1) Vi recentemente, em DVD, a comédia
musical Les girls (1957), do grande
George Cukor, que assinala uma das últimas aparições de Gene Kelly como
dançarino no cinema. O gênero, na época deste filme, já estava a se esgotar,
substituído, logo a seguir, pelas grandes produções musicais, a exemplo de West Side Story, A noviça rebelde, My fair lady. Talvez a derradeira
película na melhor tradição do filmusical hollywoodiano tenha sido Gigi (1958), de Vincente Minnelli.
Os efervescentes anos 60 ainda proporcionaram alguns filmes interessantes (Positivamente Millie, de George Roy Hill, A moedinha da sorte, de George Sidney, Mary Poppins, de Robert Louis Stevenson,
entre outros), mas, a partir da segunda metade da década de 60, ainda que
alguns estúdios insistissem na grandiloquência (Funny Girl, de William Wyler, A estrela, de Robert Wise), a pá de cal,
por assim dizer, veio com Hellô! Dolly,
que levou a Fox à falência. Em 1970, com a explosão do Woodstock, o público
estava arredio aos espetáculos musicais tradicionais e foi um erro, falta de
planejamento, a realização de Hellô! Dolly, um fracasso quase
retumbante, ainda que filme fascinante nos seus números e cenas de danças.
2) Mas estava a falar de Les girls. Um filme de pontos de vista
sobre a questão da verdade. O que é a verdade? Há uma verdade de cada um,
segundo o ponto de vista de cada um. Cidadão
Kane, de Orson Welles, é, neste particular, um puzzle magnífico construído sobre variações de olhares sobre uma
determinada personalidade. Em Les girls, há uma variação em
torno da questão, e o autor do roteiro deve ter visto e se influenciado por Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, que
trata do assunto. Três pessoas se abrigam de chuva torrencial debaixo de uma
marquise e começam a conversar sobre um assassinato que presenciaram. Em flash-backs, como em Les girls, Rashomon mostra a versão de cada um. No final, as versões se
contradizem e aparece o espírito do morto para contar a sua verdade.
3) Dirigido por George Cukor, um mestre da
comediografia cinematográfica, Les girls
gira em torno de um processo judicial com sede num tribunal de Londres, quando
uma mulher (Kay Kendall) é processada por antiga amiga por ter escrito um livro
que a coloca numa situação difícil, a revelar que, quando eram dançarinas, veio
a ser amante de Gene Kelly. O filme então se estrutura a partir dos depoimentos
das duas mulheres, a que escreveu o livro e a autora do processo, além do
depoimento do próprio Gene Kelly. No final, fica-se sem saber ao certo quem
falou a verdade. Para um musical, há, neste particular, um acréscimo temático e
filosófico não muito usual. Mas o filme tem números musicais bem coreografados
por Jack Cole, um especialista, e as canções foram escritas especialmente por
ninguém menos do que o genial Cole Porter.
4) Cukor é um dos maiores diretores do
cinema americano. Não há, no cinema contemporâneo, um cineasta de seu
refinamento, de sua finesse, cuja
maneira toda especial de dirigir atores (principalmente mulheres) ficou como
legenda. Veterano dos estúdios de Hollywood, dirigiu as primeiras cenas de ... E o vento levou (Gone with the wind,
1939), mas o todo poderoso producer
David Selznick o demitiu a pedido de Clark Gable, que ficava com ciúme de sua
dedicação a dirigir Vivien Leigh. Quem aparece como diretor nos créditos e ...E o vento levou é Victor (O mágico de Oz) Fleming, mas houve
outros diretores, como Sam Wood. Interessante observar que é um filme de
produtor, o diretor funcionando, apenas, como diretor administrativo. E que
extraordinário diretor administrativo, como foi o caso de My fair lady! Se o cinema brasileiro possuísse mais diretores
administrativos desse quilate não estaria no beco sem saída do ponto da criação
como se encontra, a captar recursos e a pensar pouco na emergência do
específico cinematográfico. Tem um filme, em particular, de Cukor que ficou no
meu caminho para o resto da vida, considerando que o vi, pela primeira vez, no
cinemascope do cinema Guarany em Salvador, Adorável pecadora (Let's make love, 1960), com
Yves Montand e Marilyn Monroe. Cukor aqui está, por assim dizer, na sua
quintessência. E o filme é admirável. Tenho-o em DVD e de vez em quanto o
avisto.
5) As três girls do filme são as maravilhosas e deslumbrantes Mitzy Gaynor,
Tania Elg e Kay Kendall. Elg, mais desconhecida, era uma bailarina finlandesa
que encantou o olhar rigoroso de Cukor e foi logo contratada. Kendall,
comediante inglesa, do proscênio britânico, mas também com participação em
Hollywood, morreu prematuramente de leucemia e era casada com Rex Harrison, o
eterno professor Higgins de My fair lady.
O número musical do café, no qual há nítida uma paródia a O selvagem, com Marlon Brando, foi coreografado por Kelly, porque,
no dia da filmagem, Jack Cole, o coreógrafo oficial, estava doente. Mitzy
Gaynor mostra, neste número, a sua excelência como dançarina. Na verdade, um
filme como Les girls não mais poderia ser filmado com o poder de
encantamento que tem. Porque não há mais uma infraestrutura capaz de oferecer
suporte ao gênero: costureiras, coreógrafos, figurinistas, equipe de balé etc.
6) Cukor foi um verdadeiro mestre. Fez
filmes admiráveis como os citados e, ainda, Núpcias
do escândalo (Philadelphia story, 1940), Um rosto de mulher (A woman's
life, 1941), com Joan Crawford,
Viagens com minha tia (Travels with my aunt, 1973), o intrigante A vida íntima de quatro mulheres (The chapman's report, 63), com
uma Jane Fonda em início de carreira etc. O cinema americano do grande segredo,
como chamava François Truffaut, é pródigo de talentos na comediografia, a
exemplo de Vincente Minnelli, Richard Quine, Blake Edwards, Leo McCarey, entre
tantos! Minnelli funcionava bem quer no musical, nas comédias, quer nos
melodramas ásperos. Estilista de escol. Neste ponto, mais atraente do que
Cukor, sem diminuir, com isto, a excelência deste. Aliás, foi Cukor quem usou
cinematograficamente a lente anamórfica em Nasce uma estrela (A star is born,
1955), com uma inesquecível Judy Garland (não conheço nenhuma estrela com o
talento dessa excepcional cantora e atriz). O cinemascope, então lançado, se
perdia nos planos gerais. Cukor o ajustou à expressão cinematográfica com este
filme que mostra a ascensão de uma estrela que se casa com um alcoólatra, com
acentos biográficos da vida de Garland, interpretado pela fleuma de James
Mason. Uma temática constante nos filmes de Cukor: a dialética do ser e da
aparência.
Um comentário:
Caríssimo, o blog O FALCÃO MALTÊS está aniversariando e entrando de férias. Obrigado pela parceria. Desejo um Natal harmonioso e um Ano Novo cheio de energia.
Cumprimentos cinéfilos,
O Falcão Maltês
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