-la num duplo fixo que escapa à vida. As figuras vivas, os homens, não possuem semelhança. É preciso esperar pela aparência cadavérica, esta idealização pela morte, esta eternização do fim, para que um ser adquira esta beleza maior que constitui sua própria semelhança, esta verdade de si mesmo em um reflexo.

Um retrato, e disto nos apercebemos pouco a pouco, não é semelhante por se parecer com um rosto, mas a semelhança só começa e existe com o retrato e apenas no retrato; ela é a sua obra, sua glória ou desgraça; ela é ligada à condição da obra, que consiste em exprimir o fato de que o rosto não está lá, que ele é ausente, que este rosto só aparece a partir da ausência, que é precisamente a semelhança, e esta ausência é também a forma que o tempo adquire quando se distancia do mundo e, finalmente, dele não resta mais que este vácuo e esta distância”.12

Quarta visão no museu
Hitchcock “encadeia” ( enchaîne) o túmulo, identificado por uma placa nominativa, com o retrato encostado a uma cadeira, identificado como retrato precisamente por um cartel ( espécie de etiqueta-moldura que identifica o nome do autor, o tema da obra, etc).. É Hubert Damisch que nos lembra, em seu Origens da perspectiva 13, que para que haja retrato, é preciso que haja um nome que o identifique, independente do fato de que um retrato possa se dispensar de remeter a um modelo em carne e osso.

Em quatro partes articuladas ao longo de uma trajetória ( entre cada lugar, Scottie retoma seu carro para seguir Madeleine), Hitchcock organiza sua narrativa segundo o princípio de construção de um colar. Sabemos o papel que este objeto vai desempenhar mais tarde na confusão das duas mulheres. Judy se trai definitivamente, pois lembra a Scottie, por intermédio de um colar, o retrato da antepassada, evacuando assim de sua memória a figura de Madeleine. Esta perseguição que repete os mesmos dispositivos dramáticos e plásticos sofre, portanto, uma evolução ( reencontramos assim este tema do falso espiral, feita de círculos autônomos e que, no entanto, aspiram a um centro). O estágio final desta perseguição é este retrato do museu que contemplamos pouco em sua integralidade, pelo fato de que o verdadeiro retrato está em outro lugar, já constituído no tempo dramatúrgico que precedeu a esta chegada na galeria. Veremos deste retrato pintado, aliás de bem medíocre fatura, apenas dois detalhes.

Um detalhe possui a função de encadeamento narrativo e de passarela visual entre Madeleine e o retrato; é o bouquet de flores, que religa igualmente as seqüências precedentes em um continuum dramático ininterrupto: bar, florista, cemitério, museu. O outro detalhe é a voluta de cabelos, que fetichiza Madeleine aos olhos de Scottie. Este segundo detalhe reintroduz a seqüência linear da perseguição, marcada por uma atmosfera crescentemente mortífera, no seio do espiral voraz do roteiro, que encaminha os personagens irresistivelmente para uma queda fatal.
Um retrato pintado em um filme pode, no entanto, ocultar um outro. Em Vertigo, tal como nestes jogos visuais de imagens-charadas, um outro retrato se oculta nas dobras da ficção, na vertiginosa metonímia dos fotogramas. É antes de tudo o dispositivo da mise en scène que “faz” retrato em Vertigo, que “é” retrato (portrait).

Quinta visão: o hotel.
No começo era o retrato, no começo de Vertigo era um retrato, ao começo do cinema era a pintura, ao começo da pintura era a sombra de um perfil. O encadeamento é assim tão teórico quanto narrativo.

As duas mulheres, Madeleine e Judy, são nada mais que uma, e é Judy, a segunda mulher, reduzida a seu perfil mínimo, que acaba com as incertezas de Scottie, que confirma as perturbações de uma semelhança que poderia colocar na boca de Judy as palavras que Gillette diz a Nicolas Poussin na Obra-prima desconhecida de Balzac. “(...) teus olhos não me dizem mais nada, tu não pensas mais em mim, e no entanto tu me contemplas”. 14 Outro história- em Balzac- de troca entre uma mulher e outra. Em Edgar Poe, é claro, encontramos o eco desta ronda de intercâmbios, destes jogos imaginários entre repetição e retorno do mesmo: “Mas ela morreu, e com minhas próprias mãos eu a carreguei até o túmulo, e ri de um amargo e longo riso, quando, na cova em que depositava a segunda, já não descobria nenhum traço da primeira”. 15

Em outros termos: o retrato realiza aqui seu cerimonial. Judy, traço por traço, é o retrato de Madeleine, que era ela mesma um retrato. De retrato, então, não há nada senão retrato de retrato, representação de representação. Um retrato só se legitimaria enquanto tal a partir de sua inserção em uma cadeia, em uma sinopse constituída de efígies que, como na galeria de um museu, não têm necessidade de se remeter a modelos vivos e credíveis para serem retratos. O que quer dizer que um retrato só valeria ao ser inserido no circuito de uma repetição regida por uma lei paradigmática criativa de semelhança. Este termo atingido por Scottie, esta revelação atingida em meio às brumas desta sombra originária reencontrada- revelação que também se mostra como o sentido do pensamento plástico de Hitchcock- se identifica a uma espécie de cura. Em Vertigo, sua vertigem cessa quando o personagem faz a experiência do real, enquanto este último se mostra como um abismo interminavelmente diferido, ausente ( manqué), prefigurado logo ao primeiro encontro. A vertigem cessa porque Scottie faz a experiência de que não há nada ao fim da queda, de que atrás da imagem inventada há apenas a sombra descoberta, e de que a imagem arrisca de “nos remeter não mais à coisa ausente, mas à ausência como presença, ao duplo neutro do objeto no qual o pertencimento ao mundo se dissipou” 16."


Notas:

1. Michel Foucault, Les mots et les choses
2. Outras sequências evocarão ostensivamente o espiral: os círculos da sequóia fossilizada.
3. Ernst Gombrich, L’art et l’illusion
4. Maurice Blanchot, L’éspace littéraire ( les deux versions de l’imaginaire)
5. Éric Rohmer, L’hélice et l’idée
6. Jean Clair, Méduse
7. Jacques Lacan, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalise, Séminaire, Livre XI
8. Maurice Blanchot, op. Cit.
9. Agnès Minazzoli, La Première ombre
10. Jean Clair, Le vis-à-vis
11. Jean Clair, op. cit.
12. Maurice Blanchot, L’amitié
13. Hubert Damisch, Origine de la perspective
14. Honoré de Balzac, Le Chef-d’oeuvre inconnu
15. Edgar Allan Poe. Histoires extraordinaires,” Morella”
16. Blanchot, L’éspace littéraire, op.cit.

Dominique Païni, Le cinéma art moderne, 1997, Éditions Cahiers du cinéma
Tradução: Luiz Soares Júnior.