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12 janeiro 2014

Alguns elementos de apreciação

Isabelle Huppert em Madame Bovary, de Claude Chabrol
Na apreciação da obra cinematográfica, existe um certo bipolarismo metodológico que não passa de uma reencarnação da antiga oposição entre formalismo e conteudismo – questão bizantina que já se pensara superada, mas que está revestida, hoje, de técnicas recognitivas bastante aperfeiçoadas na sua modernidade, tornando este problema, ainda que bizantino de origem, mais sofisticado.

Os partidários opostos continuam a se defrontar em relação à coisa (leia-se fábula) ou ao como (leia-se narrativa) do discurso fílmico. Cada qual empenhado em reivindicar as qualidades de sua causa contra as mistificações operadas pelo adversário. O fato é que tanto a story – considerada, aqui, nas suas implicações fílmicas ou extrafílmicas – como o discurso - considerado, quer no seu valor estético, quer no seu aspecto funcional que assume no filme, e leia-se, aqui, discurso como narrativa, continuam a ser analisados em separado, como se fossem duas realidades independentes entre si, perpetuando-se, com isso, o equívoco segundo o qual a fábula seria a substância da expressão, enquanto a narrativa – ou o discurso – a forma mediante a qual a substância seria esteticamente expressa.

Como sair, então, dessa arapuca teórica na qual se afundam os mais acirrados radicais de um partidarismo que serve somente para espoliar o filme à força? Este dilema está mais ou menos expresso quando o crítico paulista Paulo Emílio Sales Gomes, apaixonado pelo filme de Jean Renoir A grande ilusão, vê-se na iminência de assumir seu papel de analista:

“O exame crítico é um processo de aproximações sucessivas, implicando num grau de distanciamento cuja redução é constante, sem nunca chegar à anulação. O comentário a respeito da La grande illusion me obrigaria a inverter o processo e a desencadeá-lo artificialmente. Não se trata, apenas, de uma fita que existe em mim conservada pela memória auditiva, visual e afetiva. Para fixar a natureza dessa identificação é necessário dizer ainda que certamente me sinto dentro da fita muito mais à vontade do que o próprio autor. Este estranho sentimento de fusão é pura vivência e bloqueia o espírito crítico. Procurando exercê-lo, violo e destruo minha intimidade com a fita. Quando escrevo ou falo sobre La grande Illusion, tenho a impressão desagradável de que ambos, a fita e eu, somos outros.”

Esse sentimento do crítico paulista aplica-se, contudo, à chamada crítica impressionista considerada deficiente no plano cientifico, porque destituída de metodologia específica, e baseada na impressão do comentarista/crítico, mas que tem a vantagem de não recorrer a esquemas exclusivos, que em vez de abrir, muitas vezes, um caminho no texto fílmico, servem freqüentemente apenas para o esmagar com certa brutalidade metodológica. A viagem através do universo fílmico, todavia, para que se torne uma descoberta do significado poético da obra cinematográfica, tem de ser feita por meio da distinção entre a narrativa e a fábula, entre o discurso e a história, entre o como e a coisa. Tarefa árdua se se considerar as numerosas sereias espetaculares, psicológicas e sociológicas que povoam o itinerário de procura da tradução do filme em termos lógico-discursivos do sentido poético que ele exprime através dos procedimentos de significação que lhe são próprios. O que incide sobre a sucessiva racionalização e ao caráter de polivalência que caracteriza o filme como sistema orgânico de sinais suscetível de múltiplas leituras, favorecendo, por conseguinte, à pluralidade interpretativa.

Para que o filme se possa revelar, na sua recôndita alma secreta, não é por meio da língua que se deve inquiri-lo, mas, sim, numa língua que não é a da realidade nem a da encenação da realidade, a língua da transformação do filme em figura através dos procedimentos adequados à produção de sentidos inéditos de que a linguagem fílmica dispõe. É na língua do cinema que se deve procurar a sua significação como obra de arte, é no específico fílmico que se tem o ponto de partida para desatar o nó górdio de seu mistério como expressão da arte e do pensamento.

Na ausência desses pensamentos adequados à produção de sentidos de que a linguagem fílmica dispõe, uma transvalorização poética que se plasma na escrita, não há por que falar em formas nem conteúdos, reinando, apenas e absoluto, o vazio da banalidade cotidiana. Se o cineasta não tem a capacidade de transformar o mundo em linguagem – nunca esquecendo de que o cinema tem o poder de transformar o mundo em discurso servindo-se do próprio mundo, está destinado a permanecer uma larva informe e muda, não obstante a impressão da realidade que emana do cinema e em virtude da qual os filmes podem mentir sem receio, dando a impressão de que estão dizendo a verdade.

Vista a distinção entre o plano da narrativa e o plano da fábula, fundamental para o entendimento da linguagem sem língua que é o cinema, não se pode deixar de reconhecer que a chamada sétima arte, por grande máquina fabuladora, é chamada a desempenhar, na atualidade, a mesma função mitopoética das canções de gesta da Idade Média e do romance realista do século XIX. O cinema se propõe a satisfazer, à semelhança desses dois gêneros citados, aquela fome de narrativas tão antiga como o homem, e que constitui a manifestação mais elementar da sua insuprimível necessidade de imaginário. E o cinema obteve sucesso nesse campo por causa do caráter universal da linguagem fílmica, assim como sua irrefutável característica de arte moderna – típica, aliás, do cinema. Arte mediana porque distante, por constituição, tanto da esfera artística cortesã como das práticas de barracão decididamente plebeias. É óbvio que se está a referir ao comportamento usual a que o cinema – que antes mesmo de ser uma arte é uma indústria – se conforma na maior parte dos casos – e os filmes programados no circuito comercial podem muito bem dar uma idéia desta arte mediana. Assim, os raros pontos altos atingidos pela produção cinematográfica não são, efetivamente, suficientes para modificar o supracitado estatuto, o mesmo acontecendo com os bastante mais freqüentes pontos baixos. É o caso de se dizer: um filme, por pior que seja, dificilmente desilude por completo a expectativa de narrativa do espectador, sendo que na origem da popularidade do cinema está, portanto, nada mais do que esta promessa sempre renovada de narratividade, uma promessa cuja manutenção é garantida pelos históricos destinados à tela.

Lida-se, no filme, não com palavras, mas com imagens capazes de provocar esta tão falada impressão de realidade, que é, diga-se de passagem, completamente desconhecida nos signos verbais. Assim, na medida em que as imagens, diferentemente do que se passa com os verbos, não se podem conjugar, o único tempo que o cinema tem à sua disposição é o presente. Um presente, observe-se, que é vivido como tal pelo espectador mesmo quando na tela se volta ao passado ou se dão saltos no futuro. O lugar geométrico onde se individualiza a poética de um autor é, por conseguinte, representado pela esfera da linguagem por ele utilizada.

A categoria do espaço-tempo cinematográfico é, portanto, plenamente autônoma comparativamente à que intervém na narração escrita, salvo no caso, acentue-se, em que o filme se mantenha tributário da obra literária e renuncie, assim, a exprimir-se com a sua linguagem. Ao contrário da linguagem fílmica, o espaço na linguagem dos signos verbais é um lugar puramente abstrato ligado, apenas, à capacidade evocadora das palavras utilizadas e o grau de sensibilidade linguística que o leitor possui.

O romance filmado é uma utopia. Havendo, como há, duas linguagens autônomas e especificas, como se pode efetuar a transferência da linguagem literária – signos verbais – para a linguagem cinematográfica – signos icônicos? De fato, quando ocorre a adaptação de uma obra literária para o cinema há, apenas, o aproveitamento da fábula, dos personagens, das situações, desaparecendo, com isso, a narrativa, considerando que o que faz o estilo de um escritor é sua capacidade de reger as palavras numa determinada sintaxe, e o estilo de um cineasta está na sua capacidade de manejar os elementos da linguagem fílmica – os planos, os movimentos de câmera, as angulações, a montagem etc.

Por outro lado, alguns cineastas se valem de sub-literatura para, aproveitando a eventual engenhosidade da fábula, transformá-la em filme. Neste caso, a narrativa, se tende para o grau zero a nível de conotação no plano literário, pode se transformar numa narrativa convincente, e plena de poeticidade, no aproveitamento da fábula da sub-literatura. É o que faz, por exemplo, Alfred Hitchcock, cujos filmes, com raras exceções, foram muitas vezes baseados em fábulas da chamada pulp fiction (literatura barata), investindo o cineasta nelas como mero pretexto narrativo, o conteúdo estando sempre a serviço da forma/discurso/narrativa.

Temerária é a adaptação de um monumento da literatura universal. King Vidor empreendeu a conquista de Guerra e Paz para o cinema. Com um resultado desanimador se comparado o filme à obra que lhe deu origem, pois Vidor aproveitou somente os personagens, a intriga e as situações. Em uma palavra: a fábula. A narrativa de Leon Tolstoi foi diluída pela narrativa do cineasta, despersonalizando o fluxo do texto específico e da linguagem do escritor em função de um outro fluxo linguístico.

O cineasta, portanto, ao adaptar uma obra literária, empreende uma transferência de linguagem que se poderia situar no terreno da utopia. Em O processo, baseado em Franz Kafka, Orson Welles, com sua narrativa barroca, faz desaparecer a narrativa kafkiana (baseada em signos verbais) em função de uma narrativa wellesiana. Restam, é verdade, a fábula, os personagens, as situações. O filme, entretanto, é mais Welles do que Kafka. Também em Madame Bovary, de Claude Chabrol, apesar deste cineasta não possuir a exuberância estilística de Welles e ter querido uma fidelidade exemplar ao texto literário de Gustave Flaubert, a despersonalização se faz presente, porque em Madame Bovary, o filme, não se localiza o estilo flaubertiano e, pela fidelidade extremada, também se evapora o estilo chabroliano. Neste caso, duas as despersonalizações: a do escritor e a do cineasta. Há ainda a considerar que o leitor do livro imagina a sua Bovary, existindo tantas Emas quantos os leitores da obra literária. No filme, Ema é Isabelle Huppert.

Em suma: o princípio que rege a adaptação de um romance ou de uma peça teatral ao cinema é absurdo em essência, na medida em que supõe que os valores significados existem independentemente do meio de expressão que os veicula. Se o cinema, a literatura, o teatro, pertencessem a um mesmo sistema de signo (isto é: se possuíssem uma língua ou uma linguagem comum) não haveria problema. Mas os valores mudam quando se passa de um sistema para outro: os mesmos elementos adquirem sentido diverso. Os signos utilizados em um determinado meio de expressão, quando adaptados a outro, não só não possuem o mesmo poder expressivo (significante) como também não agem da mesma forma sobre a consciência do receptor. Sua percepção muda, sua organização mental se processa de modo diferente.

O que é descrito num romance se harmoniza gradualmente: as coisas aparecem pouco a pouco através de frases. No cinema, elas são apresentadas imediatamente num ritmo de desenvolvimento radicalmente oposto. O que na literatura é um resultado, no cinema é um ponto de partida. O romance filmado é uma utopia e, quando executado, um non sense. O que se adapta é uma paráfrase da obra original, a sua matéria. O romance perde a sua organicidade e, apenas, tem transportado para a tela personagens e incidentes, livres da linguagem que antes os tornara virtualmente reais.

O fundamental é saber se o filme, como dizia André Bazin, “non pas des histoires mises en scéne mais des oeuvres ecrités avec la caméra et les acteurs”, é bom ou ruim e não mera visualização paraliterária ad usum delfhini – digesto corrompido pelo preconceito culturalista segundo o qual a câmera é um olho com pretensões à caneta.

08 janeiro 2014

Lembrando de François Truffaut

François Truffaut, o nobre cineasta francês, iria completar 82 anos no próximo dia 5 de fevereiro. Mas a Implacável levou-o em 1984, aos 54 anos. Uma homenagem, aqui, ao autor de Jules et Jim.
Ao contrário do cinema de seus companheiros da Nouvelle Vague – Godard, Rohmer, Chabrol, Rivette, Resnais…-, racionalista e cerebral, o de François Truffaut é feito com a emoção e o coração, com extrema sensibilidade e uma simpatia incomum pelos seus personagens, que são tratados com ternura, generosidade e afeto. O crítico ferrenho, radical, intransigente, das revistas Cahiers du Cinema e Arts et Spetacules, que ataca em seus escritos o cinema clássico francês e o realismo psicológico de acadêmicos como Claude Autant Lara, Julien Duvivier, entre outros, sofre uma espécie de metamorfose quando passa a realizar filmes, transformando-se num cineasta terno e amável.
Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, cuja tradução literal é Os Quatrocentos Golpes), além de inaugurar a Nouvelle Vague – juntamente com Acossado, de Godard, Hiroshima, de Resnais… -, dá início à carreira de Truffaut como realizador de longas. E, neste 2009, a distância deste filme é de exatos 50 anos. Aqui também começa o ciclo dedicado a Antoine Doinel (sempre interpretado por Jean Pierre Léaud), um personagem com evidentes elementos autobiográficos, através do qual aborda o rito de passagem da infância à idade adulta. É a nostalgia da adolescência que Truffaut reflete nos filmes do ciclo Doinel, a fugacidade do tempo e a ânsia de amar, a chegada à idade adulta, o casamento… (Antoine et Colette, 1982, episódio de O Amor aos Vinte Anos/L'Amour a vints ans; Beijos Proibidos/Baisers Volés, 1968, Domicílio Conjugal/Domicile Conjugal, 1970, e; Amor em Fuga/L'Amour en Fuite, 1978).
(Em Os Incompreendidos, Truffaut, avant la lettre, considerando a época, alude à Nouvelle Vague e a seu amigo e colega Jacques Rivette, quando os pais de Antoine – que, por sinal, nos outros filmes do ciclo estão sempre 'indo ao cinema' – decidem ir ver Paris Nous Appartient, de Rivette, filme emblemático, apesar de pouco conhecido do movimento francês, e, de volta, no automóvel, consideram-no 'muito bom' – melhor homenagem impossível).
Romântico, sem, contudo, abandonar a visão irônica e dolorosa das relações afetivas, Truffaut tem a sua obra-prima já na terceira incursão longametragista: Uma Mulher para Dois/ Jules et Jim (1961), crônica de uma relação triangular (Oskar Werner, Jeanne Moreau…) baseada no texto literário de Henri Pierre Roché, autor que lhe serviria de inspiração para realizar, dez anos depois, abordando a mesma temática da dificuldade de amar, As Duas Inglesas e o Continente/ Les Deux Anglaises et le Continent (1971). O problema da comunicação no amor, aliás, do amor impossível,en fuite, é uma constante na filmografia de Truffaut, como revelam A História de Adele H/ L'Histoire de Adele H (1976), com Isabelle Adjani, A Mulher do Lado/ La Femme de la Cote (1981), entre outros.
Se seus colegas da Nouvelle Vague procuram elaborar uma linguagem que desconstrói o discurso cinematográfico tradicional, revertendo os cânones da lei de progressão dramática griffithiana, François Truffaut não pretende nunca em seus filmes dissolver a estrutura lingüística, mas, ao contrário, busca desesperadamente a fluência narrativa, o toque mágico capaz de envolver o espectador a fazê-lo pensar que não está no mundo. É verdade que brinca com a metalinguagem, mas num sentido de reverência e ao cinema como em A Noite Americana/ La Nuit Americaine (1973), belíssima homenagem ao processo de criação cinematográfica onde Truffaut comparece como ele mesmo no papel de um diretor que faz um filme. O filme dentro do filme, portanto.
Outra vertente temática na obra truffautiana é a dominante policial, influência, na certa, de sua admiração por Alfred Hitchcock – seu livro de entrevista com este, Hitchcock/Truffaut, da Brasiliense (e, agora, em outra edição pela Companhia das Letras), é, simplesmente, uma aula magna de cinema. Há Hitchcock em Fareinheit 451 (1966), que faz na Inglaterra, com o mesmo Oskar Werner de Jules et Jim, baseado na ficção-científica de Ray Bradbury. Outra obra alusiva ao mestre é A Noiva Estava de Preto/ La Mariée Était em Noir (1967), com Jeanne Moreau ou, mesmo, Tirez sur le Pianiste, segundo filme (1960), e A Sereia do Mississipi/ La Sirene du Mississipi (1969), no qual declara, através das imagens em movimento, a sua paixão momentânea, Catherine Deneuve, que trabalha, aqui, ao lado de Jean Paul Belmondo. E no seu canto de cisne De Repente num Domingo/ Vivement Dimanche (1984), cujo 'claro/escuro', proposital, vem em auxílio de uma proposta estilística em função do film noir francês. Sem esquecer o elaborado, como mise-en-scène, Um só pecado (Le peau douce, 1963).
Autor, porque dono de um estilo próprio, marcante, ainda que com um universo temático diversificado, François Truffaut, na sua filmografia, envereda por assuntos diversos, a exemplo de O Garoto Selvagem/ L'Enfant Sauvage (1970), filme sobre a luta de um médico, no século XIX, para 'domar', um menino bárbaro criado sem contato com a civilização – influência possível para Werner Herzog em O Enigma de Kaspar HauserNa Idade da Inocência/ L'Argent de Poche (1976), experiência na qual, repetindo Jean Vigo (Zero de Conduite), o universo que retrata é constituído somente de crianças. Sem esquecer O Último Metrô/ Le Dernier Metro (1980), uma volta ao passado, Segunda Guerra Mundial na França ocupada, para valorizar, numa situação-limite, a importância dos pequenos gestos.
Em todos os filmes de François Truffaut, um denominador comum: a narrativa que sobrepuja a fábula, a doce fabulação que advém de um sentido preciso de mise-en-scène, o touch truffautiano, sempre terno, apaixonado, capaz de levar ao espectador o prazer do autor com o que está a filmar e o prazer, imenso, de se assistir ao que se está a ver.

07 janeiro 2014

"A doce flauta da liberdade": novo filme baiano

O ator baiano Gildásio Leite em A doce flauta da liberdade, de George Neri
Recebi de Gildásio Leite, veterano ator baiano de teatro e cinema, que já trabalhou inclusive em produções nacionais (Tenda dos milagres, Central do Brasil, entre outras), o material que vai abaixo transcrito sobre o mais recente filme baiano já em fase de finalização: A doce flauta da liberdade, de George Neri, filmado em Ituaçu (cidade localizada na região de Vitória da Conquista a 150 km de distância), Abro as devidas aspas e parabenizo a equipe pelo trabalho feito em tempo recorde.

 A doce flauta da liberdade é o mais novo filme genuinamente baiano
Em algum momento dos anos 70, numa pequena cidade do interior, os moradores têm como única alternativa de entretenimento o cinema local. Os filmes ali exibidos são previamente mutilados, por ordem de alguns cidadãos mais conservadores: eles pedem ao exibidor que recorte das películas as cenas consideradas mais “ousadas”. Nem todos, no entanto, estão sintonizados com esse conservadorismo e preferem a onda liberalizante típica daquele contexto histórico e social.
É a partir desses embates que se inicia uma trama com toques de surrealismo e, em alguns momentos, humor. Em linhas gerais, é esse o ponto de partida de A doce flauta de Liberdade, longa-metragem dirigido por George Neri. “É, sobretudo, um elogio ao cinema. O ponto central é o embate entre a censura e a liberdade”, sintetizou Alberto Marlon, um dos responsáveis pela adaptação do roteiro.
A produção do filme foi viabilizada por meio da seleção pelo edital nº 12/2012, da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb). As filmagens duraram cerca de um mês em Ituaçu, a 150 quilômetros de Vitória da Conquista. “A comunidade nos aceitou muito bem, e a cidade se encaixou como uma luva para o filme”, observou o produtor executivo Dió Araújo. Atualmente, a obra está em fase de edição e montagem, enquanto a equipe continua em busca de recursos para arcar com os custos adicionais.
O elenco é completamente formado por atores de Vitória da Conquista e região – à exceção do cantor e compositor pernambucano Otto, que fez uma participação especial. Há atores jovens e outros mais experientes, como é o caso de Gildásio e Sônia Leite. Assim que o filme estiver finalizado (a equipe espera tê-lo pronto ainda este ano), deverá ser exibido em mostras e festivais pelo país, além de canais públicos, como a TV Brasil.
Novo paradigma – As pretensões da equipe não param por aí. Para se ter uma ideia, está prevista a inclusão de legendas em inglês, francês e espanhol. “Não podemos deixar uma obra como essa na prateleira. Estamos fazendo esse filme para que ele tenha uma dimensão muito grande. Nossa intenção é ganhar o mundo através de um cinema mais artístico”, explicou Araújo.
Para Alberto Marlon, A doce flauta de Liberdade pode atuar como um incentivo para outras pessoas que também queiram dar vazão ao desejo de fazer cinema na região de Vitória da Conquista – que, por sinal, é a terra natal do cineasta Glauber Rocha. “Como a cidade é um celeiro de cultura e possui todas as vertentes de arte, essa iniciativa de produzir cinema é muito interessante, pois serve como um paradigma para novas produções”, afirmou.
Para mais informações sobre o filme, clique no link abaixo:

Gildásio Leite, o Calango da Véa Galdina
Filho de Janoca, neto de Tecla, filho de Zé Gonçalves, neto de Inocêncio, pai de Pauline, Paulo Tiago, Gabriele e João Gabriel, garoto precoce e dono de uma extraordinária inteligência, Gildásio Leite integra aquele grupo seleto e raro de intelectuais que conseguiram dar o salto nas gerações, que teve a habilidade para reinterpretar os movimentos sociais, políticos e culturais, incluir-se nesses movimentos pela porta da frente, e que, especialmente, não perdeu o brilho nem a mais sofisticada arma do ser humano contra as opressões cotidianas: a capacidade de sonhar.
Em uma deliciosíssima entrevista ao Blog do Fábio Sena – à qual deram auxílio luxuoso com suas inteligências os jornalistas Paulo Nunes e Luis Fernandes, Gildásio Leite dá uma aula de otimismo, de humanidade, de elegância com as palavras, mas principalmente, faz emergir conteúdos reveladores, conteúdos somente possíveis na cabeça de quem mergulhou fundo na história de sua época – e, no caso de Gildásio Leite, a época é esta contemporânea também –, da qual ele não se aparta. Dono de uma prodigiosa memória e singular inspiração para tratar dos temas mais delicados de forma sempre simpática, Gildásio Leite assegura, entre outras coisas, que seu legado para Vitória da Conquista foi a sua inteira devoção ao teatro como instrumento libertador.
Foi em clima descontraído e saboreando uma daquelas cervejas somente encontráveis no Bar de Paulinho que Gildásio Leite conversou conosco. Trata-se de parte de uma memória cuja leitura vai agradar a gregos e troianos.
Segue:
Gildásio e Zé Ninguém: os arquétipos da modernidade
- Gildásio Leite… cineasta, né?
- É…
- Cineasta!
- É… na verdade, eu sou ator e documentarista.
- Pronto: cineasta, ator e documentarista.
- Cineasta é um nome que… eu não assino. Embora tenha escrito vários roteiros de longa metragem, não realizei nenhum longa- metragem como diretor. Só tenho realizado curtas metragens, então eu não sou cineasta, eu sou ator teatral e cinematográfico. Eu não posso ser cineasta por eu ser ator de cinema.
- Ok. Você venceu. Quer começar falando pra gente sobre Zé Ninguém?
- O Zé Ninguém?
- Sim. De Reich.
- De Reich? Hummm… (faz cara de espantado…)
- Por quê? Você não acredita  mais em Zé Ninguém?
- Eu acredito. Inclusive eu adaptei até pro teatro o Zé Ninguém, pra ser encenado aqui em Conquista, e foi um projeto que não foi adiante porque eu tive dificuldade de elenco, de ator pra fazer o personagem, mas isso eu admiro, acho interessante. Tem um filme, um longa- metragem, que é “Quando Nada Acontece”, que é exatamente dentro do arquétipo do Zé Ninguém, um cara que luta a vida inteira para atingir o ápice, que a sociedade gosta de ver o eleito, vitorioso, e ele não consegue, ele não é nada. O filme chama “Quando Nada Acontece”. E por isso o pessoal da Salvador, onde eu tenho mais acesso, muito acesso, né, eu convivi muito tempo em Salvador fazendo teatro, fazendo cinema, eles acham que o filme é uma autobiografia minha, e não é (risos…), mas é interessante.
"A única dificuldade que eu tenho é de abordar uma linguística que a juventude articula hoje, através do facebook, da internet"
- Você ficou surpreso com essa de perguntar sobre o Zé Ninguém, não é?
- Fiquei, fiquei bastante surpreso.
- Me diz uma coisa: você consegue se adequar a essas novas gerações? Você consegue… digamos… você acha que ficou no tempo e no espaço ou que conseguiu se adaptar a essa realidade nova, à contemporaneidade?
- Olha, no momento, na atualidade, a única dificuldade que eu tenho é de abordar uma linguística que a juventude articula hoje, através do facebook, da internet, porque eu não tenho o hábito de manipular, e eu não manipulo essa linguagem, mas eu entendo/compreendo. Agora, linguisticamente, dentro do contexto atual, eu não me distancio da molecada, da juventude. Meus filhos são todos jovens, eles desenvolvem uma prática de percepção do contexto em que vivem, e eu compreendo com facilidade, e tenho feito muito teatro voltado para a juventude, não só nos anos sessenta como hoje, toda a minha prática de teatro tem sido voltada para a educação dos jovens, e não eu não tenho dificuldade de entendê-los e compreendê-los, até dentro das possibilidades… porque tem coisas que…
- Você consegue enxergar de qualquer forma uma diferença entre a sua juventude, entre o pensamento de sua juventude, entre a ação da juventude do seu tempo e a juventude de hoje? Que tipo de comparação você faria?
- Ah, sim, é muito difícil hoje compreender esse comportamento da juventude, porque nós vivemos no terceiro milênio, em que todas as conquistas desejadas nos anos sessenta, na minha adolescência, foram alcançadas. Mas é muito difícil hoje a juventude desenvolver um discurso dialético, analítico, dentro do contexto, porque eles não têm o referencial que nós tivemos. O nosso referencial nessa época era Sartre, Bertold (Brecht), o socialista, a gente… nós líamos, eu li Marx com 17 anos… e hoje o pessoal não tem… não sei se eles desenvolvem esse discurso nos cursos que fazem na universidade, no terceiro grau.
- Nessa época quem era marxista tinha lido Marx mesmo, né?
- Tinha lido Marx… é… Chegamos a Marx, Hegel, então a gente trabalhava com a filosofia, né… de alcance, perceptivo; analítico; crítico. E é o que domina até hoje. Quem escreve hoje, quem faz jornalismo hoje, se não tiver esse referencial ele não sabe o que tá dizendo. Não sabe o que diz.
 "Eu fui militante lá em Salvador e acompanhei os anos amargos da ditadura, as brigas da ditadura, 67, 68, 69"
- Bom, Gildásio, já que estamos falando de juventude, de mudança de tempo, de períodos históricos, você que viveu um período intenso da política partidária no Brasil, você acha que hoje é possível definir o que é esquerda e o que é direita?
- Rapaz… eu fui militante político na Bahia, fui aqui em Conquista como adolescente, quando se criou a UBES aqui eu era moleque, adolescente, era mais novo do que esse Oswaldo aí que foi o primeiro presidente – Oswaldinho Ribeiro, estava com ele agora. Eu era moleque, menino, mas já tínhamos a preocupação de sabermos o que que era o contexto político, social da época. Agora, em Salvador, quando eu fui pra Salvador pra fazer universidade, então eu fui militante lá em Salvador e acompanhei os anos amargos da ditadura, as brigas da ditadura, 67, 68, 69, não só na Bahia como no mundo, porque a gente se articulava com a problemática toda não só na América como na Europa, e no sul do país, Rio e São Paulo. Então toda, essa militância eu conheci, eu convivi com “eles”, e hoje eu me decepciono quando eu vejo o líder do PT no Congresso, que chama Carregosa, defender a base aliada do governo como ele defende, defender o (Carlos) Lupi!… Pô, não tem sentido; então não dá pra entender, pra eu compreender o que é isso.
- Você teve uma vida marcada pela arte, pela produção artística, pela produção cultural. Como você se situa nessa história cultural de Vitória da Conquista, qual é a contribuição que Gildásio Leite deu à Vitória da Conquista?
- Trabalhando com jovens, só. Os grandes espetáculos que eu idealizei, que eu quis fazer em Conquista não foi possível fazer porque não tem incentivo, não tem como realizar. Eu realizei alguns em Salvador, não todos, né, mas em Conquista eu realizei pouco. Mas trabalhei muito com jovem, com moleque, com adolescente e para o adolescente. Então, essa é a grande contribuição. Tem amigos meus aqui formados em Engenharia, em Medicina, em Direito que viram teatro na sua adolescência me assistindo, e eu representando. Então isso é uma coisa que me deixa muito envaidecido, porque eu não sabia que isso ia acontecer.
Luis Fernandes quer saber sobre cinema
- (Luis Fernandes) Gildásio Leite é mais teatro ou mais cinema?
- Hoje eu sou audioartevisual! Hoje eu sou visual, artevisual, eu congrego nas três linguagens, né, mas a minha prática é teatral. Eu comecei aqui fazendo teatro porque idealizava, sonhava em fazer cinema! Nós, moleques, aqui, adolescentes, a gente idealizava fazer cinema porque a gente assistia muito os filmes aqui no Cine Glória, no Cine Conquista, no Cine Poeira, e a gente saía da sala imitando os personagens, querendo ser Durango Kid, entende?, desenvolvendo o discurso do personagem. Eu nem sabia qual era o arquétipo de um personagem, mas a gente saia imitando os personagens dos bang-bang, dos filmes clássicos que a gente assistia. E a prática para se chegar a isso, pra se chegar ao cinema tinha que ser a representação, o teatro. Saber o que que é representar um personagem. Então eu fui procurar uma escola de teatro. Eu fiz teatro aqui, na adolescência, e depois eu fui me formar. Eu me formei, eu sou ator e sou diretor teatral graduado pela UFBA, certo. Não tenho orgulho disso, não, mas eu fiz isso (irônico…). Mas consegui entrar, fazer o cinema, que eu queria. Logo que chego em Salvador eu fiz meu primeiro filme. O primeiro filme que eu fiz foi um filme italiano, da Fama Filmes, sobre o cangaço, um filme com Thomás Milliam. Esse filme passou aqui em Conquista, eles anunciavam, que Raimundo exibia no Cine Glória “com artista conquistense” (rsrsrsrs). Era um Bang Bang Nordestry, com Tomas Milian, era a Rebelião dos Brutos*, não pôde ser registrado no Brasil como “O Cangaceiro” então ficou o título “Rebelião dos Brutos”. E é um filme extraordinário de interessante. E eu tenho a cópia em italiano, não tenho ela dublada – dublada não foi, foi telecinada com legenda. Eu não tenho essa cópia, tá no Museu de Imagens de São Paulo. Mas em italiano eu tenho a cópia, é interessante, é o primeiro filme que eu fiz. E fiz outros filmes na Bahia, filmes baianos e filmes do Rio e São Paulo. Então eu consegui realizar alguns filmes como ator, entendeu, na minha verve deve ter 15 ou 16… 16! 16 filmes longa metragem. E curta metragem eu fiz uma série, dirigi alguns e trabalhei com outros como participação de equipe, mais de trinta! É… ‘tá tudo arquivado e guardado esse material, entendeu?
- (Luis Fernandes) Você pretende, quem sabe… lançar um livro contando a história do teatro de Conquista, sua vida em teatro, sua vida em cinema, o cinema em Conquista?
"E a minha avó sempre me codenominava de 'Calango da Véa Galdina'"
- Eu comecei até a escrever como foi que surgiu o teatro na nossa geração, mas me perdi, era uma revista, Mas é interessante contar a arte em Conquista, não só dessa época, desse período da minha adolescência, que é 1960, como a de hoje. Hoje se desenvolve uma arte mais concreta, mais objetiva, mais racional. Nosso tempo também era uma arte muito subjetiva, mas a gente sabia o que queria, é uma arte mais limitada, mas hoje com o domínio dos “acessos” da comunicação, então… o teatro de Conquista não tá mal, agora falta incentivo pra que ele possa produzir um bom resultado.
- Gildásio, você consegue fazer uma análise também subjetiva do que foi que lhe conduziu à arte, ao teatro, ao cinema. Você tem alguma reminiscência de quando foi que você deu o estalo pra isso?
- Olha, eu sempre fui um menino precoce. Eu fui criado por meus avós. Quando nasci, a minha mãe não pôde me alimentar porque meu parto foi muito complicado, foi aqui na fazenda Volta Grande, do meu avô, a três km de Conquista. Aí, a minha tia me levou pra casa do meu avô, para poder me amparar. Então, daí eu não voltei mais pra casa de minha mãe, eu fiquei, fui criado por minha tia e meus tios e meus avós. Eu conheci meu avô, minha avó. Eu convivi com meu avô e minha avó e eu fui muito precoce, eu fui muito criado solto mas compreendendo as limitações que estabeleciam pra gente, meu avô, minha avó, meus tios. Mas era isto precoce, e aí eles me puseram o apelido de “Calango da Véa Galdina”, porque eu era um cara cômico, era, era um dos cômicos que facilitava a alegria na casa, nos eventos, acontecimentos, acharam eu parecido com um cara que era quase um palhaço e isso não me saiu da memória, né, e a minha avó sempre me codenominava de “Calango da Véa Galdina”, e logo depois eu conheci o circo, aqui em Conquista, o meu tio me levava pro circo e eu assistia todos os espetáculos do Circo Nerino e os dramas, eu moleque, 3 anos, 4 anos, eu descia com meus tios pra vir aqui fazer o cabelo na banca de Estelina, aqui no Beco da Tesoura, Valdemar
Este sujeito simpático é o Waldemar a quem Gildásio se refere
nesse tempo já era cabeleleiro. Veja só! Já tá de cabelo branco, bicho (riso), já deve ter uns oitenta (mais risos…); então eu assisti muito. Eu fiz muito espetáculo, eu vi muito espetáculo no Circo Nerino*, grandes dramas da representação, e o palhaço Picolino, então isso foi bacana pra minha compreensão, e logo depois eu entro para a Cruzada, no Salão Paroquial, que já vinha do teatro do salão paroquial, já existia o grupo de teatro salão paroquial; como eu era menino eu, na cruzada, dona Geraldina desenvolvia uma prática de encenação de peças teatrais. Então, eu comecei praticamente moleque no salão paroquial. Depois passamos a encenar pequenos textos e, logo então, passamos a encenar textos… Saímos do teatro catequético, o teatro do salão paroquial era muito catequético, mostrando as contradições dos efeitos da religião do pecado, do bem e do mal, então nós passamos a fazer um teatro para discutir o contexto social da realidade, e isso já no salão paroquial. Isso com muita influência do Padre Benedito.
- É muita precocidade mesmo.
- É. A gente já tinha essa preocupação social, não é, e ao mesmo tempo, na escola, a gente desenvolveu a militância política, o surgimento do PCzão aqui, do PC, das lideranças políticas, essa influência toda no início dos anos sessenta, no final dos anos cinquenta pra sessenta, então houve muito essa influência e a gente participava. Então, o que é que íamos: discutir a realidade brasileira. Então, passamos a ter essa preocupação de fazer um teatro voltado…
- Você já era ator?
- Sim, eu já era ator, já tava trabalhando, mas quando eu decidi mesmo ser ator, não fazer outra carreira acadêmica, então eu já tava querendo decidir pra que caminho eu deveria seguir. Eu já tava com 14 anos, eu já tinha ultrapassado a adolescência. Eu já tinha saído da idade do perigo, porque eu já era, né, 16 anos, com 17 anos eu já tava em Salvador, 18 anos eu já tava em Salvador, tentando vestibular, já tinha escolhido teatro.
- E o cinema? O Gildásio do cinema? Dos longas que você acabou citando aí, dos curtas, tem algum filme que você fez que o deixou bastante realizado?
- Tem… não… no começo, esses filmes foram interessantes pra mim… esses foram muito interessantes, esse primeiro que eu fiz com 22 anos de idade, você não me conhece no filme, você vê o filme e você não me conhece, mas ‘cê sabe que sou eu, né, esse filme eu tava com 22 anos de idade. Logo depois eu passei a…
- Você fez que papel nesse filme?
- Eu fiz um bandido que se torna cangaceiro; é interessante esse filme até, é interessante esse filme. E é a narrativa – inclusive, o roteiro é de Agnaldo Silva, ele praticamente começou a trabalhar com dramaturgia na Itália, ele começou lá. E eles vieram filmar aqui no Brasil um roteiro dele, que tem uma adaptação também dos italianos, do pessoal que fazia bang-bang italiano, da Fama Filmes. Então, logo em seguida eu fiz um filme com Nelson Pereira, que é da obra de Jorge Amado, Tenda dos Milagres, que é um filme interessante, e que…

05 janeiro 2014

Dona Lúcia Rocha: guerreira com voz de ave

Florisvaldo Mattos, jornalista, professor, poeta, amigo e companheiro de Glauber Rocha, pertencente à gloriosa Geração Mapa, que fez história na Bahia, sensibilizado com o desaparecimento de Dona Lúcia Rocha, escreveu um belo poema lavrado em forma de soneto inglês. Ia, neste domingo, escrever alguma coisa em sua memória para o blog, mas a grandeza do poema basta. As palavras abaixo são da lavra do poeta.

EM MEMÓRIA
Morreu Dona Lúcia Rocha, mãe do grande cineasta e lutador pela cultura Glauber Rocha, de que fui amigo, nos ardores da juventude e de ações em favor da arte. Devido a isso, fui por ela honrado (eu como outros) com atenções e afeto, quando ia  aos Barris, fosse a sua casa no nº 13, fosse à da pensão que mantinha no nº 14 (esta hoje um miserável escombro), ambas à Rua General Labatut, ela quase mãe para todos os amigos do filho (Calasans Neto, Fernando da Rocha Peres, Paulo Gil Soares, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto, Fred Souza Castro, Fernando Rocha, e mais). Foi uma autêntica personagem de tragédias, mas que a todas venceu, entre as quais as mortes impactantes dos três filhos, mas morreu sem vencer o último dos dédalos de pedra por onde marchou, o da burocracia oficial e da indiferença empresarial, que a impediu de ver completo e consolidado, no Rio, o Templo Glauber, erguido em memória ao glorioso trajeto cultural de seu filho. Distante, sem poder estar presente a seu velório e féretro, para prestar-lhe homenagem e apresentar minhas condolências a seus netos, faço o que a minha tosca capacidade permite, escrevo e dedico um poema à sua memória de mulher guerreira, que dispensa compungidos sentimentos. E lhe dei o título que me parece mais adequado. Vai abaixo, com meus respeitos.

FOI-SE UMA ANTIMEDEIA
            (À memória de Dona Lúcia Rocha, mãe de Glauber)

A matriarca dos Rocha, Dona Lúcia,
Na vida uma guerreira com voz de ave,
Ardor por juventudes e minúcia,
Com um filho de talento e rosto grave,
Que se foi como um sopro em plena glória,
Com o nome da mãe de luz vestido;
A quem ergueu um Templo de memória,
Obra de quem viveu por céus ungido,
Resolveu percorrer entre as estrelas
O rastro de quem foi um bem precioso,
Estática tão só de ouvir e vê-las
Saudar-lhe a forma do tecer bondoso:
            Só com cabeça e câmera na mão,
            Ela o filho do mundo fez irmão.


(SSA-BA, manhã de sábado, 04/01/2014)

03 janeiro 2014

Dimas Oliveira lança livro sobre cinema

Conheci o feirense Dimas Oliveira, jornalista e editor do conceituado Blog Demais, nos idos dos anos 70, quando vinha a Salvador apresentar suas experiências em Super 8, no tempo do boom desta bitola durante as jornadas baianas. Dimas é um cinéfilo de mão cheia, um atento observador dos filmes que passaram por meio século no circuito exibidor. Anotando tudo desde o começo, já possui um imenso material que vai ser, agora, lançado em livro: Cinema Demais ou Era uma Vez Dezenas de Filmes Comentados e a Situação do Cinema em Feira de Santana.  Abro as aspas para transcrever o texto que me enviou. 

Dimas Oliveira lança primeiro livro em 2014
No início de 2014, o jornalista Dimas Oliveira manda para o prelo seu primeiro livro, “Cinema Demais ou Era uma Vez Dezenas de Filmes Comentados e a Situação do Cinema em Feira de Santana”, que reúne colunas escritas para o jornal “Situação”, entre 1967 e 1970. Na época, dois cinemas em Feira de Santana, Íris e Santanópólis. A edição é por conta da Fundação Senhor dos Passos.

Fã de cinema e aprendiz de cinéfilo, desde 1955, com sete anos, que ele assiste filmes. Na adolescência era sempre desafiado por adultos a falar sobre direção e elenco de filmes. Era como se fosse um quiz testando o conhecimento que tinha por cinema e filmes.
O seu interesse sempre foi crescente pela chamada sétima arte. Até hoje escreve sobre cinema em jornais e em blogs e sites.

Antes de escrever para o jornal semanário que existia então em Feira de Santana - estava com 19 anos -, no Ginásio Municipal Joselito Amorim, a feitura diária de um jornal mural manuscrito, “007” - homenagem aos filmes do agente secreto James Bond -, “a brincadeira de comentar filmes vistos”, como diz.

Depois, no Colégio Estadual, o jornal “O Berro”, feito com Geraldo Lima e Luiz Antônio Santa Bárbara, impresso em mimeógrafo a álcool e distribuído clandestinamente, continha espaço para cinema. Daí que veio o convite de Anotevaldo Gonzaga para escrever no jornal “Situação”.
l
O livro reúne pouco mais de 50 colunas, contidas em um álbum de recortes envelhecido (Foto: Jorge Magalhães), guardado mesmo com inúmeras mudanças de domicílio. As colunas estão sem datas. Apenas os anos são identificados.

Ele conta que foi atualizada a ortografia - a exceção de termos como os franceses matinée e soirée -, foi ajustada a pontuação. “A integridade dos textos está mantida”, conta.
O livro terá capa assinada pelo artista plástico Gil Mário e conta com prólogo e epílogo dos jornalistas Jorge Magalhães e Madalena de Jesus.

01 janeiro 2014

Os eleitos em 2013

Os irmãos Paolo e Vittorio Taviani
Publicado originariamente na revista eletrônica TERRA MAGAZINE
1.) CÉSAR DEVE MORRER (Cesare deve morire), de Vittorio e Paolo Taviani, com Cosimo Rega, Salvatore Striamo, Antonio Frasca. Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim de 2012. O filme tem início em cores com a encenação da peça Júlio César, de William Shakespeare, mas há um recuo no tempo, em preto e branco, e se descobre que o elenco é formado pelos prisioneiros de Rebibbia e se tem, entao, o processo de montagem da obra teatral. Os fratelli Taviani são realizadores de imensa força cinematográfica, investigadores poéticos da alma italiana e de suas idiossincrasias, além de cineastas de alto teor político. Docudrama de alta tensão. Os autores deAconteceu na Primavera e Pai Patrão, entre outros monumentos, revelam, aqui, a sua atualidade.
2.) VOCÊS AINDA NÃO VIRAM NADA (Vous n’avez encore rien vu), de Alain Resnais. Também aqui, neste último filme do autor de O ano passado em Marienbad, uma obra de um realizador mais velho ainda que os Taviani, que ultrapassou a década de 90, mas que continua em franca atividade e em franca inovação. O jogo e a representação do jogo. Será que os melhores filmes do cinema contemporâneo estão sendo realizados por cineastas do pretérito? Pelo menos, os três melhores do ano em curso são de autoria de quatro, por assim dizer, anciães. Morre um famoso dramaturgo e os atores, que atuaram em diferentes versões de sua peça teatral Eurídice, são comunicados que o autor, em testamento, pede que todos avaliem uma nova versão de Eurídiceencenada por uma companhia de teatro. Sérgio Alpendre em sua Revista Interlúdio foi quem matou a charada resnaisiana: " O jogo é esse. Sabemos que a representação não acontece senão em suas mentes, pois vemos os atores, por vezes, assistindo à peça filmada com atenção. Suas projeções é que representam novamente a peça, montam cenários, controlam a luz e, por intervenção de Resnais, têm a tela dividida em dois (e até quatro, num momento).  Esse efeito não é gratuito. É parte da estratégia do filme lidar com a inegável herança teatral do cinema, e como tal, pensar em como o avanço da técnica não conseguiu anular ou enfraquecer o princípio básico que rege o cinema: a encenação. Temos assim diversas encenações diferentes. A encenação de Antoine, que na verdade finge sua morte; a encenação filmada que os atores veem; as encenações que esses atores projetam e a encenação de Resnais, cuja função primordial é promover a fusão de todas as encenações existentes."
3.) O SOM AO REDOR, de Kleber Mendonça Filho. O mais importante filme brasileiro dos últimos tempos e também um dos melhores entre os estrangeiros. Em um bairro classe média do Recife, pequenos incidentes aparentemente sem importância alteram a monocórdica vida de seus moradores. O som de latidos de cachorros, de serra elétrica, do motor do elevador, de bolas jogadas no playground, estão sempre ao redor. A estrutura narrativa proposta pelo autor se apoia numa lenta cadência de acontecimentos banais, mas que parecem prenunciadores de algo que está por vir. O seu tempo cinematográfico é um tempo de espera e de observação de comportamentos e de certas idiossincrasias de seus personagens ( a mulher que se masturba na máquina de lavar – alusão a Eletrodoméstica – e expele a fumaça do cigarro para o tubo do aspirador de pó). Em outro momento, quando um vulto aparece rápido no corredor de um apartamento, há uma ligeira referência a seu primeiro curta, A menina do algodão. O desenvolvimento rítmico segue um diapasão de anti-clímax, embora este se dê sem ruídos nos minutos finais – exceção se faça às bombas que explodem nos últimos planos, quando se esclarece uma trama que parecia morta de momentos fortes. As fotografias de um pretérito do apogeu da cana de açucar, em preto e branco, expostas no início, se relacionam com o discurso que vem a seguir no sentido de que o passado ainda se encontra arraigado no presente. Filmado em 35mm, em CinemaScope, O som ao redor revela a maestria de um realizador que, no seu segundo longa (o primeiro: o documentário O crítico) mostra saber articular, com particular eficiência, os elementos determinantes da linguagem cinematográfica.
4.) O ESTRANHO CASO DE ANGÉLICA, de Manoel de Oliveira, com Pilar López de AyalaRicardo TrepaFilipe Vargas. Centenário diretor português, ainda e capaz, nestes sodômicos 2013, de nos surpreender e encantar com a sua peculiar maneira de filmar, de dizer as coisas, porque realizador dotado daquilo que François Truffaut considerava essencial ao cineasta: uma visão de mundo e uma visão de cinema. No filme em questão, que é sem dúvida um dos melhores do ano que passou, Oliveira (já perto dela, pois ninguém vai ficar para semente) fala da morte e do impacto que ela produz nas pessoas. A ação se localiza na Portugal salazarista dos anos 50, quando um fotógrafo, indo à região de Douro para documentar antigos métodos de trabalhos em vinhas (a temática social não se encontra ausente da obra), é contratado para tirar uma foto de uma mulher morta, que, de repente, lhe sorri. A moça morre como ser humano, mas renasce, na mente do fotógrafo, como imagem.
5.) RUSH – NO LIMITE DA EMOÇÃO (Rush), de Ron Howard, com Daniel Brühl (aquele ator alemão que se destacou em Adeus Lênin, aqui no papel de Niki Lauda), Chris Hemsworth (James Hunt), Olivia Wilde, Natalie Dormer. Artesão competente da carpintaria narrativa do cinema americano, Ron Howard (o ator mirim que fez o papel do filho de Glenn Ford em Papai precisa casar, de Minnelli) oscila entre altos e baixos, mas mesmo nos momentos fracos de sua filmografia já extensa  não deixa  a peteca da emoção cair. Cineasta visto com certa esguelha pela crítica mais alternativa, é um diretor maduro (Frost/Nixon), que, aqui, em Rush, se supera, dando ao espectador entretenimento, emoção, um retrato de uma época e um olhar sobre a rivalidade entre dois homens. E o resultado é um espetáculo que envolve o público. Rush reconta a história da rivalidade do piloto britânico James Hunt. Conquistador inveterado, Hunt se casa com Suzy Miller (Olivia Wilde), mas o matrimônio se abalou quando ela se apaixonou por Richard Burton (que, para piorar a situação, era amigo do piloto).
6.) KILLER JOE – MATADOR DE ALUGUEL (Killer Joe), de William Friedkin. Um realizador, Friedkin, que usa a mise-en-scène como um fio de eletricidade para fazer emergir, dela, o impacto cinematográfico (O exorcista, Operação França, O comboio do medo, outros). Cineasta de timing, de ritmo, que tem um sentido de espetáculo bem singular capaz de surpreender o espectador com um determinado travelling não previsto ou um corte de impacto. Diretor a ser revisitado em cinematecas, porque nunca bem visto em sua verdadeira potencialidade expressiva. Dublê de detetive e assassino por encomenda (Matthew McConaughey) encontra com jovem de 22 anos, cuja própria mãe roubara-lhe as drogas, que valem em torno de milhares de dólares. Se não entregar o dinheiro, o rapaz será eliminado. A sua proposta é que o matador Killer Joe dê sumiçõ, matando-a, a sua mãe que tem polpudo seguro de vida que daria para pagar a seus credores. Inflexível, porque só executa quando pago adiantado, o assassino por encomenda abre exceção para o rapaz na condição de que sua irmã mais nova sirva de garantia sexual até o dia do pagamento. O que pode parecer um filme convencional, assim exposto de maneira sintética, torna-se uma explosão de criatividade, considerando que sua produção de sentidos vem não da fábula, do argumento, mas da mise-en-scène de Friedklin, notável realizador.
7.) OS SUSPEITOS (Prisoners), de Dennis Villeneuve, com Hugh Jackman, Jake Gylllenhaal, Viola Davis, Maria Bello, Terrence Howard, Melissa Leo, Paul Dano.Thriller surpreendente que assinala a estreia do diretor canadense Villeneuve (Incêndios) em Hollywood. O espetáculo propóe uma investigação e, ao mesmo tempo, uma reflexão moral. Pai de família, desesperado com os desaparecimentos de sua filha e de uma amiga dela, desconfia que o policial encarregado da investigação mão mais se interessa em procurar o culpado. Diante disso, resolve, ele mesmo, fazer justiça pelas próprias mãos, acha o suposto culpado e o sequestra. O que poderia ter resultado num simples exercício no gênero, transcende-o para se transformar num exercicio de mise-en-scène com indagações reflexivas. Obra de um realizador que sabe pensar o cinema como estrutura audiovisual.
8.) TABU, de Miguel Gomes, com Laura Soveral, Ana Moreira, Ivo Mükker, Isabel Cardoso. Obra-prima do cinema contemporâneo. Homenagem cinéfilica ao clássico Tabu (1931), de Murnau e Flaherty. Uma mulher idosa, num prédio de Lisboa, em estado terminal, assistida pela doméstica africana e pela vizinha, refere-se a um homem misterioso de seu passasdo africano. Ela se chama Aurora (título de outro filme de Murnau, 1927). Há um flash-back e o filme, voltando ao pretérito, conta a sua vida na África. Melodrama que se desenrola como um malfadado conto de fadas. Obra desconcertante em todos os sentidos e um halo de esperança para o desvalido cinema que se faz na atualidade. Gomes já é conhecido dos brasileiros pelo belo Aquele querido mês de agosto.
9.) A CAÇA (Jagten, 2012), de Thomas Vinterberg, com Mads MikkelsenThomas Bo LarsenAnnika Wedderkopp. Virulento realizador dinamarquês (Festa de família), que assinou com Lars von Trier e outros, o manifesto do Dogma (que defendia a volta do cinema à sua forma de produção mais básica), o cinema de Vinterberg está sempre focado na exposição das fraturas expostas da sociedade.A vítima aqui dessa caçada é um pobre homem que, após divórcio complicado no qual perdeu a guarda do filho, emprega-se numa creche para tentar se reabilitar, mas uma menina o acusa debullyng. Resultado: mesmo que não provada a sua culpa, ele é perseguido por quase todos os habitantes da cidade como um animal acossado. Mads Mikkelsen, o homem caçado, é conhecido pelo seu trabalho como o vilão cujos olhos sangram de Cassino Royal
10.) AMOR (Amour), de Michael Heneke. Realizador que ausculta a sua cultura e os germes do nascimento do autoritarismo (A fita branca), empenhado nas fraturas expostas da sociedade pela emergência da violência (Violência gratuita), e pela ânsia sexual sem limites (A professora de piano), entre outros, Heneke, em Amour, oferece, pela cena da ópera inicial, um lugar cativo para o espectador esperar, na duração de sua projeção, a morte pelo amor e, com isso, observar o processo de desintregação de um casal de músicos (ele, Jean-Louis Trintgnant, soberbo, ela, Emmanuella Riva, também soberba). A mulher, por causa de um derrame, fica paralítica e o marido vê-se na circunstância de cuidar dela. Até o momento derradeiro chocante, que dá um ponto final ao processo. Com exceção da cena de ópera, Amor foi todo rodado no interior de um amplo apartamento, que é a reconstituição de um no qual o autor viveu por longos anos. O sentido de duração dos planos de Heneke obedece à duração de uma vida lenta, destituída de alento, e, com seus movimentos de câmera no interior da residência, Heneke põe, por assim dizer, o espectador como cúmplice do estado de agonia dos personagens. Trintgnant, que tentara o suicídio antes do filme, aceitou trabalhar em no filme e sua expressão é reveladora de um amargor condizente com o suplício do personagem. Trintgnant que, na sua juventude, conseguiu consquistar Brigitte Bardot durante as filmagens de …E Deus criou a mulher (…Et Dieu créa la femmme). E nenhum cinéfilo, que assim se considere, pode esquecer de Emmanuella Riva em Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais. Também presente, como a filha do casal, Isabelle Ruppert.