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26 maio 2013
22 maio 2013
Cukor e a dialética do ser e da aparência
1) Revi ontem, em DVD, a comédia musical Les girls (1957), do grande George Cukor, que assinala uma das últimas aparições de Gene Kelly como dançarino no cinema. O gênero, na época deste filme, já estava a se esgotar, substituído, logo a seguir, pelas grandes produções musicais, a exemplo de West Side Story, A noviça rebelde, My fair lady. Talvez a derradeira película na melhor tradição do filmusical hollywoodiano tenha sido Gigi (1958), de Vincente Minnelli. Os efervescentes anos 60 ainda proporcionaram alguns filmes interessantes (Positivamente Millie, de George Roy Hill, A moedinha da sorte, de George Sidney, Mary Poppins, de Robert Louis Stevenson, entre outros), mas, a partir da segunda metade da década de 60, ainda que alguns estúdios insistissem na grandiloquência (Funny Girl, de William Wyler, A estrela, de Robert Wise), a pá de cal, por assim dizer, veio com Hellô! Dolly, que levou a Fox à falência. Em 1970, com a explosão do Woodstock, o público estava arredio aos espetáculos musicais tradicionais e foi um erro, falta de planejamento, a realização de Hellô! Dolly, um fracasso quase retumbante, ainda que filme fascinante nos seus números e cenas de danças.
2) Mas estava a falar de Les girls. Um filme de pontos de vista sobre a questão da verdade. O que é a verdade? Há uma verdade de cada um, segundo o ponto de vista de cada um. Cidadão Kane, de Orson Welles, é, neste particular, um puzzle magnífico construído sobre variações de olhares sobre uma determinada personalidade. Em Les girls, há uma variação em torno da questão, e o autor do roteiro deve ter visto e se influenciado porRashomon (1950), de Akira Kurosawa, que trata do assunto. Três pessoas se abrigam de chuva torrencial debaixo de uma marquise e começam a conversar sobre um assassinato que presenciaram. Em flash-backs, como em Les girls, Rashomon mostra a versão de cada um. No final, as versões se contradizem e aparece o espírito do morto para contar a sua verdade.
3) Dirigido por George Cukor, um mestre da comediografia cinematográfica, Les girls gira em torno de um processo judicial com sede num tribunal de Londres, quando uma mulher (Kay Kendall) é processada por antiga amiga por ter escrito um livro que a coloca numa situação difícil, a revelar que, quando eram dançarinas, veio a ser amante de Gene Kelly. O filme então se estrutura a partir dos depoimentos das duas mulheres, a que escreveu o livro e a autora do processo, além do depoimento do próprio Gene Kelly. No final, fica-se sem saber ao certo quem falou a verdade. Para um musical, há, neste particular, um acréscimo temático e filosófico não muito usual. Mas o filme tem números musicais bem coreografados por Jack Cole, um especialista, e as canções foram escritas especialmente por ninguém menos do que o genial Cole Porter.
4) Cukor é um dos maiores diretores do cinema americano. Não há, no cinema contemporâneo, um cineasta de seu refinamento, de sua finesse, cuja maneira toda especial de dirigir atores (principalmente mulheres) ficou como legenda. Veterano dos estúdios de Hollywood, dirigiu as primeiras cenas de ... E o vento levou (Gone with the wind, 1939), mas o todo poderoso producer David Selznick o demitiu a pedido de Clark Gable, que ficava com ciúme de sua dedicação a dirigir Vivien Leigh. Quem aparece como diretor nos créditos e ...E o vento levoué Victor (O mágico de Oz) Fleming, mas houve outros diretores, como Sam Wood. Interessante observar que é um filme de produtor, o diretor funcionando, apenas, como diretor administrativo. E que extraordinário diretor administrativo, como foi o caso de My fair lady! Se o cinema brasileiro possuísse mais diretores administrativos desse quilate não estaria no beco sem saída do ponto da criação como se encontra, a captar recursos e a pensar pouco na emergência do específico cinematográfico.
Tem um filme, em particular, de Cukor que ficou no meu caminho para o resto da vida, considerando que o vi, pela primeira vez, no cinemascope do cinema Guarany em Salvador, Adorável pecadora (Let's make love, 1960), com Yves Montand e Marilyn Monroe. Cukor aqui está, por assim dizer, na sua quintessência. E o filme é admirável. Tenho-o em DVD e de vez em quando o avisto.
5) As três girls do filme são as maravilhosas e deslumbrantes Mitzy Gaynor, Tania Elg e Kay Kendall. Elg, mais desconhecida, era uma bailarina finlandesa que encantou o olhar rigoroso de Cukor e foi logo contratada. Kendall, comediante inglesa, do proscênio britânico, mas também com participação em Hollywood, morreu prematuramente de leucemia e era casada com Rex Harrison, o eterno professor Higgins de My fair lady. O número musical do café, no qual há nítida uma paródia a O selvagem, com Marlon Brando, foi coreografado por Kelly, porque, no dia da filmagem, Jack Cole, o coreógrafo oficial, estava doente. Mitzy Gaynor mostra, neste número, a sua excelência como dançarina. Na verdade, um filme como Les girls não mais poderia ser filmado com o poder de encantamento que tem. Porque não há mais uma infraestrutura capaz de oferecer suporte ao gênero: costureiras, coreógrafos, figurinistas, equipe de balé etc.
6) Cukor foi um verdadeiro mestre. Fez filmes admiráveis como os citados e, ainda, Núpcias do escândalo(Philadelphia story, 1940), Um rosto de mulher (A woman's life, 1941), com Joan Crawford, Viagens com minha tia (Travels with my aunt, 1973), o intrigante A vida íntima de quatro mulheres (The chapman's report, 63), com uma Jane Fonda em início de carreira etc.
O cinema americano do grande segredo, como chamava François Truffaut, é pródigo de talentos na comediografia, a exemplo de Vincente Minnelli, Richard Quine, Blake Edwards, Leo McCarey, entre tantos! Minnelli funcionava bem quer no musical, nas comédias, quer nos melodramas ásperos. Estilista de escol. Neste ponto, mais atraente do que Cukor, sem diminuir, com isto, a excelência deste. Aliás, foi Cukor quem usou cinematograficamente a lente anamórfica em Nasce uma estrela (A star is born, 1955), com uma inesquecível Judy Garland (não conheço nenhuma estrela com o talento dessa excepcional cantora e atriz). O cinemascope, então lançado, se perdia nos planos gerais. Cukor o ajustou à expressão cinematográfica com este filme que mostra a ascensão de uma estrela que se casa com um alcoólatra, com acentos biográficos da vida de Garland, interpretado pela fleuma de James Mason. Uma temática constante nos filmes de Cukor: a dialética do ser e da aparência.
19 maio 2013
"Queimada", de Gillo Pontercorvo
Rodado em exteriores na Colômbia (Palenque e Cartagena) – onde também foi recrutado o não-profissional Evaristo Marques – e ainda no porto francês de Saint Maio, no Marrocos, Queimada (Queimada, 1968), de Gillo Pontecorvo, é uma das obras cinematográficas que conjugam, com rara eficiência, o cunho politico ao didatismo, sem, com isso, deixar de ter um valor cinematográfico ou, mesmo, se tornar um espetáculo envolvente. Marlon Brando, que já nos deixou há quase dez anos, o temperamental intérprete, único em toda a história do cinema, durante as filmagens de Queimada, brigou feio com Pontecorvo e, por causa disso, a produção se atrasou consideravelmente. Diz a lenda que Brando ameaçou matar Pontecorvo se um dia o reencontrasse, promessa felizmente nunca cumprida Pontecorvo é um cineasta político que tenta ser didático e o filme em questão, lançado no Brasil em 1971, durante a ‘era’ Médici, período de chumbo, foi logo retirado do cartaz.
Pontecorvo mostra como Londres envia à ilha negra das Pequenas Antilhas, Queimada, dominada pelos portugueses a ferro (das baionetas) e fogo, cobiçada pelos ingleses com indisfarçado descaramento, um de seus mais hábeis fomentadores de rebelião, Sir William Walker (Brando), com o propósito de expulsar os portugueses e conquista-la, mas por meio não violentos. Walker incentiva a capacidade de liderança do negro José Dolores e fomenta uma revolta vitoriosa: é declarada a independência da ilha, que passa a ser manobrada por uma empresa britânica compradora de cana. Passam-se dez anos. E Walker é, novamente, enviado à ilha porque, desta vez, Dolores lidera nova revolução contra o domínio econômico dos ingleses.
Pontecorvo fez em Queimada um inventário alegórico do jogo colonialista através da História, sem incursionar no panfleto e dotado de clareza ideológica e sentido de espetáculo épico e comunicativo. Sobre ser um filme envolvente, o tempo, entretanto, tirou-lhe o impacto de quando foi feito, momento histórico no qual se respirava ideologia por todos os poros. Há, também, um certo simplismo, por assim dizer, na sua estrutura narrativa – o conflito entre o colonizador e o colonizado se processa como uma luta do Bem contra o Mal. Queimada, no entanto, é um filme que marcou uma época e que a apatia da contemporaneidade talvez não o receba com tanto entusiasmo. Atributos à parte, há, em especial, a oportunidade de ver um monstro sagrado em ação: Marlon Brando, ator magnífico, dotado de uma capacidade interpretativa incomum. Além de Brando e de Evaristo Marques, há um ator italiano bastante conhecido, mas que, estranhamente, não se encontra bem pintado de negro. Trata-se de Renato Salvatori, que, entre muitos outros filmes, interpretou, o boxeador Simone em Rocco e seus irmãos, obra-prima definitiva do século passado, tragédia monumental tendo, como centro, uma família de imigrantes, um filme de Luchino Visconti, cujo O leopardo, outro magnífico exemplo que testemunha, na sua criação, a verve singular de um artista que utiliza o veículo cinematográfico como instrumento de reflexão e produção de sentidos.
16 maio 2013
15 maio 2013
"Rio Vermelho", de Howard Hawks
De 12 de abril a 12 de maio, em Belo Horizonte, a Fundação Clóvis Salgado promoveu uma mostra especialíssima composta de todos os filmes do brilhante realizador americano Howard Hawks. Homenageando o diretor de Hatari!, republico um comentário que fiz quando vi Rio Vermelho há alguns anos em DVD.
Se existe um clássico perfeito para caracterizar o western, o cinema americano por excelência na definição de André Bazin, Rio Vermelho (Red River, 1948), de Howard Hawks, é o exemplar mais autêntico e paradigma de outros filmes do gênero. É verdade que No Tempo das Diligências (Stagecoah, 1939), do mestre John Ford, lança as bases do arquétipico westerniano, mas a fita de Hawks representa, nove anos depois, uma espécie de cristalização e amadurecimento do western na sua mais pura tradução e pureza antes que o gênero seja contaminado pelo psicologismo. Obra-prima incontestável, Rio Vermelho faz parte de um quarteto junto com Onde Começa o inferno (Rio Bravo, 1959), Eldorado (idem, 1965), uma espécie de remake deste último, e, por fim, Rio Lobo (1972), realizado já no ocaso de carreira desse genial diretor, que, aqui, despede-se do cinema.
As fontes míticas do gênero estão na anexação do estado independente do Texas (1845) e a conseqüente guerra dos Estados Unidos contra o México (1846-1848), na descoberta do ouro na Califórnia (1848), na construção da via-férrea transcontinental Union Pacific(1864) e na guerra civil entre sulistas e nortistas, a chamada Guerra de Secessão, retratada em inúmeros filmes de O nascimento de uma nação (1914-15), de David Wark Griffifh a ...E o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939), de Victor Fleming e David Selznick. Sobre a base da realidade histórica, o western, de fato, construiu uma mitologia, e o crítico André Bazin pôde dizer que o gênero nasceu do encontro de uma mitologia com um meio de expressão. Nele, o cowboy (vaqueiro) é elevado à dignidade de mito: o mito do homem livre, próximo de suas raízes telúricas e captado num estado nascente da sociedade, à qual tem de impor, pela força, a ordem e a prosperidade.
Howard Hawks é um exemplo raro de cineasta que é autor sem se prender a um gênero específico. Se faz westerns primorosos como Rio Vermelho, é capaz, também, de incursionar pelo musical (Os homens preferem as louras), pela comédia (Levada de Breca, Bola de fogo, O Inventor da Mocidade...), pela aventura (Hatari!...), pelo thriller (À Beira do Abismo/The Big Knife...), etc. Em todos os gêneros, entretanto, sua marca está presente, o comportamento de seus personagens é sempre igual, o estilo do cineasta nunca muda, chegando, mesmo, a se dizer da existência de um homus hawksiano.
Rio Vermelho se concentra na história da transferência de um rebanho de Rio Rojo a Abilene, onde os bois e vacas devem ser vendidos no mercado de gado. John Wayne é Thomas Dunson, o chefe, um déspota, que, com seus métodos brutais, provoca uma rebelião entre os vaqueiros.Um destes, Montgomery Clift (Matthew Garth) toma o comando e abandona Wayne, com um cavalo, em pleno deserto.Uma vez vendido o gado em Abilene, Wayne, que com muito esforço consegue chegar à cidade, desafia Clift, mas este, recusa-se a duelar e luta com Wayne com os punhos cerrados. Os dois parecem que não se compreendem, mas a astúcia de uma mulher (Joanne Dru), que Clift salva dos índios, consegue, por fim, a reconciliação entre os dois homens. Além das interpretações excelentes de Montgomery Clift e John Wayne (talvez em seu melhor papel no cinema), assim como a do elenco secundário (Walter Brennan, John Ireland, Noah Beery Jr...), o mais importante em Rio Vermelho é que este filme funciona como um excepcional documento da vida dos cowboys, seus costumes, seu folclore, o ambiente e a paisagem daquele período da colonização norteamericana.
E mais ainda: o sentido perfeito de cinema de Hawks, o alento épico, a paisagem, a simplicidade e força das personalidades individuais. Rio Vermelho é a história de uma amizade – um dos temas fundamentais da obra de Hawks. Clift, órfão, depois que seus pais são mortos pelos índios, é recolhido por Wayne que, na travessia de Rio Rojo a Abilene, se desentende com aquele que é quase um filho. O western mais telúrico de Hawks, ainda queRio Bravo seja mais cortejado, Red River mostra o eterno conflito de seus personagens, que se resolve através de um itinerário físico, captado pela câmera com a força do imediatismo. A música de Dimitri Tiokim fica nos ouvidos.
13 maio 2013
Como uma torrente...
O título da obra-prima de Vincente Minnelli em português, Deus sabe quanto amei, vem a desmerecer o filme e pode fazer parecer se tratar de um melodrama banal. O original é Some came running e que, traduzido ao pé da letra, seria Alguns vieram correndo. Na França, foi chamado de Comme une torrent… (Como uma torrente...).
Longe das telas há muitas décadas (foi visto na época de seu lançamento e depois desapareceu), Deus sabe quanto amei, para a satisfação dos admiradores de Minnelli (entre os quais se inclui este comentarista), saiu, há alguns anos, em DVD luzidio, em cópia muito boa distribuída pela Warner Bros como um dos integrantes da Coleção Frank Sinatra. Trata-se de acontecimento da maior importância para os minnellianos, os quais, infelizmente, são poucos no Brasil. Mas a sua revisão o coloca entre um dos melhores filmes americanos de todos os tempos.
O filme é um retrato da sociedade americana na década de 50, realizado com o requinte particular de Minnelli. Baseado no livro de James Jones (o mesmo escritor de A um passo da eternidade), Some came running, para ser melhor apreciado, precisa estar contextualizado na obra do diretor. Realizador de extremo bom gosto, Minnelli se dividiu, em sua trajetória de funcionário da Metro Goldwyn Mayer, entre os insuperáveis musicais que dirigiu (O pirata, A roda da fortuna, Sinfonia em Paris, Gigi, A lenda dos beijos perdidos…), os dramas ásperos (Assim estava escrito, A cidade dos desiludidos…), e as comédias românticas (Papai precisa casar, Teu nome é mulher, Brotinho indócil…).
Em Some came running, Frank Sinatra é um romancista frustrado que depois de longo tempo retorna à sua cidadezinha e reencontra, nela, seu irmão rico e mesquinho (o grande Arthur Kennedy). Na verdade, depois de uma grande bebedeira em Chicago, na qual houve briga e agressão, o personagem de Sinatra foi colocado no ônibus em direção à cidade natal. Junto, viaja uma prostituta, Shirley MacLaine, no papel que despertou os olhares da crítica internacional, que se apaixonara por ele. Quando chega, janta na casa do irmão (que lhe colocara ainda menino num orfanato de onde fugira para ficar on the Road), conhece uma professora de literatura que admira seus livros e pela qual tem um romance (Martha Hyer) e faz amizade com um bon vivant, jogador profissional (Dean Martin).
O filme caminha a passos lentos, mas rigorosos, em direção à tragédia final no parque de diversões, quando Minnelli exercita o fulgor de sua esplendorosa mise-en-scène, a utilizar, com grande estesia, a montagem paralela e as cores como um arabesco para a composição de seu painel trágico.
O que pode haver de tão especial num filme à primeira vista simples e até mesmo estruturado dentro da convenção estabelecida do estilo de representação do cinema americano? O diferencial reside, a rigor, na escrita minnelliana, no seu modo de estabelecer e articular a narrativa. Há, bem observado, um particular sentido de composição dos enquadramentos (e sendo o filme em cinemascope, Minnelli sabe encher a tela larga com eficiência dramática, a fazer com que seus personagens habitem-na com funcionalidade do espaço cinematográfico). E impressionante o seu conceito de duração das tomadas. A bem ver, o filme se estrutura, como se disse, a passos lentos, como se tudo estivesse preparado em função da catarse final, um grand finale no qual o artista que é Minnelli se mistura com a arte de um pintor e de um músico, já que a montagem é, no final das contas, pura pulsação, puro ritmo, puro timing.
O equilíbrio de composição da estrutura narrativa minnelliana (e não se está a falar apenas de Some came running, mas de todo o cinema deste realizador) é de uma extraordinária força dramática. No caso específico de Some came running, o melodrama é elevado ao patamar trágico. A tragédia do homem e da procura do amor. A tragédia de uma sociedade viciada e preconceituosa. A tragédia que enleva e que proporciona a ars poética.
Com o cinemascope, o registro visual que Minnelli estabelece é no sentido do aproveitamento do espaço maior com tomadas longas nas quais, ao invés de a câmera se movimentar, são os atores que habitam o espaço, que se deslocam neste para evitar o corte. Assim, tem-se as tomadas com maior duração em todo o decorrer do filme, à exceção do final do Carnaval no parque de diversões, quando o realizador muda o registro visual, e os cortes se sucedem com maior rapidez num festival de luzes e cores, ângulos insólitos, pulsação, ritmo. Nesta seqüência derradeira, vê-se o estilo minnelliano dos seus musicais primorosos e o cinema se estabelece como timing ou, melhor dizendo, o que se tem, nesta seqüência, é a beleza do cinema em sua quintessência. Um design visual de grande impacto.
Além da seqüência final do Carnaval, que é antológica, e já registrada como um dos momentos sublime da história do cinema, há uma outra também de sublimidade mais de um ponto de vista humanístico do que estético. É aquela quando Sinatra lê para MacLaine o seu conto que a professora de literatura consegue publicá-lo numa revista de Nova York.
Sentada no chão, os braços à volta dos joelhos, de calças cor-de-rosa, Shirley está toda nele e nada no que ele diz. A câmara fica fixa no rosto de Sinatra, e tudo quanto o filme e a vida até aí acumularam nele (tempo, décor, cidade, néons, família, a loura e frígida professora) sai cá para fora no inesperado pedido de casamento. A personalidade da personagem de MacLaine é de uma humanidade e de uma generosidade capaz de dotá-la de uma singularidade e ser ela assemelhada a uma Cabíria, aquela prostituta de Fellini interpretada por Giulietta Massina que, por sinal, MacLaine também a viveu na versão musical de Le notti de Cabiriadirigida por Bob Fosse, Sweet Charity.
No final do filme, a câmera se desloca para mostrar, abalados, os personagens da tragédia durante o enterro dela. Dean Martin, o jogador inveterado, que nunca admitira tirar o seu chapéu, mesmo a dormir ou num hospital, tira-o para ela, ele que sempre criticara as mulheres, mas que, naquele momento, se rende e presta uma homenagem a seu modo à personagem de MacLaine. E a câmera millenniana se movimenta para observar a paisagem. A vida continua, afinal de contas.
Há cineastas, como observou o crítico lisboeta João Bénard da Costa, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de avis raras.
Os minutos finais de Some came running representam uma admirável lição de como integrar os esquemas narrativos do cinema musical dentro de uma estrutura estética fundamentalmente dramática.
09 maio 2013
Mostra de Howard Hawks em Belo Horizonte
Já está chegando ao fim a retrospectiva de Howard Hawks em Belo Horizonte. De 12 de abril a 12 de maio, um mês inteiro, os mineiros tiveram a oportunidade única de ver os filmes desse genial diretor, que, trabalhando no sistema de estúdios, apesar disso, conseguiu apor, em seus filmes, uma marca registrada. Pena que uma mostra de tal magnitude fique restrita a apenas uma capital. Conhecer o cinema dos grandes mestres é construir o cinema do futuro. Os filmes estão sendo exibidos no Cine Humberto Mauro e, além das projeções, houve palestras e um curso especial ministrado pelo mestre Inácio Araújo. Nenhum cinéfilo, que seja digno do nome, pode ficar indiferente a obras como Onde começa o inferno (Rio Bravo, 1959), Hatari! (1962), Levada de breca, Bola de fogo, À beira do abismo, entre tantos outras. Ver Hawks é essencial.
07 maio 2013
A genialidade de Alain Resnais
Com o lançamento de Vocês não viram nada ainda (Vous n'avez encore rien), que é extraordinário, vamos ver aqui algumas palavras sofre o filme imediatamente anterior de Resnais: As ervas daninhas (Les herbes folles).
Les herbes folles tem nos pensamentos dos personagens a sua mola propulsora. São os pensamentos que detonam os atos e as situações. Alain Resnais é um realizador cinematográfico que tem como característica sempre a investigação da mente do ser humano. O que eleva sobremaneira seus filmes é a sua capacidade de apresentar, cinematograficamente, as angústias, os desejos, as hesitações de seus personagens. Há, em Les herbes folles, um trabalho original no que concerne ao tratamento da fragilidade do homem frente as suas circunstâncias. Evitando qualquer tipo de psicologia banal, o filme é sobre o mecanismo de funcionamento paradoxal da mente humana. Kubrick, em De olhos bem fechados (Eyes wide shut, 1999), ainda que uma obra a respeitar, tornaria este seu derradeiro filme numa obra-prima se possuísse os recursos resnaisianos ou, melhor a dizer, se Resnais filmasse De olhos bem fechados daria, a ele, uma funcionalidade e uma expressão que o gênio kubrickiano tentou, mas não conseguiu, a considerar que também aqui se trata dos desvarios da mente humana num processo de obsessão.
Além do mais, As ervas daninhas é um exercício cinematográfico puro no qual a lógica e a psicologia se explodem num redemoinho. A mise-en-scène é de tirar o fôlego (como um movimento de câmera para frente – travelling – na sequência do almoço na casa de Dussolier quando este, que aparece sentado num sofá, de repente, com a continuação, aparece já sentado na mesa, havendo, um deslocamento não somente da máquina de filmar como também dos personagens em cena num tour de force admirável. O recurso resnaisiano dos lances de memória é usado com eficiência na estrutura narrativa: a bolsa amarela roubada em câmera lenta, o plano de detalhe da carteira perdida debaixo de um dos pneus do carro, os close ups de Sabine Azéma, os pacientes a sofrer na cadeira de dentista de Marguerite etc. É o imaginário controverso dos seres em movimento que dá margem à fabulação desse extraordinário Les herbes folle.
Marguerite Muir (interpretada com a elegância de Sabine Azéma, companheira, na vida real, de Resnais) é uma dentista que tem fascinação pelos sapatos exclusivos de uma loja parisiense. Depois de comprá-los, ao sair do estabelecimento, sua bolsa amarela é-lhe roubada. Georges Palet (André Dussolier, ator constante dos últimos filmes do cineasta) após comprar um relógio num centro comercial acha a carteira de Marguerite, que fora jogada fora pelos ladrões e se encontra embaixo de seu carro no estacionamento do shopping center. Curioso, verifica os documentos e descobre que a dona da carteira tem brevê de piloto, o que o fascina, porque, desde tenra idade, tem mania por aviões e seu sonho seria ter se tornado um aviador. É bom observar que a ação de Les herbes folles se estabelece a partir dos pensamentos de seus personagens, como já foi dito. Palet, por exemplo, ainda no estacionamento do shopping, fica revoltado com uma mulher que usa uma calcinha preta e tem desejo súbito de matá-la. É neste cipoal de desejos paradoxais e esquisitos que se estrutura o filme, baseado em O incidente, de Christian Gailly, com roteiro de Alex Reval.
Palet entra em obsessão para conhecer Marguerite e imagina várias formas de entrar em comunicação com ela. A cena na qual ele está dentro do carro, e imagens laterais vão sendo mostradas como soluções hipotéticas, é bem ao feitio resnaisiano. De repente, durante um almoço familiar (Palet é casado há 30 anos com Suzanne/Anne Consigny e tem três filhos), recebe uma ligação de Marguerite para agradecer a devolução da carteira (não sem antes ter ido à polícia para entregá-la e fazer os trâmites legais com o comissário interpretado por Mathieu Amalric, que se desorienta com as hesitações dele). É quando tem início a idéia fixa de Palet em entrar em contato, custe o que custar, com Marguerite. É a pulsão de um desejo na estrutura mental de Palet que aciona os mecanismos fabulatórios de Les herbes folles, que, para evitar o spoiler, deixa-se, aqui, de contar o resto.
Se ainda pudesse existir uma, por assim dizer, lógica narrativa, esta explode no final numa apologia à liberdade da mise-en-scène. Resnais propõe, na parte final, a apologia do espetáculo puro, do cinema em plena autonomia de vôo, quando a fábula dá lugar à narrativa imaginária, à disposição do específico cinematográfico. Os leitmotivs (como que refrões) que permeiam o filme (as ervas daninhas das circunvizinhanças e que adentram a casa de Palet, a bolsa amarela em câmera lenta…) se desatam num processo único. A tal ponto que é a celebração do cinema que se verifica com o passeio aéreo que pontua a obra-prima. A partir mesmo, antes disso, do momento em que Marguerite vai procurar Palet, que se encontra num cinema de bairro a ver As pontes de Toko-Ri (The bridges of Toko-Ri, 1954), com William Holden e Grace Kelly, por ser um filme de guerra e de aviões em combate. Mas, em verdade, não são apenas os tormentos mentais dos personagens que se constituem o móvel de Les herbes folles, mas, também, as formas de expressá-los de maneira puramente cinematográfica.
Duas vezes a bela fanfarra da Fox, a pontuar a fantasia que é o cinema: tocada, com aquela ênfase que fez a emoção dos antigos frequentadores das salas de exibição, no neon do cinema onde Palat se escondera para ver os aviões de As pontes de Toko-Ri, e, quando ele se encontra com Marguerite e a beija no hangar. O filme, na terceira parte, toma um rumo surpreendente, a transformar as hesitações iniciais dos personagens em decisões. A rigor, não há rumo a tomar em Les herbes folles, ainda que haja o rumo do roteiro a seguir, a se fazer cinema pela varinha mágica de Resnais. Mas os personagens, as criaturas resnaisianas, não o têm. Como a vida.
Impressionante o poder de convencimento que passa as interpretações de André Dussolier (que tem neste filme a maior performance de sua carreira) e de Sabine Azéma, além de todos os outros intérpretes, buscados, a maioria deles, na excelência do cast da Comédie Française.
Celebração ao cinema e ao imaginário, como bem acentua a interrogação aparentemente infantil do garoto, na última tomada do filme, que pergunta à mãe: “Quando eu for gato, posso comer a ração do rato?”.
05 maio 2013
De François Truffaut
François Truffaut, o nobre cineasta francês, teria completado 80 anos no dia 5 de fevereiro do ano em curso. Mas a Implacável levou-o em 1984, aos 54 anos. Uma homenagem, aqui, ao autor de Jules et Jim.
Ao contrário do cinema de seus companheiros da Nouvelle Vague – Godard, Rohmer, Chabrol, Rivette, Resnais…-, racionalista e cerebral, o de François Truffaut é feito com a emoção e o coração, com extrema sensibilidade e uma simpatia incomum pelos seus personagens, que são tratados com ternura, generosidade e afeto. O crítico ferrenho, radical, intransigente, das revistas Cahiers du Cinema e Arts et Spetacules, que ataca em seus escritos o cinema clássico francês e o realismo psicológico de acadêmicos como Claude Autant Lara, Julien Duvivier, entre outros, sofre uma espécie de metamorfose quando passa a realizar filmes, transformando-se num cineasta terno e amável.
Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, cuja tradução literal é Os Quatrocentos Golpes), além de inaugurar a Nouvelle Vague – juntamente com Acossado, de Godard, Hiroshima, de Resnais… -, dá início à carreira de Truffaut como realizador de longas. E, neste 2009, a distância deste filme é de exatos 50 anos. Aqui também começa o ciclo dedicado a Antoine Doinel (sempre interpretado por Jean Pierre Léaud), um personagem com evidentes elementos autobiográficos, através do qual aborda o rito de passagem da infância à idade adulta. É a nostalgia da adolescência que Truffaut reflete nos filmes do ciclo Doinel, a fugacidade do tempo e a ânsia de amar, a chegada à idade adulta, o casamento… (Antoine et Colette, 1982, episódio de O Amor aos Vinte Anos/L'Amour a vints ans; Beijos Proibidos/Baisers Volés, 1968, Domicílio Conjugal/Domicile Conjugal, 1970, e; Amor em Fuga/L'Amour en Fuite, 1978).
(Em Os Incompreendidos, Truffaut, avant la lettre, considerando a época, alude à Nouvelle Vague e a seu amigo e colega Jacques Rivette, quando os pais de Antoine – que, por sinal, nos outros filmes do ciclo estão sempre 'indo ao cinema' – decidem ir ver Paris Nous Appartient, de Rivette, filme emblemático, apesar de pouco conhecido do movimento francês, e, de volta, no automóvel, consideram-no 'muito bom' – melhor homenagem impossível).
Romântico, sem, contudo, abandonar a visão irônica e dolorosa das relações afetivas, Truffaut tem a sua obra-prima já na terceira incursão longametragista: Uma Mulher para Dois/ Jules et Jim (1961), crônica de uma relação triangular (Oskar Werner, Jeanne Moreau…) baseada no texto literário de Henri Pierre Roché, autor que lhe serviria de inspiração para realizar, dez anos depois, abordando a mesma temática da dificuldade de amar, As Duas Inglesas e o Continente/ Les Deux Anglaises et le Continent (1971). O problema da comunicação no amor, aliás, do amor impossível,en fuite, é uma constante na filmografia de Truffaut, como revelam A História de Adele H/ L'Histoire de Adele H (1976), com Isabelle Adjani, A Mulher do Lado/ La Femme de la Cote (1981), entre outros.
Se seus colegas da Nouvelle Vague procuram elaborar uma linguagem que desconstrói o discurso cinematográfico tradicional, revertendo os cânones da lei de progressão dramática griffithiana, François Truffaut não pretende nunca em seus filmes dissolver a estrutura lingüística, mas, ao contrário, busca desesperadamente a fluência narrativa, o toque mágico capaz de envolver o espectador a fazê-lo pensar que não está no mundo. É verdade que brinca com a metalinguagem, mas num sentido de reverência e ao cinema como em A Noite Americana/ La Nuit Americaine (1973), belíssima homenagem ao processo de criação cinematográfica onde Truffaut comparece como ele mesmo no papel de um diretor que faz um filme. O filme dentro do filme, portanto.
Outra vertente temática na obra truffautiana é a dominante policial, influência, na certa, de sua admiração por Alfred Hitchcock – seu livro de entrevista com este, Hitchcock/Truffaut, da Brasiliense (e, agora, em outra edição pela Companhia das Letras), é, simplesmente, uma aula magna de cinema. Há Hitchcock em Fareinheit 451 (1966), que faz na Inglaterra, com o mesmo Oskar Werner de Jules et Jim, baseado na ficção-científica de Ray Bradbury. Outra obra alusiva ao mestre é A Noiva Estava de Preto/ La Mariée Était em Noir (1967), com Jeanne Moreau ou, mesmo, Tirez sur le Pianiste, segundo filme (1960), e A Sereia do Mississipi/ La Sirene du Mississipi (1969), no qual declara, através das imagens em movimento, a sua paixão momentânea, Catherine Deneuve, que trabalha, aqui, ao lado de Jean Paul Belmondo. E no seu canto de cisne De Repente num Domingo/ Vivement Dimanche (1984), cujo 'claro/escuro', proposital, vem em auxílio de uma proposta estilística em função do film noir francês. Sem esquecer o elaborado, como mise-en-scène, Um só pecado (Le peau douce, 1963).
Autor, porque dono de um estilo próprio, marcante, ainda que com um universo temático diversificado, François Truffaut, na sua filmografia, envereda por assuntos diversos, a exemplo de O Garoto Selvagem/ L'Enfant Sauvage (1970), filme sobre a luta de um médico, no século XIX, para 'domar', um menino bárbaro criado sem contato com a civilização – influência possível para Werner Herzog em O Enigma de Kaspar Hauser. Na Idade da Inocência/ L'Argent de Poche (1976), experiência na qual, repetindo Jean Vigo (Zero de Conduite), o universo que retrata é constituído somente de crianças. Sem esquecer O Último Metrô/ Le Dernier Metro (1980), uma volta ao passado, Segunda Guerra Mundial na França ocupada, para valorizar, numa situação-limite, a importância dos pequenos gestos.
Em todos os filmes de François Truffaut, um denominador comum: a narrativa que sobrepuja a fábula, a doce fabulação que advém de um sentido preciso de mise-en-scène, o touch truffautiano, sempre terno, apaixonado, capaz de levar ao espectador o prazer do autor com o que está a filmar e o prazer, imenso, de se assistir ao que se está a ver.
28 abril 2013
O Intimismo no cinema
Fala-se muito em intimismo cinematográfico, mas quase nada, pelo menos em língua portuguesa, existe escrito sobre esta maneira de representação do real nas imagens em movimento. A presença de “Imitação da vida” (“Imitation of life”, 1959), de Douglas Sirk, em DVD, faz emergir o pensamento sobre o que significa o intimismo e o modo pelo qual é traduzido, nele, o “real”.
O intimismo representa, por excelência, a escola idealista no cinema. A realidade é filtrada pelo sentimentalismo e pela subjetividade, o que o identifica com o romantismo. Segundo Maurício Rittner, em seu exemplar livro introdutório, “Compreensão de cinema”, editado pela Buriti em 1965, nos filmes intimistas nem sempre o desfecho da história é feliz, fato característico dos filmes românticos. Como as normas de conduta, ainda segundo Rittner, próprias do intimismo são normais ideais, elas acarretam uma técnica de renúncia aos valores autênticos da vida. Assim, o universo romântico-intimista configura um sistema de forças em conflito: as forças do sentimento e as forças da razão. Mas em sua fé nos sentimentos, os personagens se tornam quase místicos.
Segundo o crítico de arte Herbert Reed, existem três modos básicos de representar o mundo: o realismo, o idealismo (intimismo), e o expressionismo, havendo um quarto modo (surrealismo) que tenta substituir o realismo, que é, esta, a “escola”, por assim dizer, que registra tão verazmente quanto possível aquilo que nossos sentidos conseguem perceber no mundo real. Há no realismo cinematográfico várias vertentes (neo-realismo italiano, realismo poético francês, realismo socialista, realismo fantástico, realismo crítico…). A maioria dos filmes do Cinema Novo brasileiro pode se inserir dentro do realismo, assim como a famosa escola de documentaristas britânicos dos anos 20 (John Grierson, Paul Rotha…).
No expressionismo (e, principalmente, no expressionismo alemão dos anos 10 e 20) o que importa não é a tradução do real (como no realismo), mas a expressão de seu reflexo na sensibilidade e no espírito. O filme ícone do expressionismo é “O gabinete do Dr. Caligari” (Robert Wiene, 1919), com seus cenários de papelão, objetos pintados, gesticulação exagerada. Há uma preocupação maior na plástica da imagem do que nos recursos da montagem. A cenografia tem uma forte presença na produção de sentidos. O expressionismo influenciou todo o cinema (“Cidadão Kane”, de Orson Welles, com seu jogo de luz e sombras, é uma obra expressionista.)
O nome maior do surrealismo no cinema é o de Don Luis Buñuel, autor de duas obras puramente surrealistas:”Un chien andalou” (1928) e “L’Âge d’or” (1930), ambas em colaboração com Salvador Dali, filmes que chocaram platéias e provocaram escândalos. O surrealismo tenciona apresentar a realidade interior e a realidade exterior como dois elementos em processo de unificação. Tem grande influência de Freud (“A interpretação dos sonhos”) e do materialismo histórico.
O móvel, entretanto, da coluna, é o intimismo, que tem seu apogeu nas décadas de 30, 40 e 50 no cinema americano. Para uma sociedade extremamente imediatista e consumista, atualmente filmes intimistas podem provocar risos (vindos, evidentemente, de débeis incapazes da percepção da obra em seu momento histórico) e parecer, à primeira vista, anacrônicos. Mas os filmes intimistas, quando realizados com classe, com talento, com estilo, podem suscitar uma espécie de estesia pela beleza de sua “mise-en-scène”. Alguém, de sã consciência, poderia rir dos filmes de Douglas Sirk (“Palavras ao vento”, “Almas maculadas”, “Tudo que o céu permite”, “Amar e morrer”, “Desejo atroz”, entre outros)? O intimismo significa a evolução de uma história cinematográfica em torno das eternas constantes do amor, com a tônica no estudo exaustivo das relações afetivas e dos fatores que as precipitam ou as impedem. E criou um universo dramático especificamente feminino centrado nas reações da mulher diante do mistério do amor. Por exemplo: “…E o vento levou” (“Gone with the wind”, 1939), de David Selznick/Victor Fleming/George Cukor/Sam Wood, embora a sua ação se localize na Guerra de Secessão americana (1861/1864), esta se torna apenas um “pano de fundo”, porque o que importa é a análise da personalidade esfuziante de Scarlett O’Hara (vivida com empenho inexcedível por Vivien Leigh) e suas oscilações diante do mistério do amor. Todos os acontecimentos básicos do filmes são explicados em função dos estados passionais (outro exemplo marcante é “O morro dos ventos uivantes”/”Wuthering Heights”, também de 1939), de William Wyler, com Laurence Olivier, David Niven, Merle Oberon. A dimensão lírica do intimismo é dada por um tratamento acentuadamente romântico dos personagens e das situações.
O intimismo parte de uma visão realista, que é deliberadamente selecionada e exaltada em alguns de seus aspectos. Para Rittner, o intimismo induz das formas da realidade uma idéia abstrata, mais perfeita do que a original. A realidade “deveria ser assim” e não “assim”, como seria numa visão realista. A idéia abstrata mais perfeita do que a realidade não torna o intimismo “menor”, mas, muito pelo contrário, fala-se, muitas vezes, melhor da realidade através da fantasia e da estilização. Diria mesmo que há uma possibilidade estética maior no intimismo do que no realismo “tout court”.
A própria realidade, no intimismo, é recriada em termos de poesia e de ternura e, por isso, quase se torna estática, desvitalizada, isolando os personagens de seu meio. É, no entanto, pela imobilização da realidade circunstancial que o intimismo se torna revelador, transformando o vulgar em invulgar, o superficial em transcendente.
Com a barbárie estabelecida no consumo do produto cinematográfico, com o cinema transformado em “fast food”, o público solicita, hoje, mais a brutalidade e a ação do que a ternura e a poesia. Ri-se de certos momentos românticos dos filmes intimistas. Ri-se de forma esquizóide, nos dias que correm, da poesia e da beleza. Há, patente, uma preferência por um realismo quase naturalista do que pelo tratamento intimista dos personagens e das situações. Rir de uma obra como “Assim estava escrito” (“The bad and the beautiful”, 1953), de Vincente Minnelli, filme intimista, dá àquele que ri um atestado inconteste de imbecilidade congênita.
São exemplos de filmes intimistas: “Grande Hotel” (“Grand Hotel”, 1932), de Edmund Goulding, com Greta Garbo, John Barrymore, Joan Crawford, que saiu recentemente numa coleção de Dvds de um jornal paulista, , “Esquina do pecado” (“Back street”, 1932), de John M. Stahl, que dirigiu a primeira versão, em 1934, de “Imitação da vida”, “Anna Cristie” (idem, 1930), de Clarence Brown, com Garbo, “A dama das camélias” (“Camille”, 1936), com Garbo e Robert Taylor, “Adeus Mr. Chips” (“Good-bye Mr. Chips”, 1939), de Sam Wood, “Um lírio na cruz” (“Till we meet again”, 1944), de Frank Borzage, “Carta de uma desconhecida” (“Letter from a unknow woman”, 1948), de Max Ophul, com Louis Jordan e Joan Fontaine, “Por tua causa” (“Because of you”, 1952), de Joseph Pevney, com Loretta Young e Jeff Chandler, “Tarde demais para esquecer” (“An affair to remember”, 1955), de Leo McCarey, com Cary Grant e Deborah Kerr, “Suplício de uma saudade” (“Love is a many splendored thing”, 1955), de Henry King, com William Holden e Jennifer Jones, entre muitos outros. E os grandes “sirks” já citados dos anos 50.
24 abril 2013
Amar o cinema
O aprendizado do cinema é um processo lento e gradual que tem no tempo o seu grande mestre. O mesmo se aplica para as demais artes, como a literatura, por exemplo. O conhecimento das obras-primas requer tempo, paciência, dedicação, hábito. Para se adentrar nos universos de Machado de Assis, Dostoiévski, Thomas Mann, Gustave Flaubert, Honoré de Balzac, Eça de Queiroz, Guimarães Rosa, entre tantos outros, é necessário, e até mesmo conditio sine qua non, a disponibilidade temporal. O que se torna cada vez mais difícil nesta era da informação galopante, de pragmatismo absoluto, quando o excesso de informações acaba por conduzir à desinformação, considerando que o receptor delas não tem tempo para contemplá-las e, por conseguinte, para reprocessá-las e absorvê-las adequadamente. E, neste diapasão, o jornalismo toma carona na leitura rápida, desaparecidos os antigos suplementos literários, as críticas de rodapé. Em seu lugar, o império do audiovisual.
A proliferação de oficinas de crítica cinematográfica é uma maneira, creio, e assim é se me parece, de colocar o carro adiante dos bois. Por exemplo: nos cursos de Letras, ensina-se muita teoria da literatura, enquanto que os alunos não são estimulados para a leitura. No caso do cinema, há a necessidade de se criar um repertório consistente de filmes. Ver e ver filmes, adquirindo, com isso, um hábito. A crítica é a arte da paciência. Depois da contemplação silenciosa de muitos filmes, formado o repertório, é que o interessado pode começar, então, a escrever sobre cinema. Daí porque é um processo lento e gradual.
A decadência da produção comercial é flagrante. Desfeitos os grandes estúdios de Hollywood, em fins da década de 50, o cinema americano, em crise, apostou em novos talentos (Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Roman Polanski, Bob Rafelson, entre tantos), mas, na segunda metade da década de 70, com a aparição das guerras nas estrelas (nada contra elas, mas constatando fatos) e os espetáculos spielberguianos, houve uma infantilização crescente do ponto de vista temático, a ponto de atualmente ser difícil se encontrar um filme que possa ser visto no circuito comercial dos complexos. Toda regra tem exceção, é claro, e no seio da indústria também pode se encontrar bons e severos filmes. As imagens em movimento se vulgarizaram, todavia, com a possibilidade de se fazer cinema a torto e a direito, com um simples celular. E a visão de filmes numa tela de computador não é a mesma da verificada quando somente se podia ver um espetáculo cinematográfico dentro da sala exibidora mediante o pagamento de um ingresso. Conheço uma pessoa que baixa filmes da internet a perder de vista. Conversando com ela, soube que tem mais de mil filmes baixados do espaço virtual. E quantos você assistiu?, perguntei quase atônico. Menos de 30, respondeu-me. Nada contra quem gosta de baixá-los, inclusive porque dá a oportunidade de se ver algumas obras que nunca poderiam ser vistas num circuito normal ou, mesmo, no disquinho.
Quem lê nos dias que correm uma obra fundamental como Os Irmãos Karamazov? Conta-se nos dedos os estudantes de Letras que conhecem Machado de Assis. Mas estou tomando um atalho no que quero aqui colocar: o tempo como fator fundamental e imprescindível do aprendizado cinematográfico. O paralelo com a literatura vem a propósito nesse sentido. Cinema, na verdade, se aprende indo ao cinema. Evidentemente com o embasamento de leituras de obras especializadas, ensaios e críticas publicadas pela imprensa, mas, sobretudo, o interesse pessoal investigativo, a atenção na visão/revisão dos filmes.
O filme não é um rato para ser destrinchado em laboratório com instrumentos precisos. A obra cinematográfica vale-se, em primeiro lugar, do engenho e da arte de um criador, da emoção de um artista e do sentimento desta emoção pelo espectador. Para se sentir e amar o cinema é necessário vê-lo com carinho, com sensibilidade. É um hábito que se adquire, portanto, com o tempo. Infelizmente, o ‘ir ao cinema’ atualmente se transformou num complemento do exercício do ‘shoppear’, um adendo quase à refeição ligeira de um ‘fast food’, quando não se utiliza a própria sala de exibição para a sua prática.
A minha iniciação cinematográfica se fez pela emoção. Nos já distantes anos 50, quando a imagem estava circunscrita à tela luminosa da sala exibidora. Uma formação baseada nos gêneros, na contemplação dos grandes westerns de John Ford, Anthony Mann, Raoul Walsh, Howard Hawks, Budd Boetticher…, nos musicais de Vincente Minnelli, George Seaton, Stanley Donen, nos épicos espetaculares como Ben Hur, Spartacus, etc, nos melodramas de Douglas Sirk, Leo McCarey, etc, etc, etc. Depois vim a descobrir que o cinema era uma arte ouvindo as palestras de Walter da Silveira e vendo, estupefato, Hiroshima, Mon Amour, de Alain Resnais, Acossado, de Jean-Luc Godard, A noite, de Michelangelo Antonioini, Os sete samurais, de Akira Kurosawa, Oito e Meio, de Federico Fellini,Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha…
É preciso, portanto, aprender primeiro a gostar de cinema, a amar o cinema, e este amor só se consegue indo ao cinema.
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