Por Luis Nassif
Quando solicitado para oferecer a sua lista dos seus melhores filmes da história do cinema, Woody Allen sempre se negou, mas, recentemente, o British Film Institute solicitando-a, o veterano cineasta resolveu dá-la à publicação. Os dez títulos, porém, e vale ressaltar, não estão em ordem de importância. O que se pode observar é que Woody Allen dá preferência aos filmes de autor e às obras já consolidadas como clássicos absolutos. Basta verificar que os títulos mais recentes datam de 1972. O cinema contemporâneo está ausente da lista alleniana. O que não significa uma crítica a ela, pois na minha, já publicada por aqui, também raros são os filmes que ultrapassam os anos 70. Federico Fellini, pelo visto, é o realizador que Allen mais admira, pois colocou dois filmes dele na relação (Amarcord e Oito e meio). Inclusive Allen fez em Memórias (Stardust Memories, 1980, o seu oito e meio. Senti falta de um Hitchcock, pois grande mestre e um inventor de fórmulas da linguagem cinematográfica. E John Ford? E Howard Hawks? Bem, toda lista é subjetiva. Faço aqui comentários aos filmes escolhidos.
OS INCOMPREENDIDOS (Les quatre-cent coups, 1959, de François Truffaut, com Jean-Pierre Léaud, Albert Rémy, Claude Maurier, Patrick Aufey. Primeiro longa metragem de Truffaut, o severo e temerário crítico do Cahiers du Cinema, detonador, ao lado de Acossado (A bout de souffle, 1959), da Nouvelle Vague, Les quatre-cent coups (seu título original é uma expressão idiomática francesa que pode ser entendida como pintar o sete) é um filme sobre a solidão de um garoto e sua inadaptação ao meio social, que acaba cometendo um roubo, e, preso, foge da casa de correção para menores. Obra quase autobiográfica, o personagem Antoine Doinel (sempre interpretado pelo mesmo ator: Jean-Pierre Léaud) pode ser considerado o alter ego do autor. Truffaut repetiria em outros filmes a devoção aos temas da infância e da solidão.
LADRÕES DE BICICLETA (Ladri di biciclette, 1948), de Vittorio De Sica, com Lamberto Magnorani. Obra-prima do neorrealismo italiano, que, com sua nova maneira de apreender o real no cinema, exerceu profunda influência sobre a geração posterior (o Cinema Novo, por exemplo, tem muito da escola neorrealista), Ladri di biciclette, com roteiro de Cesare Zavattini, figura-chave, objetiva representar a realidade sofrida de uma Itália pós-guerra através da história de um operário, que, com a perda de seu instrumento de trabalho, uma bicicleta, parte em sua busca, ao lado de seu filho pequeno. O filme poderia ter se tornado apenas um mero registro sociológico do período, mas com sua singular poesia da fealdade ainda hoje é pleno de sensibilidade e humanismo. Um instrumento do humanisno.
CIDADÃO KANE (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, com Everett Sloane, Joseph Cotten, outros. Ponto de partida da linguagem do cinema contemporâneo, instauração de um novo modelo narrativo baseado na fragmentação em que o relato se assemelha a um puzzle, com vários pontos de vista, sábia utilização da profundidade de campo, pode-se dizer que existe um cinema antes de Kane e outro depois, tal a sua importância para a evolução da estrutura audiovisual moderna, que, na sua época, foi uma verdadeira revolução na forma de narrar. Primeiro lugar em quase todas as enquetes mundiais desde os anos 50, Kane apenas perdeu o pódio ano passado, quando ficou em segundo lugar na lista dos maiores filmes de todos os tempos, dando lugar, na revista inglesa Sight and Sound a Um corpo que cai (Vertigo, 1958), de Alfred Hitchcock.
AMARCORD (idem, 1973), de Federico Fellini. Estilização das constantes fellinianas e a recordação da cidade natal, Rimini, do realizador. Se em Os boas-vidas (I vitelloni, 1953), Fellini revisita a sua vida de vitelloni pelas ruas com os companheiros e a atmosfera da província, mas num acento realista, neste a estilização excessiva (mas necessária e envolvente) promove, em algumas cenas, a sensação de plena sublimidade. Obra de grande criatividade imaginativa, de poesia borbulhante, bem de acordo com o temperamento esfuziante do artista que a criou. A partitura de Nino Rota fica nos ouvidos. Filme-síntese do cineasta, considerando que, depois de Amarcord, nunca mais o autor de Oito e meio atingiria tal nível de sublimidade. Sequências antológicas: a ida de Magali Noel ao palácio para ser recebida pelo príncipe; os rapazes que dançam no nevoieiro; a chegada deslumbrante do transatlântico Rex; o tio que sobe na árvore; o busto gigantesco de Mussollini em dia de parada; entre tantas outras.
A GRANDE ILUSÃO (La grande illusion, 1937), de Jean Renoir, com Jean Gabin, Erich von Stroheim, Pierre Fresnat, Marcel Dalio. Para muitos, como Woody Allen e François Truffaut,, Jean Renoir é o maior cineasta francês de todos os tempos. Nesta obra mais que prima, três pilotos franceses capturados (a ação se passa na Primeira Guerra Mundial) entram em choque com oficial alemão (interpretado por Von Stroheim). O momento em que o francês morre, em consequência de um tiro dado pelo alemão, e este lhe pede o perdão, é antológica. As afinidades entre as classes sociais são mais importantes, segundo Renoir, do que suas diferenças ou luta. Grande momento da história do cinema que diz muito não somente sobre a guerra mas sobre a urgência do humanismo como instrumento de integração entre os povos. Renoir, dois antes mais tarde, faria a sua obra definitiva: A regra do jogo (La règle du jeu, 1939).
O CHARME DISCRETO DA BURGUESIA (Le charme discret de la bourgeoisie, 1972), de Luis Buñuel, com Fernando Rey, Delphine Seyrig, Stephane Audran, Jean-ìerre Cassel, Paul Frankeur. Grupo de burgueses se reúne para jantar mas sempre, quando se preparam para sentar na mesa, são sempre interrompidos por acontecimentos espantosos. Ante-penúltima obra do mestre do surrealismo no cinema, que antecede os seus derradeiros opus (O fantasma da liberdade, 1974, Este obscuro objeto do desejo, 1977), faz parte da fase francesa do autor em que o surrealismo é diluído em fartas doses de humor. A virulência buñueliana de Viridiana é substituído pelo humor corrosivo.
OITO E MEIO (Otto e mezzo, 1963), Federico Fellini, com Marcello Mastroianni, Sandra Milo, Anouk Aimée. Filme que estabeleceu um corte longetudinal na história da arte do filme. A crise de um cineasta, Guido Anselmi (Mastroianni, alter ego de Fellini) e uma reflexão sobre o processo de criação no cinema. A realidade é vista de modo mediatizado, isto é, refletida pela consciência do protagonista ou pela do realizador omnisciente. O espectador é colocado diante de um desenvolvimento narrativo que não é lógico mas puramente mental. A admiração de Woody Allen por este filme não é à toa, pois tentou fazer seu Otto e mezzo em Memórias (1980).
O SÉTIMO SELO (Det sjunde inseglet, 1956), de Ingmar Bergman, com Max von Sydow, Gunnar Bjornstrand, Bibi Anderson. Alegoria tragicômica em forma de mistério medieval, com um desenvolvimento livre do imaginário da Idade Média, O sétimo selo ( Det sjunde inseglet) tem sua fábula estruturada na volta de Antonius Blok (Max Von Sydow) à Suécia após dez anos de luta na cruzada e o jogo que estabelece com a Morte num tabuleiro de xadrez. Antonius e seu lacaio Jons (Gunnar Bjornstrand) se dirigem, por uma longa jornada, ao castelo onde moram, e, no caminho, contemplam uma terra arrasada pela peste. Este itinerário de Blok, do erro inicial à Verdade final, é conduzido com extrema maestria por Ingmar Bergman, que se utiliza, aqui, do cinema, como um veículo filosofante e reflexivo acerca da condição humana. No percurso, Blok e Jons encontram vários personagens, mas apenas um casal de artistas mambembes se constitui num remanso de paz e tranquilidade, longe da mesquinharia e da hipocrisia dos outros. Blok, entretanto, continua o jogo de xadrez com a Morte (impressionante caracterização de Bengt Ekerot), mas esta, de repente, ganha partida. Vencedora, precisa levar consigo todos os personagens, deixando na vida somente o casal de cômicos (Bibi Andersson e Nils Poppe), o único capaz de desfrutá-la de maneira pacífica e feliz. EmA última noite de Boris Grushenko (Love and death, 1975), a última sequência do filme é uma homenagem explícita a este filme.
GLÓRIA FEITA DE SANGUE (Paths of glory, 1967), de Stanley Kubrick, com Kirk Douglas, Adolphe Mejou. Um dos mais vigorosos libelos anti-bélico no qual Kubrick mostra a carnifica promovida pelo exército francês durante a Primeira Guerra Mundial. Proibido na França, quando de sua estreia mundial, levou muitas décadas para ser lançado em Paris. O discurso cinematográfico kubrikiano é duro e sem papas na língua. Por causa deste filme, Kirk Douglas, admirado pelo talento do jovem diretor, convidou-o, com a saída de Anthony Mann, para dirigir Spartacus, do qual, além de ator, funcionou com produtor executivo com recursos de sua produtora.
RASHOMOM (1959), de Akira Kurosawa. No século XV, numa floresta perto de Tóquio, um bandido afirma que matou um samurai depois de violentar a mulher dele. A mulher diz que foi ela quem matou o marido. Mas a alma do morto, que aparece, diz que, na verdade, suicidou-se, e um açougueiro dá uma quarta versão. Leão de Ouro no Festival de Veneza e o filme que projetou o cinema japonês internacionalmente. O que é a verdade?
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